Opinião

Voto de qualidade do Carf e a tutela da atividade jurisdicional do estado

Autor

  • André Mendes de Moura

    é conselheiro da Primeira Turma da Câmara Superior do Carf é mestre em Direito Constitucional pelo IDP e MBA em Tecnologia Aplicada pela Fundação Getúlio Vargas.

6 de abril de 2020, 7h03

A Constituição Federal, ao estabelecer no artigo 2º que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, Executivo e o Judiciário, entrega ao Estado, dentre as funções essenciais, a jurisdicional. Assume o poder público a atividade jurisdicional, que pode ser exercida não apenas pelo Poder Judiciário, mas também pelos outros poderes, como ocorre no Poder Executivo Federal, tendo como exemplo o Carf, que trata de litígios da área tributária referente a tributos de competência da União.

O devido processo legal é tutelado constitucionalmente, no artigo 5º, inciso LV, assegurando-se o contraditório e ampla defesa aos litigantes, em processo judicial ou administrativo.

A competência do Estado de exercer a atividade jurisdicional é uma conquista da sociedade, advinda do Direito Romano, aperfeiçoada no decorrer da história, dentre outros, por Montesquieu, ao discorrer sobre as funções primordiais do Estado, executar, legislar e julgar, por poderes independentes, e sobrepõe-se à autotutela, vigente em tempos remotos, sistema que se resolvia mediante confronto direto entre as partes, em óbvia desvantagem ao elo mais fraco.

No que concerne ao Carf, a composição das turmas de julgamento foi constituída de maneira a viabilizar uma paridade entre representantes do Estado e representantes dos contribuintes. Ainda assim, caso o contribuinte não tenha sua pretensão satisfeita, tem a prerrogativa de ingressar no Poder Judiciário, vez que o Brasil optou pela unicidade de jurisdição, garantida constitucionalmente pelo artigo 5º, inc. XXXV, que predica que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Ainda assim, o Estado, para reduzir os litígios, em obediência aos princípios da eficiência e economicidade, fez a opção de não recorrer ao Poder Judiciário caso o resultado no Carf não lhe seja favorável.

Ocorre que, sendo as turmas compostas de maneira paritária, o julgamento pode terminar em um empate. Para resolver a conflito, conferiu-se o voto de qualidade ao Presidente da turma, que é o representante do Estado. Sempre foi alvo de contestações a atribuição do voto de qualidade ao representante do Estado, que é nomeado pelo ministro da Economia.

Ocorre que não poderia ser diferente. Isso porque é precisamente do Estado a competência constitucional para exercer a atividade jurisdicional. Trata-se de função estatal. Precisamente para afastar a autotutela, para afastar o confronto direto entre os particulares, assume o Estado o monopólio da jurisdição.

E, na medida em que se retira do representante do Estado o voto de qualidade, a atividade jurisdicional deixa de estar sob competência estatal.

Os representantes dos contribuintes são nomeados por confederações cujos membros são parte no litígio. Por mais que se reconheça a excelência técnica dos indicados, não são representantes do Estado, não tem estabilidade, e, após o término do mandato, naturalmente, precisam retornar ao mercado de trabalho. E, dentro dos preceitos da livre iniciativa, após a quarentena, podem voltar a advogar, inclusive, defendendo, em um outro processo, o mesmo contribuinte que antes haviam julgado, na condição de Conselheiro do Carf.

O representante dos contribuinte é um representante da parte interessada no resultado do litígio. E, atribuindo-se aos representantes do contribuinte o voto de qualidade, a decisão final foge das mãos do ente estatal.

A retirada do voto de qualidade da Fazenda Nacional subtrai do Estado a atividade jurisdicional conferida pela Constituição Federal.

Dentre os desdobramentos da medida, viola-se o princípio do juiz natural, que tutela não apenas a proibição a um tribunal de exceção (não é o caso), mas também a competência, lastreada pela impessoalidade e imparcialidade.

A tríade juiz e partes constitui-se entre contribuinte de um lado, procurador da Fazenda Nacional de outro, e turma julgadora como mediadora do conflito. O contribuinte defende seus interesses particulares. O procurador da Fazenda Nacional, em nome do Estado, defende os interesses da sociedade, zelando pelo devido ingresso de recursos tributários aos cofres públicos e manutenção do Estado. Enfim, a turma julgadora forma complexo orgânico, com a função de resolver o litigio, na função de juiz estatal.

O juiz não pode ser sujeito do processo. A partir do momento em que a vontade do colegiado (reunião de julgadores), vincula-se ao voto de representantes escolhidos pela parte, afasta-se por completo o instituto do juiz natural.

Nesse contexto, o voto de qualidade deve ser do representante do Estado, no caso, presidente da turma de julgamento, servidor público aprovado em concurso de provas e títulos, com as prerrogativas funcionais conferidas em regime estatutário e representante do ente estatal.

Incontestável constatar que, mesmo quando a Constituição confere a participação de um quinto lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios, a membros do Ministério Público e a advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada (quinto constitucional), há dois aspectos relevantes no caso.

Primeiro, que os membros do quinto, uma vez nomeados, passam a ser, definitivamente, agentes do Estado, gozando inclusive de estabilidade. Segundo, e não menos emblemático, é o percentual de participação conferido: um quinto. Não por acaso, não se confere percentual superior a cinquenta por cento.

A retirada do voto de qualidade das mãos do Estado tem como consequência o retorno da solução de conflitos por meio da autotutela. A palavra final não mais será do Estado, mas sim da parte com mais força na contenda.

O contribuinte com recursos financeiros substanciais vai fazer prevalecer sua tese jurídica, efetuará aportes cada vez menores aos cofres públicos, e, inevitavelmente, a conta será paga pelo segmento da sociedade com menor poder econômico, cujos interesses são defendidos pelo Procurador da Fazenda Nacional.

Cada vez mais a tributação repousará sobre pobres e assalariados de baixa renda, que, se são isentos do imposto de renda, empregam todos os seus rendimentos em itens de subsistência e, por que não dizer, sobrevivência, impiedosamente tributados por meio de impostos indiretos que são repassados ao consumidor final.

Estudo disponível no sítio da Receita Federal, Carga Tributária no Brasil 2017, informa que a tributação de bens e serviços responde por 48,44% da arrecadação de tributos no país, enquanto que a renda responde por 19,22%, relação de 2,54 vezes.

Em momentos no qual foi preciso que uma pandemia aflorasse a questão da desigualdade social (finalmente!), em razão das condições deploráveis de significativa parcela da população que vive em favelas ou habitações deploráveis, superpovoadas, e que tem que buscar o alimento a cada dia, e que paga tributos indiretos elevados sobre o que come, não poderia ser mais infeliz, não poderia trazer uma fratura mais exposta à sociedade, a retirada da função jurisdicional do Estado brasileiro, relativa à tributação, responsável pelo ingressos de recursos públicos essenciais para zelar os interesses da coletividade, em especial dos mais carentes.

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