Opinião

A quimera de Moro e o delinquente habitual no projeto anticrime

Autor

  • José Henrique Kaster Franco

    é juiz pós-doutor pela Universidade de Roma – La Sapienza doutor e mestre em Direito pela PUC-SP especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim e professor na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados.

16 de setembro de 2019, 6h29

Quimera, na mitologia grega, é um animal feroz, um híbrido que cospe fogo, formado pela improvável fusão de uma cabra e um leão. A junção também é inusitada por conta da origem geográfica das partes: metade do monstro é etrusca, metade é grega.

Na literatura, e depois no uso cotidiano, quimera passou a significar uma união inviável, inconstante, instável, enfim, um sonho.

Pedro Calderón de La Barca, dramaturgo e grande expoente do chamado Século de Ouro Espanhol, publicou, em 1635, o drama filosófico La Vida es Sueño. Em uma célebre passagem, Calderón interroga: “O que é a vida? Delírio. O que é a vida? Ilusão, apenas quimera e sombra, e o máximo bem é um nada, porque toda a vida é um sonho, e o sonhos, sonhos são”.

O projeto anticrime, de Sérgio Moro, por cinco vezes, faz menção à categoria do criminoso habitual ou do criminoso profissional. Ao se deparar com tal figura, o juiz, regra geral, não poderá conceder liberdade provisória. Poderá prorrogar a escuta ambiental, impedirá o acordo de não persecução penal, fixará a pena em regime fechado e, por fim, promoverá o confisco alargado.

Moro não está a ressuscitar o Código Penal Italiano de 1930, como alhures fora dito. Nosso Código Penal Militar (CPM), vigente, faz menção ao criminoso habitual (art.78). E o Código Penal Italiano atual, de 2002, idem (arts. 102 a 106).

Mas a gestação do criminoso habitual é, deveras, italiana. Enrico Ferri, entre os anos de 1878 e 1880, desenvolveu essa categoria. Agregando elementos sociológicos à biologia lombrosiana, Ferri afirmava que, a partir de um componente inato, mas sobretudo pelo abandono social, pelo preconceito, e pelas péssimas condições das cadeias, o agente acabava por praticar crimes em série, fazendo disso uma vera professione.[1]

O Código Penal Italiano vigente, na esteira do mestre da Sapienza, exige múltiplas condenações definitivas para que o juiz possa tomar o agente como criminoso habitual ou como criminoso profissional.

É declarado criminoso habitual quando, depois de ter sido condenado definitivamente a uma pena de reclusão maior do que cinco anos pelo cometimento de três delitos dolosos, ainda comete, dentro do interregno de dez anos, um quarto delito doloso (art. 102). Ou, então, depois de condenado definitivamente por apenas dois delitos dolosos, é condenado por um terceiro delito doloso, e o juiz, ademais, levando em consideração, dentre outros fatores, a espécie e a gravidade das infrações, conclui que o agente se dedica à prática de crimes (art. 103).[2]

Já o criminoso profissional é um criminoso habitual de periculosidade acentuada. Além de satisfazer as condições para a declaração de habitualidade, o criminoso profissional deve viver dos proveitos dos crimes que leva a efeito (art.105).

As críticas que podem ser feitas ao projeto anticrime não deveriam residir, por conseguinte, na desqualificação do texto sob o argumento de que traduziria uma retomada da legislação fascista de 1930, pois as categorias de criminoso habitual e de criminoso profissional persistem na legislação italiana deste século e em outros vários ordenamentos e, mesmo quando não positivadas, aparecem na prática jurisprudencial, a exemplo da brasileira.

Não é incomum que prisões provisórias sejam decretadas e mantidas sob o argumento da habitualidade ou da prática profissional de delitos.

Em outras palavras, o problema não está propriamente na importação da criação secular italiana. Antes, reside na transposição parcial, assistemática, descontextualizada. Trazer conceitos abertos sem defini-los abre portas para decisionismos e ativismos. Copiar sem definir é fomentar insegurança jurídica e legar ao alvedrio dos aplicadores um instrumento de subjetividade ímpar, com múltiplas e potencialmente nefastas consequências.

Se nossos tribunais já se valem de noções de habitualidade criminosa, que não raro se prestam para alargar as hipóteses de encarceramento pelo modo de vida do agente, é possível, pelo menos em tese, que a positivação dessas categorias, a exemplo do Código de Processo Penal Italiano, que exige prova das várias condenações, venha mesmo a ser vantajosa, servindo para frear impulsos punitivistas.

A leitura do projeto, entretanto, sugere justamente o contrário: a importação capenga de conceitos vagos poderá funcionar para que se crie uma subespécie de reincidência: a reincidência sem condenação.

O agente poderá ser condenado ao regime fechado, por exemplo, sem que registre condenação alguma. Não é difícil antever a proliferação de sentenças, em regime fechado, para jovens com 18 anos sem registro de antecedentes. Nos conceitos de criminalidade habitual e criminalidade profissional, tudo cabe.

É dizer que, na Itália, onde os conceitos foram desenvolvidos, a criminalidade habitual e profissional exige múltiplas condenações: é um plus em relação à reincidência. No Brasil, corre-se o risco de ser um minus: a importação para o sistema brasileiro pode ter o efeito inverso daquele para o qual existe no sistema originário.

Moro, se não quiser criar uma quimera ítalo-brasileira, tem duas saídas: extirpa as várias menções feitas a criminosos habituais ou profissionais ou, então, importa o bloco italiano em sua integridade, exigindo que haja múltiplas condenações definitivas para que se esteja diante dessas temíveis figuras.

Um parêntese final: não resolve o socorro ao art. 78 do CPM, porque se tratam de sistemas distintos – direito penal militar e direito penal. Ademais, o dispositivo em questão é de duvidosa constitucionalidade, pois apela nitidamente ao direito penal de autor e, porquanto não exige que o agente tenha sido condenado anteriormente para que só assim seja tido como criminoso habitual, foge da matriz italiana e incide no mesmíssimo erro para o qual se quer alertar com este estudo, a importação assistemática de categorias jurídicas.[3]

Em síntese, ou se decide pelo lado italiano ou então pelo lado brasileiro – manter os dois em um único corpo, de um animal feroz que cospe fogo, não é uma aposta verdadeiramente auspiciosa.


[1] Nas palavras de Ferri: “Viene terza la categoria dei delinquenti che, per gli studi fatti soprattutto nelle carceri, ho chiamato abituali o per abitualità acquisita. Sono individui che, pur non avendo o non avendo così spiccati i caratteri antropologici del delinquente nato, tuttavia dopo commesso il primo reato, assai spesso in età giovanile e quasi esclusivamente contro le proprietà, non tanto por tendenze innate, quanto per una propria debolezza naturale unita all’impulso delle circostanze e di un ambiente corrotto, che fa da vero contro d’infezione criminosa, e molte volte, come nota benissimo il Joly, per la impunità goduta per le prime mancanze, persistono dappoi del delitto e ne acquistano l’abitudine cronica, facendone una vera professione. E questo, perché la carcere in comune li ha corrotti, moralmente e fisicamente, o il carcere cellulare li ha inebetiti, l’alcoolismo li ha abbrutiti, e la società, abbandonandoli prima e dopo l’uscita dal carcere, alla miseria, all’ozio, alle tentazioni, non li ha aiutati nella lotta per il riacquisto delle condizioni de vita onesta, quando pure non li ricacci quasi forzatamente nel delitto con certi istituti, che dovrebbero essere preventivi ed invece altro non sono, cosi come sono finora, che una nuova cagione di delitti, quali il domicilio coatto, l’ammonizione, la sorveglianza”. FERRI, Enrico. Sociologia criminale. Torino: Fratelli Bocca, 3ª ed., 1892, p. 169-170.

[2] Para uma análise detalhada das categorias do delinquente habitual e do delinquente profissional, consultar: FORTI, Gabrio; SEMINARA, Sergio; ZUCCALÀ, Giuseppe. Commentario Breve ao Codice Penale. Milano: Wolters Kluwer/CEDAM, 6ª ed., 2017.

[3] Considera-se criminoso habitual aquele que: a) reincide pela segunda vez na prática de crime doloso da mesma natureza, punível com pena privativa de liberdade em período de tempo não superior a cinco anos, descontado o que se refere a cumprimento de pena; b) embora sem condenação anterior, comete sucessivamente, em período de tempo não superior a cinco anos, quatro ou mais crimes dolosos da mesma natureza, puníveis com pena privativa de liberdade, e demonstra, pelas suas condições de vida e pelas circunstâncias dos fatos apreciados em conjunto, acentuada inclinação para tais crimes.

Autores

  • é juiz, pós-doutor pela Universidade de Roma – La Sapienza, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim e professor na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados.

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