Resolvendo a "coronacrise" sem litígio
18 de abril de 2020, 7h02
Por causa da atual pandemia e da quarentena imposta, vivemos dias atípicos, inclusive em nossa relação com o mundo natural. Ao alvorecer, o canto dos pássaros tem ecoado com distinção pela cidade de São Paulo; já durante o dia, respiramos um ar cada vez mais limpo e, ao anoitecer, o céu de nossa metrópole vem se revelando mais estrelado.
O fato é que passaremos as próximas semanas protegidos em nossos lares, como se "bunkers" fossem, de modo que um pouco de bucolismo será essencial para enfrentarmos a crise humanitária, econômica e jurídica que vem pela frente.
O mundo praticamente "parou", mas as relações jurídicas continuam mais vivas do que nunca: uma infinitude de obrigações foram afetadas pela pandemia do novo coronavírus, Sars-CoV-2, causador da Covid-19.
As consequências serão sentidas nas mais diversas áreas: com relação aos empregados que tiverem os salários prejudicados, quais serão os seus direitos trabalhistas? Sem receber o aluguel, poderá o locador denunciar o contrato de locação? Caberá despejo? Terá o locatário direito de renegociar o valor da locação? Será possível ao devedor de alimentos rediscutir a pensão alimentícia ou mesmo o acordo de convivência? Haverá prisão civil por dívida alimentar? O pagamento por serviços não utilizados, como clube, academia, escola, transporte escolar e passagens aéreas, será devido? E com relação a eventos que tiveram de ser cancelados, como festas de casamento? Como ficam as obras em edifícios? Podem os síndicos impedi-las de terem marcha durante a pandemia? Se não houver condições de pagar a mensalidade do seguro saúde, será legítima a suspensão do plano? No tocante ao compromisso de compra e venda inadimplido por perda da capacidade financeira do promitente comprador, será possível a retenção do sinal pelo promitente vendedor? E por aí vai, sem limites.
Como advogados atuantes no foro, muito nos preocupa a perspectiva de que o Poder Judiciário se torne refém de uma enxurrada de ações judiciais em detrimento de todos os jurisdicionados. Aliás, o Projeto de Lei 1.179/2020, de autoria do senador Anastasia, que estabelece um Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET), expressamente demonstra preocupação em mitigar a revisão judicial das obrigações, assim como evitar que o Judiciário seja inundado por demandas visando a rediscussão de obrigações pretéritas (consoante a exposição de motivos do parecer exarado pela senadora Simone Tebet, relatora do Projeto de Lei no Senado).
Seria interessante, nesse contexto, que o RJET vislumbrasse um novo requisito para o regular trâmite processual: a comprovação de prévia tentativa de autocomposição, o que certamente mitigaria o número de demandas, uma vez que teríamos partes adequadamente assistidas em momento anterior ao desgastante embate judicial. Ora, para enfrentarmos o atual momento será preciso solidariedade, compreensão, colocar-se no lugar do próximo e pensar além dos próprios interesses — qualidades que deveriam fazer parte da cultura de todos os brasileiros.
Ainda que o ordenamento jurídico pátrio não imponha aos litigantes a comprovação de precedente tentativa de autocomposição, existem procedimentos interessantes pelos quais se faz possível evitar uma contenda: os métodos alternativos para a solução de conflitos, com destaque para a mediação.
O mediador, nos termos do §3º do artigo 165 do Código de Processo Civil, atuará preferencialmente (mas não só) nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliando os interessados a "compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos".
Vale a pena esclarecer ao leitor algumas diferenças fundamentais entre mediação e conciliação: enquanto a conciliação é um método de solução de controvérsias pelo qual um conciliador (que não necessariamente domina o assunto do embate) buscará facilitar a comunicação, permitindo que as partes "conversem", espera-se do mediador ampla experiência no tema em pauta, devendo atuar não apenas para mediar os interesses, como também para alertar as partes, com imparcialidade e isenção, sobre consequências, riscos e benefícios de cada posição, procurando conduzi-las à solução que melhor as atenda, evitando assim um longo litígio (e, consequentemente, gastos com custas judiciais e honorários advocatícios), contribuindo de forma inestimável com o já saturado Poder Judiciário.
Dessarte, nos parece altamente recomendável que nossas instituições iniciem em curto espaço de tempo campanhas de conscientização da sociedade quanto à importância da solução consensual de conflitos no período crítico que vivemos, chamando especial atenção para a mediação.
Nesse sentido, cumpre lembrar que o artigo 9º da Lei 13.140/15 autoriza que a mediação extrajudicial seja desempenhada por "qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se".
A pandemia do novo coronavírus faz-nos lembrar de nossa vulnerabilidade. O mundo, tal como conhecemos, não será mais o mesmo. Para que a atual e as futuras gerações sobrevivam, será fundamental uma sociedade mais solidária, colaborativa e consciente.
O emprego da mediação vem ao encontro dessa nova era por ser recurso mais econômico, ágil na resolução de disputas e dotado de responsabilidade social, oportunizando às partes que construam, de comum acordo, soluções que sejam economicamente mais interessantes e privilegiem a autonomia da vontade.
Mutatis mutandis, assim como o distanciamento social é um dever cívico, o mesmo se pode dizer quanto ao empenho das partes para que reequilibrem a sua avença sem depender de uma imprevisível imposição do Estado-Juiz, a qual pode a um só tempo desagradar ao vencedor e ao vencido.
Seremos os protagonistas de um novo capítulo da história da civilização moderna. Como gostaríamos de ser lembrados? Como litigantes individualistas ou como integrantes do novo mundo?
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!