Advocacia criminal e dever de indignação
15 de abril de 2020, 6h53
Tal sentimento em regra decorre das mazelas do sistema de administração da justiça criminal: crescentes e estratosféricas taxas de encarceramento, erros judiciários, estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário, excesso de demandas e falta de infraestrutura adequada das Defensorias Públicas, seletividade, caldo cultural punitivista e abusos: acordos coercitivos e leoninos, acusações excessivas (overcharging), prisões processuais com desvio de finalidade, penas desproporcionais etc.
Decerto, tais mazelas consistem em problema social altamente complexo, com múltiplas causas concorrentes (culturais, deontológicas, institucionais, normativas, orçamentárias e políticas) e que não comporta soluções reducionistas ou milagrosas.
Uma das possíveis soluções apresentadas pela doutrina estrangeira — objeto do presente artigo — é a ampliação dos deveres éticos do Advogado criminalista, tradicionalmente relacionados à atuação processual zelosa na defesa dos interesses do cliente.
Para além dessa concepção tradicional, deve ser reconhecido o dever de indignação (duty of outrage) do Advogado. [1]
Trata-se do dever de o Advogado dizer a verdade ao poder (to speak truth to power), e de autoridades públicas assumirem maior grau de responsabilidade por seus atos discricionários que resultam em injustiças.
Com relação ao representante do Ministério Público que pratica ato abusivo, tal dever inclui pleitear a reconsideração, à luz do seu papel institucional de órgão de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Nesse sentido, há ressignificação do papel do advogado, que deve induzir a mudança de posição do órgão ministerial, ante a sua função de órgão objetivo e impessoal de tutela do fair play processual, dos direitos fundamentais do acusado, ofendido e testemunhas, da licitude das provas, da legalidade, moralidade e impessoalidade de Administração Pública etc.
Em suma: o advogado deve exigir que o Ministério Público cumpra o seu mister de órgão de administração da justiça, assegurando que inocentes não sejam condenados injustamente nem culpados punidos desproporcionalmente, contribuindo para a legitimação do sistema de administração da justiça criminal enquanto mecanismo confiável, eficiente, ético e justo de adjudicação de casos penais.
No desempenho dessa relevante função, o Parquet deve ter perspectiva holística do sobredito sistema, que leve em consideração a injustiça das consequências (individuais, econômicas, sanitárias, sociais etc.) dos seus atos funcionais.
Nessa toada, o Advogado também tem o dever ético de pleitear que o Juiz leve em conta os fatores e consequências em apreço, ao desempenhar seu papel institucional de árbitro imparcial da causa penal e garantidor da constitucionalidade, convencionalidade, legalidade e racionalidade das práticas e procedimentos persecutórios do Estado.
Por exemplo: em conjuntura de pandemia, durante a qual há segmentos sociais (v.g. população carcerária) mais vulneráveis à carnificina pestilenta, é dever ético do Advogado trazer à baila a responsabilidade das autoridades públicas por seus atos processuais penais que aumentam o risco de disseminação virótica e mortes (v.g. entre encarcerados, agentes penitenciários e suas famílias), máxime ante recomendações específicas dos organismos internacionais de Direitos Humanos e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). [2]
O dever deontológico em apreço não é absoluto, podendo ser renunciado quando ele conflitar com o dever de atuação zelosa na defesa dos interesses processuais do cliente.
Ademais disso, o dever ético de dizer a verdade ao poder certamente não pode ser usado como pretexto para a falta de civilidade nas manifestações orais e escritas do Advogado.
A incorporação do dever ético de indignação à prática judiciária brasileira pode ser questionada sob diversos ângulos.
O primeiro é o das consideráveis diferenças sistêmicas entre os ordenamentos jurídicos norte-americano e brasileiro. Com efeito, no primeiro o representante do Ministério Público é eleito pela comunidade em diversos Estados Federados, e possui grau considerável de discricionariedade para atuar como agente político, exercendo juízos de oportunidade e disponibilidade quanto ao processo criminal etc.
O segundo é a inexistência em nosso ordenamento jurídico pátrio de parâmetros claros para o exercício das relevantes funções (ministerial e judicial) de tutela da integridade do sistema de administração da justiça criminal — ao contrário do sistema norte-americano, que possui as Model Rules of Professional Conduct e o Model Code of Judicial Conduct, da American Bar Association (ABA).
O terceiro é o risco de o exercício do dever ético de indignação ser (erroneamente) interpretado como sendo um ataque pessoal ou político contra autoridades públicas, gerando consequências desfavoráveis para o Advogado (v.g. representações ético-disciplinares etc.).
De toda sorte, é pertinente o debate sobre as possibilidades e limites da incorporação do dever de indignação (duty of outrage) ao estatuto deontológico do Advogado criminalista brasileiro — o qual atua em sistema de administração da justiça com múltiplas e graves mazelas, como é fato público e notório.
[1] YAROSHEFSKY, Ellen. Duty of outrage: The defense lawyer’s obligation to speak truth to power to the prosecutor and the court when the criminal system is injust, In: Hofstra Law Review, n. 44, v. 4, pp. 1.207-1.226, 2016.
[2] Inter-Agency Standing Committee (IASC). Interim guidance: COVID-19: Focus on people deprived of liberty (2020); Council of Europe. Statement of principles relating to the treatment of persons deprived of their liberty in the context of the coronavirus disease (COVID-19) pandemic (2020); Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH). Resolución 1/2020 (Pandemia y derechos humanos en las Américas); Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Recomendação nº. 62, de 17.03.2020.
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