Opinião

A autoridade e seus abusos: limites no direito alemão (parte 2)

Autores

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

  • Alaor Leite

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

14 de setembro de 2019, 6h26

3. O abuso na exposição pública e os limites inerentes ao cargo
Com a ascensão recente das redes sociais e a consequente descentralização do fluxo da comunicação diária das grandes organizações televisivas e jornalísticas para plataformas digitais, a nova economia da aparência trouxe consigo novas tensões de direitos[1]. Um perfil pessoal no Twitter, um canal no Youtube, compartilhamentos no WhatsApp podem atingir um número bem maior de pessoas do que um coluna de jornal. Com essa transformação da esfera pública, aos poucos ficou-se claro que o baralho do poder comunicacional moderno tinha sido embaralhado novamente. Assim, o recurso escasso da aparição em público dentro da nova economia da aparência passou a ser gerado de forma decentralizada, não mais dependente da decisão de uma organização. Nessa nova arquitetura, também a forma de exercer influencia política na sociedade ganhou novos contornos. Não somente atores privados perceberam a nova janela comunicacional, mas também alguns funcionários públicos viram uma nova chance de ganhar um adicional de legitimidade em suas funções, por vezes às custas de alguns deveres inerentes ao cargo. Nessa contexto surgiu uma tensão inerente entre a liberdade de expressão, o exercício da profissão e funcionalidade do cargo público em questão. Esse problema não deixou de ser observado pela doutrina e jurisprudência alemãs.

Em várias decisões sobre a extensão ou limitação da liberdade de expressão para os cargos de juízes e promotores, o Bundesverfassungsgericht – o tribunal constitucional alemão – já no final da década de setenta e na década de oitenta começou a firmar as balizas sobre a relação entre a liberdade de expressão e as restrições inerentes aos cargos públicos. Segundo o tribunal constitucional, o cargo em si pressupõe independência, neutralidade e distância no seu exercício[2], e, especialmente quando as declarações e manifestações do portador do oficio ganham uma dimensão pública e não repercutem apenas dentro do processo, a questão se torna ainda mais sensível. Nesse ponto, o tribunal deixa claro que sobretudo quando posicionamentos pessoais misturam-se ou entram em conflito com a reputação do cargo, exige-se um distanciamento maior dos detentores de cargos públicos[3], especialmente juízes e promotores. Isso decorre do simples fato de que a persuasão das decisões judiciais não baseia-se apenas na qualidade técnico-jurídica dos seus fundamentos; baseia-se também, e em larga medida, na confiabilidade depositada pela população nos juízes e promotores. Essa confiança é baseada acima de tudo na independência externa e interna do juiz e do promotor, de sua neutralidade e da distância perceptível, que deve permanecer clara mesmo em disputas políticas. Se as manifestações de opinião de juízes sobre questões políticas são susceptíveis de abalar esta confiança, elas contradizem os pilares centrais do cargo público de juiz e promotor dentro da Constituição alemã, segundo a Corte Suprema[4].

Nesses casos, para o tribunal, há uma clara violação do dever funcional presente no Art. 33, inciso 5 da Constituição Alemã, a Grundgesetzt[5] associado ao § 39 da Lei da magistratura alemã (Deutsches Richtergesetz)[6] , que se refere ao cargo em si e à reputação e à confiança associadas a ele. Quando a reputação e a confiança conectadas ao cargo são usadas e empregadas com ênfase, a fim de dar mais foco à opinião do titular do cargo em assuntos políticos e, sobretudo, para impor as opiniões políticas do titular do cargo de forma mais eficaz e abrangente através do uso do cargo há, no contexto alemão, uma clara violação de regras disciplinares que regem o exercício do cargo ou função. Assim, fica claro que, no contexto alemão, a liberdade de expressão dos funcionários públicos, em especial de juízes e promotores, está sujeita a um regime jurídico especial, com restrições de acordo com as exigências inerentes ao próprio cargo[7]. Com isso, no exercício da liberdade de expressão, os funcionários públicos em geral devem respeitar alguns limites impostos pelas suas respectivas funções[8].

Isso não significa, porém, que funcionários públicos (juízes, promotores ou outros) não gozem da proteção da liberdade de expressão em suas manifestações públicas. Pelo contrário. Manifestações e declarações feitas em serviço que não estejam exclusivamente relacionadas com o desempenho do cargo, ou seja, com o cumprimento das tarefas do Estado, são protegidas pela liberdade de expressão e não podem ser restringidas por sanções disciplinares. Nesses casos, a manifestação deve estar ligada ao livre desenvolvimento da personalidade, enquanto direito fundamental assegurado pelo art. Art. 2 inciso 1 da constituição alemã.

Recente caso julgado em 2016 pelo Bundesgerichtshof – comparável ao STJ brasileiro, como se disse acima – envolvendo manifestação de um juiz no facebook chamou atenção, sobretudo pelas consequências jurídicas que decorreram da exposição do juiz em redes sociais[9]. O simples fato de publicar uma foto trajando uma camisa estampada com a frase “Damos um lar ao teu futuro: Prisão” (“Wir geben Ihrer Zukunft ein Zuhause: JVA”)[10] foi motivo suficiente para a declaração de suspeição do magistrado em questão, por falta de imparcialidade. Para o tribunal, ao possuir uma menção clara à sua atividade como juiz na página pessoal do facebook, associada à publicação da foto com a referida camisa, careceria o juiz da imagem de que julgava seus processos penais de forma objetiva. No caso, ele apresentaria uma imagem oposta à de objetividade, exposta em razão do simples prazer em impor penas elevadas aos acusados independente das circunstancias concretas do caaso. Para o tribunal, nestas circunstâncias, não haveria necessidade de uma ligação mais estreita com um processo penal concreto, a fim de fundamentar o justificado receio por parte do acusado de que o magistrado, que era ao mesmo tempo presidente do tribunal, que se expôs trajando a camisa não tivesse a neutralidade necessária para julgar seu processo[11].

Cada vez mais a doutrina e jurisprudência alemãs delimitam de forma clara os limites à liberdade de expressão de funcionários públicos, especialmente de juízes e promotores, no que tange à exposição dentro da nova economia da aparência em redes sociais. Declarações ou manifestações feitas exclusivamente na qualidade oficial ou relativas a assuntos do posto público propriamente dito (por exemplo, manuseio de informações do Estado, críticas a decisões ou recursos de seus próprios processos, entre outros assuntos ligados ao cargo) não se enquadrariam, segundo parte da doutrina, no âmbito da garantia do direito de liberdade de expressão, expresso no Art. 5 da lei fundamental de Bonn[12]. Wolfgang Hoffmann-Riem, um dos principais nomes no tema liberdade de expressão e juiz aposentado do tribunal constitucional alemão, chega a afirmar, de maneira forte, que, nesse ponto, o funcionário público, no caso o juiz, possui apenas competências a serem exercidas e não direitos (no caso a liberdade de expressão).[13] Como aponta Isensee, esse problema surge justamente quando o juiz ou promotor, enquanto pessoa privada, exerce o seu direito de liberdade de expressão de maneira vinculada, de alguma forma, ao seu posto público[14]. Assim, a experiência alemã acaba por revelar que justamente nesses casos a limitação à liberdade de expressão está ligada à funcionalidade do cargo propriamente dito.

4. Conclusão
Com as presentes linhas não se quis mais do que dar notícia do direito alemão. O presente ensaio foi animado pelo objetivo de expor a situação atual de duas áreas do direito nas quais há uma preocupação do Estado em restringir as possibilidades de lesões e violações de garantias fundamentais dos cidadãos praticadas por funcionários públicos, em especial por juízes e promotores. Essas limitações podem ser de natureza ética ou disciplinar, mas se manifestam igualmente no Código Penal alemão, que conhece alguns dispositivos aplicáveis aos funcionários da justiça. Naturalmente, são vários os problemas que surgem nesse sensível contexto, que diz com funções essenciais ao Estado, cujo exercício deve, em primeira linha, garantir, e não violar os direitos dos cidadãos. Em relação ao direito constitucional e, sobretudo aos limites do direito fundamental à liberdade de expressão, foram expostos alguns casos alemães de abuso na exposição na esfera pública, em especial em redes sociais, de modo a verificar como o direito alemão, em linhas bastante gerais, justifica a limitação da liberdade de expressão de detentores de determinados postos públicos, com vistas a garantir a própria funcionalidade do cargo em questão. A informação sobre uma ordem jurídica estrangeira que tanto nos inspira deve servir para iluminar e enriquecer o debate, e não, como parece óbvio, para apresentar modelos prontos para serem desembaraçados. Aqui, teremos de encontrar nosso próprio caminho.


[1] Georg Frank, Ökonomie der Aufmerksamkeit. Ein Entwurf. München 1998. Joan K. Bleicher, Knut Hickethier (Orgs.): Aufmerksamkeit, Medien und Ökonomie. Münster 2002

[2] vgl. BVerfGE 21, 139 ( 145 ss.) = NJW 1967 1123, BVerfGE 46, 34 (37).

[3] vgl. BVerfGE 39, 334 (366ss.); NJW 1975, 1641.

[4] BVerfG: Allgemeinpolitische Äußerungen von Beamten und Richtern (NJW 1989, 93)

[5] Art. 33 inciso V "O direito da função pública deve ser regulado e desenvolvido de acordo com os princípios da função pública". (Tradução livre)

[6] § 39 O juiz deve comportar-se dentro e fora do seu cargo, mesmo no caso de atividade política, de modo que a confiança na sua independência não seja comprometida. (Tradução livre).

[7] BVerfG (3. Kammer des Zweiten Senats ), Beschluß vom 06-06-1988 – 2 BvR 111/88.

[8] BVerfGE 28, 55 (63), NJW 1970, 1267. − Leserbrief; NVwZ 2006, 1282. BVerwG BeckRS 2017,139084.

[9] BGH (Az. 3 StR 482/15)

[10] JAC é a abreviação de „Justizvollzugsanstalt“, que significa presidio ou penitenciária.

[11] BGH 3 StR 482/15 – Beschluss vom 12. Januar 2016 (LG Rostock)

[12] BeckOK Grundgesetz/Schemmer, 40. Ed. 15.2.2019, GG Art. 5 Rn. 2, 3.

[13] AK-GG/Hoffmann-Riem Abs. GG Artikel 5 Abs. 1 u. 2 Rn. 76. Ver também a decisão do tribunal constitucional alemão(BVerfGE ano 78 pg. 220) = NJW 1988, NJW ano 1988 pg. 1748 (NJW ano 1988 1749); NVwZ 1992, NVWZ Jahr 1992 pg. 65

[14] Joseph Iseense, Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Volume 5, p. 720.

Autores

  • é assistente na Cátedra de Direito Público, Teoria dos Meios de Comunicação e Direito Público da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha).

  • doutor e mestre pela Ludwig-Maximilian Universität, Munique, Alemanha; assistente científico na Humboldt Universität zu Berlin, onde escreve a livre-docência.

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