Opinião

A dicotomia entre "fundamento legal" e "fundamento jurídico" na visão do STJ

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12 de setembro de 2019, 6h51

O CPC/15 alçou o contraditório a princípio infraconstitucional, densificando o dever de fundamentação judicial[1].

Nesse sentido, além de zelar pelo “contraditório efetivo” (art. 7º) e de fundamentar[2] adequadamente suas decisões[3] (arts. 11, 489, § 1º, e 1.022, parágrafo único e incisos I e II), o juiz está impedido de proferir decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida (com exceção das tutelas de urgência e de evidência, além do comando monitório do art. 701).

Além disso, é vedado ao juiz decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (art. 10). A ideia é evitar a chamada decisão surpresa.[4]

Apesar dos inegáveis avanços – ao menos no plano teórico –, já se percebe, na prática, algumas tentativas de esvaziar a força de tais comandos normativos, seja pela criação de novos filtros interpretativos, seja pela consolidação de diretrizes contrárias ao espírito do CPC/15[5].

Neste breve artigo, a ideia é analisar duas questões pontuais: i) a “remodelação” do famoso jargão (o julgador não está obrigado a responder todos os argumentos levantados pelas partes); e ii) a interpretação do STJ sobre a aplicação do art. 10 do CPC/15.

Pois bem, quem nunca se deparou com a assertiva de que “o juiz não é obrigado a se manifestar sobre todos os pontos levantados pelas partes”? Quase um mantra processual.

Ocorre que, à luz do art. 489, § 1, IV, do CPC/15, não se considera fundamentada a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. Assim, para não flertar com a ilegalidade, os tribunais passaram a incorporar uma condicionante (“quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”[6] ou “quando tenha encontrado motivação satisfatória para dirimir o litígio[7]), o que, porém, não legitima absolutamente nada.

Ora, autorizar o julgador a não analisar os argumentos veiculados pela parte quando ele, por si só, já tenha encontrado motivo suficiente para decidir, significa desprezar o contraditório-influência e valorizar a discricionariedade judicial. Despiciendo dizer que, se o juiz acolheu, por exemplo, a tese de prescrição levantada pelo réu, não precisa analisar os alegados danos experimentados (prescritos) pelo autor e as respectivas teses jurídicas. O que não pode acontecer, porém, é o juiz se recusar genericamente a examinar os argumentos levantados pelas partes por considerar, em seu íntimo, que já encontrou motivo suficiente para embasar a sua decisão.

Outra situação que gera alguma inquietude envolve a aplicação do mencionado artigo 10. Em algumas decisões, o STJ vem desconsiderando a alegação de decisão surpresa, sob o argumento – um tanto quanto exagerado, diga-se de passagem –, que não faz sentido obrigar o magistrado a proferir “despacho prévio à sentença enumerando todos os dispositivos legais possivelmente em tese aplicáveis para a solução da causa.”[8]

De acordo com o STJ, embora as partes devam ter oportunidade para se manifestar sobre os fatos, não precisam ser previamente intimadas quando se tratar de questão de direito, por ser um dever do julgador se pronunciar sobre “matérias e questões reguladas no ordenamento jurídico e que se apliquem ao caso analisado.”[9]

Percebe-se, assim, a tentativa do STJ de tentar retirar do âmbito de incidência do art. 10 do CPC/15 os fundamentos jurídicos, na mesma linha do Enunciado 1 da ENFAM. Nesse ponto, algumas observações devem ser feitas.

Inicialmente, cabe destacar que o referido dispositivo legal consagra o dever de consulta (faceta do dever de cooperação – art. 6º do CPC[10]) e tem o condão de impedir que o julgador invoque normas e regras jurídicas não suscitadas pelos litigantes, trilhando um caminho totalmente novo sem nenhuma sinalização anterior.

Convém esclarecer que o dever de consulta não subtrai do juiz o poder de eleger a norma jurídica aplicável ao caso, mas o obriga, ao menos, a franquear às partes a oportunidade de influir e de participar da formação de seu convencimento. Até porque, o magistrado pode perfeitamente mudar de opinião depois de ouvir as partes e melhor refletir.

Assim, o brocardo iura novit curia ganha nova roupagem[11], o que, aliás, é referendado pelo Enunciado nº 282 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “para julgar com base em enquadramento normativo diverso daquele invocado pelas partes, ao juiz cabe observar o dever de consulta, previsto no art. 10”.

Ainda nessa temática, vale registrar que o STJ vem fazendo a diferenciação entre "fundamento legal" e "fundamento jurídico" para afastar a necessidade de intimação das partes para se manifestarem a respeito de fundamento nunca antes debatido, como determina o artigo 10 do CPC/15.

Em caso em que se discutia o termo inicial de um prazo prescricional (data da lesão ou ciência do dano pelo titular), o STJ entendeu que o tribunal local teria se equivocado ao aplicar o art. 206, § 3º, V, do Código Civil (prazo de 3 anos), sustentando que o prazo prescricional correto seria o de 10 anos, à luz do art. 205 do referido diploma legal.

Um pequeno detalhe: em nenhum momento do processo as partes haviam discutido acerca do prazo prescricional em si (os dispositivos legais pertinentes sequer haviam sido debatidos e explorados no recurso especial), mas apenas sobre o respectivo termo a quo, tema que também veio a ser analisado na decisão do STJ.

Nos embargos de declaração, o recorrente alegou que o fundamento adotado pelo STJ jamais havia sido cogitado pelas partes e que, portanto, teria sido prolatada verdadeira decisão surpresa, em violação ao art. 10 do CPC/15.

Todavia, a ministra relatora Isabel Gallotti destacou que “pouco importa que as partes não tenham aventado a incidência do prazo decenal ou mesmo que estivessem de acordo com a incidência do prazo trienal”. Na visão da julgadora, “houve ampla discussão sobre a prescrição ao longo da demanda, e o tema foi objeto do recurso”.[12]

No voto, fez-se, ainda, a diferenciação entre “fundamento legal” e “fundamento jurídico”, consignando-se que o fundamento a que se refere o art. 10 do CPC/15 é “o fundamento jurídico – circunstância de fato qualificada pelo direito, em que se baseia a pretensão ou a defesa, ou que possa ter influência no julgamento, mesmo que superveniente ao ajuizamento da ação – não se confundindo com o fundamento legal (dispositivo de lei regente da matéria)”.

Ou seja, na visão do STJ, quando se tratar de fundamento legal, o julgador não precisa intimar as partes antes de decidir e não há que se falar em decisão surpresa. Na realidade, a providência do art. 10 do CPC somente se aplicaria quando fosse invocado fundamento jurídico não suscitado e previamente debatido pelas partes.

Tal entendimento vem sendo reiterado em decisões mais recentes do STJ.[13]

Reside aqui uma preocupação: é extremamente tênue essa linha interpretativa do STJ. Isso porque, a análise do fundamento jurídico (“circunstância de fato qualificada pelo direito”, nas palavras da ministra relatora) envolve invariavelmente a análise dos respectivos fundamentos legais. Assim, sob a máxima do iura novit curia (cabe ao julgador aplicar o “fundamento legal”), o STJ poderá quase sempre dispensar a intimação das partes, mesmo em se tratando de norma nunca antes debatida no processo.

Embora os juízes conheçam o Direito, isso não significa que possam fazer enquadramento jurídico inédito sem antes ouvir as partes.

Como dito, embora o julgador possa conhecer de ofício norma não invocada pelas partes, não pode decidir sobre o ponto sem antes intimar as partes. Com efeito, “autorização para conhecer de ofício, porém, não é autorização para decidir sem prévio contraditório.”[14]

Registre-se, porém, que, quando as partes debatem o texto do qual emana a norma ou a própria norma (resultado da interpretação do texto), sem indicar o respectivo dispositivo legal, não há, a rigor, necessidade de se aplicar o art. 10 do CPC. Por exemplo, se as partes debatem sobre a ilegitimidade do réu em ação sob o procedimento comum, mas deixam de mencionar os fundamentos legais pertinentes (arts. 17, 485, VI, 525, § 1º, II, etc.), é evidente que o julgador pode invocá-los diretamente, já que o tema em questão foi amplamente discutido.

Já no caso julgado pelo STJ (prescrição), embora as partes tivessem discutido o termo a quo do prazo prescricional, jamais haviam debatido acerca do prazo em si (3 anos, 5 anos, 10 anos, etc.). Trata-se, nessa hipótese, de norma diversa (pertencente, portanto, à “fundamentação jurídica”), e não de mera invocação do dispositivo legal.

Em nossa opinião, o debate sobre algum ponto ligado ao instituto da prescrição não autoriza, abstratamente, a análise de qualquer outra questão a ele relacionada (por exemplo, a suspensão ou não do prazo prescricional; o próprio prazo prescricional aplicável, entre outros), sem a prévia intimação das partes, sob pena de reduzir o âmbito de incidência do art. 10 do CPC.

Como se sabe, para um contraditório genuinamente tingido com as cores do modelo cooperativo de processo, é fundamental que as partes tenham o direito de influir eficazmente na construção da decisão judicial, participando ativamente.

A questão chega a ser paradoxal: caso o fundamento não seja debatido e enfrentado pelos tribunais locais, o recurso especial, nesse ponto, não será conhecido por ausência de prequestionamento do tema (Enunciados das Súmulas 211 do STF e 282 e 356 do STF). Agora, se o STJ, por algum motivo, resolver apreciar a matéria, basta admitir o recurso e julgar o processo, aplicando o direito (art. 1.034 do CPC), sem oportunizar a prévia manifestação das partes. Uma incoerência que, na prática, fomenta cada vez mais a decisão surpresa[15].

Em nossa opinião, o artigo 10 do CPC/15 deve ser rigorosamente observado pelo STJ quando a) as partes não tiveram a oportunidade de se manifestar sobre fundamento que constituirá a base da decisão ou de algum de seus capítulos; e b) não existir prévio debate sobre o enquadramento jurídico de determinada questão, ainda que o tema a ela subjacente tenha sido objeto de manifestação anterior.

Em suma, o importante é que o conteúdo da norma seja objeto de debate. A análise do tema macro não pode absorver automaticamente o exame de relevante questão micro, ainda mais sem a prévia intimação das partes. Até porque, por se tratar de norma estruturante do processo civil – verdadeira garantia aos jurisdicionados –, não se pode fazer uma interpretação reducionista do art. 10, amesquinhando e esvaziando a potencialidade da norma.


[1] O dever de fundamentação está capilarizado ao longo do CPC/15. Vide, por exemplo, arts. 11, 12, § 2º, IX, 173, § 2º, 370, parágrafo único, 373, § 1º, 426, 489, §§ 1º e 2º, 647, parágrafo único, 919, § 2º, 927, § 4º, 980, parágrafo único, 1.013, § 4º, 1.021, § 4º, 1.022, parágrafo único e incisos I e II, 1.026, § 2º, 1.067 (que deu nova redação ao artigo 215 do Código Eleitoral – vide especialmente o § 6º), entre outros.

[2] Fundamentar é um ato de responsabilidade, de garantia política e democrática, indispensável para conferir legitimidade democrática ao pronunciamento judicial. Ainda que não concorde com todos os argumentos apresentados pelas partes, o juiz não pode decidir sem considerá-los, devendo, ainda, explicar a razão de os ter acolhido ou rejeitado.

[3] Na linha do art. 93, IX, da Constituição Federal.

[4] Para Alexandre Câmara, “tem-se decisão surpresa naqueles casos em que o juiz emite pronunciamento valendo-se de fundamento (de fato ou de direito) que não tenha sido submetido ao debate entre os participantes do processo.” CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 11.

[5] Alguns Enunciados aprovados pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) turvam a garantia do contraditório efetivo, eclipsando, a reboque, o dever de fundamentação judicial. Para fins deste artigo, vale citar os seguintes Enunciados: Enunciado 1 (Entende-se por “fundamento” referido no art. 10 do CPC/2015 o substrato fático que orienta o pedido, e não o enquadramento jurídico atribuído pelas partes); Enunciado 3 (É desnecessário ouvir as partes quando a manifestação não puder influenciar na solução da causa)”; e Enunciado 6 (Não constitui julgamento surpresa o lastreado em fundamentos jurídicos, ainda que diversos dos apresentados pelas partes, desde que embasados em provas submetidas ao contraditório”).

 

 

[6] STJ, EDcl no MS 21.315/DF, Rel. Min. Diva Malerbi (Desembargadora convocada do TRF-3), Primeira Seção, DJe 15.06.2016.

[7] STJ, AgInt no AREsp 1.341.142/RS, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, DJ e 04.02.2019.

[8] STJ, EDcl no REsp 1.280.825/RJ, Rel. Min. Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 01.08.2017.

[9] STJ, AgInt no AREsp 1.124.598/SE, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 12.12.2017.

[10] MAZZOLA, Marcelo. Tutela jurisdicional colaborativa. Curitiba: CRV, 2017.

[11] Para Leonardo Carneiro da Cunha, “a concretização do princípio da cooperação acarreta um redimensionamento da máxima ‘iura novit curia’, fazendo com que o juiz consulte previamente as partes e colha suas manifestações a respeito do assunto, antes de aplicar o direito ao caso concreto. CUNHA, Leonardo Carneiro da. O processo civil no Estado Constitucional e os fundamentos do projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 209, jul./2012, p. 360.

[12] STJ, EDcl no REsp 1.280.825/RJ, Rel. Min. Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 01.08.2017.

[13] STJ, AgInt no REsp 1.699.989/SP, Rel. Min, Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF-5), Quarta Turma, DJe 06.04.2018; AgInt no AREsp 149798/PR, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 18.05.2018; AgInt nos EDcl no REsp 1684912/BA, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 17.05.2019.

[14] CÂMARA, Alexandre Freitas de. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 9.

[15] Como destaca Ravi Peixoto, na decisão surpresa “as partes são surpreendidas com um fundamento que não foi debatido previamente por elas e a única forma de se insurgirem é por meio de recurso, o que muitas vezes se torna até inviável”. PEIXOTO, Ravi. Os caminhos e descaminhos do princípio do contraditório: a evolução histórica e a situação atual. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 294, ago./2019, p. 132.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito Processual pelo UERJ; professor de Processo Civil da Emerj; coordenador de Processo Civil da ESA/RJ; vice-Presidente de Propriedade Intelectual do CBMA e advogado e sócio de Dannemann Siemsen.

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