Opinião

Portaria 639 do Ministério da Saúde encontra respaldo constitucional e legal

Autor

  • Luciano Correia Bueno Brandão

    é advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC) e especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da World Association for Medical Law (WAML).

14 de abril de 2020, 14h48

Foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria 639 do Ministério da Saúde, que "dispõe sobre a Ação Estratégica 'O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde', voltada à capacitação e ao cadastramento de profissionais da área de saúde para o enfrentamento à pandemia do coronavírus (Covid-19).”

Basicamente, a Portaria propõe: 1) a criação de um cadastro geral de profissionais da área da saúde habilitados a atuar em território nacional, que poderá ser consultado pelos entes federados, em caso de necessidade, para orientar suas ações de enfrentamento à Covid-19; e 2) a capacitação dos profissionais da área de saúde nos protocolos oficiais de enfrentamento à Covid-19, aprovados pelo Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV).

Nos termos da portaria, são considerados profissionais da saúde os integrantes das seguintes categorias: serviço social, biologia, biomedicina, educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia e terapia ocupacional, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia, psicologia e técnicos em radiologia.

Imediatamente começaram, então, a surgir inúmeros questionamentos sobre a legalidade da iniciativa, se o cadastramento e a capacitação são obrigatórios, quais penalidades o profissional pode sofrer caso não atenda à determinação e se, em última análise, os profissionais poderão ser convocados.

Então é sobre isso que vamos conversar um pouco hoje.

Sobre a legalidade da Portaria 639
De início, as pessoas argumentam que essa portaria seria inconstitucional, invocando o preceito do artigo 5º, CF: "II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Bem, a portaria possui natureza normativa em sentido amplo. Ademais, será que existe realmente uma questão de inconstitucionalidade aqui?

Se observarmos o texto constitucional, encontraremos diversos dispositivos em que, em determinadas situações específicas, os direitos individuais são relativizados em favor do interesse público.

Nesse sentido, está prevista a possibilidade de "desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social" (artigo 5º, XXIV, CF). Ou ainda a prerrogativa do Estado de utilizar propriedade particular no caso de iminente perigo público (artigo 5º, XXV, CF). Ainda na Constituição, encontramos a possibilidade de "contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público" (artigo 37, IX, CF).

No âmbito infraconstitucional, poderíamos destacar o teor do artigo 24, III e IV, da Lei 9.666/93, que permite a dispensa de licitação em casos de guerra ou grave perturbação da ordem e em casos de emergência ou calamidade pública.

Note-se, portanto, que a própria Constituição e a legislação vigente permitem ao Estado uma maior ingerência sobre o interesse individual em favor do interesse público em situações de manifesta excepcionalidade.

Especificamente quando pensamos neste cenário de pandemia que vivemos, a Lei 8.080/90, que regulamenta o SUS, já prevê que "para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização” (artigo 15, XIII).

O Decreto Legislativo nº 6/2020 reconheceu o estado de calamidade pública e a Lei 13.979/2020 dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019.

A Lei 13.979/2020 reproduz o texto da lei orgânica do SUS e igualmente prevê que "para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa” (artigo 3º, VII).

Então, em termos de legalidade do cadastramento proposto pelo Ministério da Saúde nestas circunstâncias, parece haver evidente respaldo legal e constitucional.

Da obrigatoriedade de cadastramento e capacitação
A Portaria 639, no seu artigo 5º, dispõe: "O profissional da área de saúde deverá realizar o preenchimento dos formulários eletrônicos de cadastramento e manter as informações atualizadas". E o parágrafo único dispõe que "o Ministério da Saúde deverá identificar e informar aos conselhos profissionais os respectivos profissionais que não atenderam à comunicação".

A partir daí, denota-se que o cadastramento e a capacitação tem, sim, um caráter obrigatório e cuja desobediência poderia acarretar penalidades.

É importante ressaltar, no entanto, que a obrigatoriedade de atualização cadastral e realização do curso de capacitação não consiste, neste momento, em uma convocação compulsória dos profissionais de saúde.

Trata-se, na verdade, de uma medida preventiva para organização de recursos humanos caso os números de infecções por Covid-19 saiam do controle, atingindo principalmente os profissionais atualmente na linha de frente e que precisem ser substituídos por mão de obra da área da saúde.

É, portanto, um plano de contingência, a fim de que, em último caso, não falte mão de obra para atendimento dos pacientes.

Possíveis penalidades pelo descumprimento da Portaria 639
A responsabilidade profissional pode se dar em diversas esferas. No âmbito ético-profissional, o não atendimento às determinações das autoridades competentes e dos respectivos conselhos de classe podem acarretar penalidades. Diversos códigos de ética profissional trazem previsões nesse sentido.

O Código de Ética da Enfermagem
É dever do profissional de enfermagem:

Artigo 22  "Disponibilizar seus serviços profissionais à comunidade em casos de emergência, epidemia e catástrofe, sem pleitear vantagens pessoais".

Artigo 113  "Considera-se infração ética a ação, omissão ou conivência que implique em desobediência e/ou inobservância às disposições do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem."

Código de Ética dos profissionais de Farmácia
É dever do farmacêutico:

Artigo 12, II  "Dispor seus serviços profissionais às autoridades constituídas, ainda que sem remuneração ou qualquer outra vantagem pessoal, em caso de conflito social interno, catástrofe ou epidemia".

Código de Ética Médica
É vedado ao médico:
Artigo 21: "Deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente".

Veja-se, portanto, que deixar de atender às determinações das autoridades sanitárias competentes pode sujeitar o profissional a responder por infração ética.

Fora o aspecto de eventual infração ética perante os conselhos, poderia haver, em tese, repercussões inclusive no âmbito criminal, diante da caracterização, em tese, do crime de desobediência (artigo 330, CP: "Desobedecer a ordem legal de funcionário público. Pena: detenção de 15 dias a seis meses e multa)".

Diante disso, a orientação que se faz neste momento é no sentido de que os profissionais façam o cadastro atualizando seus dados junto à plataforma do governo, bem como junto aos conselhos profissionais, e realizem o curso de capacitação.

E se houver convocação?
Como exposto, neste primeiro momento não há qualquer evidência de uma convocação compulsória de profissionais. É mais uma medida preventiva do governo no sentido de organizar e capacitar recursos humanos na área da saúde para utilização em caso de necessidade.

Porém, dependendo de como as coisas evoluírem, pode ser que haja uma necessidade de convocação compulsória, sim. Trata-se da requisição administrativa e, se isso ocorrer, não se trataria de uma opção, mas, sim, de uma obrigação por parte dos profissionais.

Por outro lado, essa seria uma medida extrema e obviamente haverá situações em que eventual dispensa poderá ser solicitada pelo profissional, como em casos de profissional em grupo de risco ou ainda quando não houver disponibilização dos equipamentos de proteção individual necessários.

Note-se que o próprio Código de Ética Médica assegura ser direito do médico "recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse caso, comunicará com justificativa e maior brevidade sua decisão ao diretor técnico, ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição e à Comissão de Ética da instituição, quando houver" (inciso IV).

Em resumo
A Portaria 639 do Ministério da Saúde encontra respaldo constitucional e legal diante do momento de excepcionalidade que o país e o mundo atravessam.

A formação de cadastro e a realização de capacitação pelos profissionais de saúde das categorias elencadas é obrigatória, mas não consiste em automática convocação compulsória. Trata-se de medida preventiva para o enfrentamento da pandemia, caso haja necessidade.

O não atendimento da determinação pelos profissionais de saúde pode caracterizar infração ética e sujeitar o profissional a processo ético profissional, além de eventual repercussão na esfera criminal por crime de desobediência.

Na hipótese de eventual convocação compulsória por meio de requisição administrativa, os profissionais deverão se apresentar, observadas obviamente exceções como aqueles integrantes de grupo de risco. Também na hipótese de ausência de fornecimento de equipamentos de segurança, o profissional poderá se recusar a atuar.

Autores

  • é advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC) e especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da World Association for Medical Law (WAML).

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