Opinião

O Supremo Tribunal Federal pode decidir tacitamente?

Autor

  • Fernando Orotavo Neto

    é advogado professor licenciado da Universidade Candido Mendes (Ucam) e membro da Comissão de Direito Constitucional Processo Civil e Amicus Curiae do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

27 de outubro de 2019, 6h08

A instigante e provocativa perquirição, já lançada no título deste texto, encontra a sua razão de ser na redação do parágrafo único do art. 324 do Regimento Interno do STF (“RISTF”), cuja composição lhe foi conferida pela Emenda Regimental nº 21, de 30 de abril de 2007, na ocasião em que a Suprema Corte se encontrava sob a batuta da Ministra Ellen Gracie. Confira-se o texto, ainda hoje vigente: “Art. 324. Recebida a manifestação do(a) Relator(a), os demais ministros encaminhar-lhe-ão, também por meio eletrônico, no prazo comum de 20 (vinte) dias, manifestação sobre a questão da repercussão geral. Parágrafo único. Decorrido o prazo sem manifestações suficientes para recusa do recurso, reputar-se-á existente a repercussão geral.”

Como todos sabem, a repercussão geral é tema afeto à admissibilidade dos recursos extraordinários e consiste na análise sobre a existência ou não de questão constitucional com relevância social, política, econômica ou jurídica que transcenda os interesses subjetivos da causa. Este pressuposto constitucional, de natureza processual, é tão ostensivamente relevante que a EC nº 45/2004 determinou que, ao examiná-lo, a Suprema Corte só pode recursar a admissibilidade do apelo extremo, fundada na ausência de repercussão geral, pela manifestação de dois terços de seus membros. Eis o que vai determinado no § 3º do art. 102 da Carta da República: “§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”

Trata-se, portanto, inelutavelmente, de tema de competência (usada a palavra na sua acepção técnica) exclusiva do Supremo Tribunal Federal que exige a manifestação de pelo menos oito (8) dos 11 (onze) ministros da Corte. E quanto a isto não se admite questão.

Por igual, prescinde de qualquer discussão o fato de que não há qualquer óbice constitucional tendente a impedir que a referida análise (sobre a existência ou inexistência da repercussão geral) se realize no Plenário Virtual, criado para acelerar os julgamentos das causas postas sob a jurisdição da Corte Suprema e, assim, mitigar o gigantesco volume de processos que lhe é distribuído diariamente; tudo em perfeita consonância com o princípio constitucional da razoável duração do processo, insculpido no art. 5º, inciso LXXVIII da Lex Magna, com a redação que, também, lhe foi conferida pela EC nº 45/2004 (“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”).

A questão, entretanto, que intriga tantos quantos dela têm notícia, é a seguinte: pode a análise da repercussão geral ser formalizada e realizada por meio de manifestação tácita, sendo tolerável que o silêncio dos ministros possa ser computado como voto favorável à sua existência, tal como prevê o parágrafo único do art. 324 do RISTF?

Ora, não há dúvida de que o Supremo Tribunal Federal foi autorizado pela Emenda Constitucional nº 1/1969, que editou o novo texto da Constituição Federal de 1967, a formular normas de direito processual relativas ao processo e aos julgamentos dos feitos de sua competência originária ou recursal por meio de normas regimentais (EC 1/69, art. 120, parágrafo único, letra “c”); ou seja, que o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal possui força e eficácia de lei, em virtude da autorização expressa que lhe foi conferida pelo legislador constituinte (STF – Ag .Reg. nos EMB. DIV. no Ag.Reg. no Agravo de Instrumento nº 717.226/SÃO PAULO, Tribunal Pleno, Min. CELSO DE MELLO, j. em 07.11.2013). Igualmente, não é menos certo que a Constituição Federal, promulgada em 1988, recepcionou tais preceitos regimentais, mantendo, destarte, a competência normativa primária da Augusta Corte para, em sede meramente regimental, formular normas de direito processual no que concerne aos processos e feitos de sua competência originária ou recursal (RTJ 147/1010 – RTJ 151/278).

Acontece, entretanto, que, conquanto possua o regimento interno da Suprema Corte força e eficácia de lei, continuam as normas regimentais dele integrantes a deverem estrita obediência aos preceitos fundamentais. As a matter of fact, é exatamente por que o regimento interno do Supremo se afigura lei em sentido material, a despeito de não ter passado pelo crivo do processo legislativo próprio (sentido formal), que as normas regimentais devem, necessariamente, ser interpretadas conforme à Constituição, e não em seu desacordo.

Aliás, inexiste, no direito brasileiro, ao menos por ora, lei infraconstitucional de qualquer espécie, inclusive de ordem pública, que esteja imune ao controle de constitucionalidade; razão pela qual nem mesmo a Suprema Corte, ao formular normas regimentais, pode se demitir do dever de observar a Constituição, auto excepcionando-se e postando-se imune aos seus comandos.

Apesar disso, tudo o que fez o parágrafo único do art. 324 do RISTF, involuntariamente embora, foi violar o princípio constitucional da motivação das decisões judiciais, ao dispor que, na análise da existência ou inexistência da repercussão geral, o ministro que, no Plenário Virtual, tenha sido omisso em proferir seu voto, na realidade, proferiu voto tácito pela existência da repercussão geral. Isto se dá, porque, ainda que haja presunção derivada de norma regimental, que é do conhecimento de todos os ministros, no sentido de que a omissão (causa) produz o efeito de tornar existente a repercussão geral, todas as decisões judiciais devem, obrigatoriamente, ser fundamentadas, ao teor da norma constitucional contida no art. 93, IX da Carta Magna (“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”).

Diante dessa norma constitucional, transcrita literalmente, verifica-se que o processo judicial não pode conviver limpamente, honestamente, isentamente, com deferimentos ou indeferimentos implícitos, seja porque a outra parte tem o direito de saber a razão pela qual determinada medida judicial foi deferida ao seu ex adverso, para infirmá-la e interpor o recurso próprio, seja porque a própria parte, a quem foi dirigida decisão desfavorável aos seus interesses, possui igual direito de conhecer os motivos que levaram ao indeferimento da sua pretensão, para manifestar a sua irresignação, através do meio processual adequado.

Parece-me incontroverso, então, o fato de que qualquer decisão judicial cuja parte dispositiva venha a ser formalizada sem as razões correspondentes que lhe motivam e justificam, é inconstitucional; não apenas por violar o texto do art. 93, IX da Lei Maior, na sua letra e na sua única exegese possível, mas também porque tal modo de proceder viola os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (CR, art. 5º, incisos LIV e LV).

Todo jurisdicionado possui o direito subjetivo de saber o porquê uma decisão judicial foi tomada neste ou naquele sentido, ainda a mais uma decisão da Suprema Corte, cuja repercussão geral afeta milhares de processos em todo o país; assim como influencia futuras pretensões a serem formuladas pelos cidadãos e, sem qualquer sombra de exagero ou dúvida, constitui um verdadeiro norte para as decisões a serem tomadas pelos tribunais hierarquicamente inferiores. Qualquer criança de colo, desde a mais tenra idade, exige que a mãe lhe explique a razão de tê-la negado o chocolate antes do jantar. Não por melhor motivo, o célebre autor e poeta britânico Rudyard Kipling, mesmo sem ser jurisconsulto, já vaticinava: “Tenho seis criados honestos, que me ensinaram tudo o que sei: O Quê, Por Quê, Quando, Como, Onde e Quem.”

Daí o incensurável magistério do notável jurista italiano Michele Taruffo, para quem a motivação de uma decisão judicial é exatamente o ponto que lhe confere legitimidade democrática: l´obbligo di motivazione non è soltano uno strumento di garanzia processuale in senso stretto, ma si ricollega alla concezione generale dello Statto e del potere pubblico, che proprio nell´esercizio della giurisdizione trovano una manifestazione fondamentalle. (…) il pottere non è assoluto, e soprattutto non è occculto: al contrario, vige il principio di trasparenza, dell´esercizio potere, dato che la sua legittimazione non è piú fondada sul principio di autoritá, ma sulla legittimittà democratica (Il significato costituzionale dell´obbligo di motivazione, 1988, p. 41.).

Com efeito, o parágrafo único do art. 324 do RISTF, além de representar um nítido exemplo de retrocesso social, padece de um mínimo de proporcionalidade, especialmente sob o aspecto da vedação da proteção deficiente, só se prestando a, muito notadamente, promover o descumprimento de preceitos fundamentais da Constituição da República, e, conseguintemente, desafiar a propositura de uma ADPF (“Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental”) pelos seus legitimados competentes.

Trocando em miúdos, a vontade do ministro que se omitiu na análise da existência ou não da repercussão geral pode ter sido manifestada ex certe conscientia, diante do texto expresso contido na multireferida norma regimental, mas, certamente, a decisão judicial sobrevinda não encontra respaldo na Constituição da República, pela ausência de requisito essencial (“motivação”) inerente ao Estado Democrático de Direito, que não pode ser conspurcado por qualquer lei infraconstitucional, ainda que criada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (ou melhor: principalmente as criadas pelos ministros do STF, que são os gatekeepers da Constituição).

A resposta, então, para a pergunta lançada no título deste artigo, só pode ser negativa. E, a meu sentir, é não; mil vezes não; um tonitruante não! O Supremo pode muito, mas não pode tudo, já que a atuação dos seus ministros também encontra os seus limites na Constituição da República; Carta Magna a que todos do povo se submetem, indistintamente.

Relembre-se, por derradeiro, a advertência de Shakespeare, em “Medida por medida”, ao afirmar que “não podemos fazer da lei um espantalho” (“We must not make a scarecrow of the law” – Act II, Scene I), pois, caso contrário, “as nossas leis estão mortas” (“so our decrees, Dead to infliction, to themselves are dead; And liberty plucks justice by the nose/ The baby beats the nurse, and quite athwart /Goes all decorum” – Act I, Scene III).

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