Opinião

Relação entre investidor e prestador de serviços nos fundos de investimento

Autor

  • Eduardo Calich Luz

    é advogado do Trigueiro Fontes Advogados pós-graduando em Direito Processual Civil pela FGV-SP e graduado em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte.

21 de outubro de 2019, 6h38

A natureza da relação jurídica entre investidores e prestadores de serviço no âmbito dos fundos de investimento não ficou clara na Medida Provisória 881 de 2019 (“MP da Liberdade Econômica"), convertida na Lei 13.874/19. O que restou previsto foi a inserção de disposições legais sobre o conceito de fundo de investimento, regulamentações e responsabilidades no Livro III, Capítulo X, do Código Civil, artigos 1.368-C a 1.368-F[1].

Com amplitude maior do que o disposto no artigo 3º da Instrução CVM 555/14[2], o artigo 1.368-C do Código Civil, inserido pela MP da Liberdade Econômica, define fundo de investimento como "uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado a aplicações em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza". Em termos práticos, trata-se de um instrumento coletivo por meio do qual há captação de recursos dos investidores, os quais passam a integrar o fundo, que, por sua vez, é administrado e gerido por profissionais especializados[3], cujo dever é conferir máxima rentabilidade para a obtenção de retorno decorrente de aplicação em ativos financeiros.

O artigo 2º, inciso I, da Instrução CVM n.o 555/14, dispõe que o administrador deve ser pessoa jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários e responsável pela administração do fundo. E a gestão do fundo não precisa ser necessariamente realizada pela pessoa do administrador, uma vez que, nos termos do artigo 56, § 1º, da Instrução CVM 409/04, o administrador poderá contratar, em nome do fundo, terceiro[4] para gerir a carteira de investimentos.

Investidores, por sua vez, podem ser definidos como as pessoas físicas ou jurídicas que acessam o mercado para negociar valores mobiliários de emissores. O Capítulo VII-A da Instrução CVM 539/13 apresenta duas categorias de investidores, ou seja, os qualificados e profissionais, que leva à conclusão de que existe uma categoria não enquadrada entre essas, o que se denomina no mercado como investidores de "varejo". Estes últimos são basicamente os residuais, não profissionais ou não qualificados, os investidores de menor porte.

As variações entre as categorias de investidores podem envolver, ainda, o capital investido. Por exemplo, se o montante investido for superior a R$ 1.000.000,00 (hum milhão de reais), tem-se o investidor qualificado em sentido estrito[5], e, se acima de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), o investidor profissional.

O investidor de varejo não possui, em regra, a assessoria jurídica, conhecimento técnico e expertise do investidor qualificado e do investidor profissional, conclusão que deve também decorrer tendo-se em vista o tratamento que a própria Instrução CVM 539/13, em seu artigo 9º-A, concede a essas três categorias, a exemplo da dispensa da verificação, pelos prestadores de serviço do mercado de capitais, da adequação dos produtos, serviços e operações ao perfil de alguns investidores qualificados.

Essa vulnerabilidade presumida do investidor de varejo se assemelha à presunção de vulnerabilidade do consumidor[6], conceito que já foi dividido em quatro subcategorias pelo STJ, como vulnerabilidade técnica, jurídica, socioeconômica e informacional.[7]

O CDC é aplicável às instituições financeiras, conforme o Enunciado no 297 da Súmula do STJ[8]. E, nos termos da teoria finalista do conceito de consumidor, o investidor pessoa natural que contrata um serviço para rentabilizar as próprias finanças é, independentemente de sua categoria, o destinatário final do bem, assim como a instituição financeira que administra o fundo é fornecedora, caracterizando a relação de consumo já reconhecida pelo STF.[9]

O enquadramento de qualquer administrador de fundo de investimento como instituição financeira, ou mesmo do gestor pessoa natural, que pode equiparar-se à instituição financeira nos termos do artigo 17, parágrafo único, da Lei n.o 4.595/64[10], é discussão sem maior relevância para o escopo do presente artigo, sobretudo considerando que o STJ já indicou que o administrador do fundo de investimento seria também fornecedor de serviços[11] e, consequentemente, não poderia transferir responsabilidades da prestação de serviço ao gestor, nos termos do artigo 51, inciso III, do CDC[12].

Por outro lado, o STJ já ressalvou a possibilidade de exclusão da relação de consumo quando se estiver diante de um investidor profissional, considerando que não haveria "hipossuficiência" na prestação do serviço com o fundo de investimento. O julgado do STJ mirou no fato de que o investidor profissional movimenta "elevada soma de forma habitual e institucionalizada[13], não se justificando a aplicação do CDC.

O fato é que, da forma que a jurisprudência vem se conduzindo, há uma tendência de que os investidores de varejo, considerados mais vulneráveis, sejam enquadrados em uma relação de consumo com os fundos de investimentos. E os investidores qualificados e profissionais, que movimentam expressivas somas de dinheiro direcionadas a investimentos, não sejam submetidos à relação de consumo, uma vez que não haveria a vulnerabilidade a justificar o reconhecimento da relação consumerista, isto é, o tratamento é de equiparação técnica, jurídica, socioeconômica e informacional em relação aos prestadores de serviço nos fundos de investimento, excluindo-se a aplicação do CDC.

Assim, para evitar a simples interpretação da tendência do enquadramento da natureza da relação jurídica entre investidores e prestadores de serviço no âmbito dos fundos de investimento, entendemos que a MP da Liberdade Econômica (convertida na Lei n.º 13.874/19), poderia ter sido mais clara sobre a matéria, trazendo mais segurança jurídica na relação contratual entre as partes envolvidas.


[1] As regras de limitação de responsabilidade dos prestadores de serviço não serão objeto de análise no presente artigo.

[2] O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.

[3] CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Fundos de Investimento. In: Comissão de Valores Mobiliários. Direito do Mercado de Valores Mobiliários. Rio de Janeiro, 2017. P. 614.

[4] Pessoa natural ou jurídica autorizada pela CVM para o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários, nos termos do artigo 2o, inciso XXX, da Instrução CVM 555/14.

[5] Considerando que a Instrução CVM 539/2013 enquadra o investidor profissional como qualificado (art. 9o-B, I).

[6] (MIRAGEM, Bruno. Abuso do direito: ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no direito privado. 1a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013).

[7] REsp 1.195.642/RJ. Rel. Min. Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 13.11.12. DJe 20.11.12.

[8] O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.

[9] Rcl 10.424/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgado em 21.09.12. DJe 26.09.12.

[10] Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras às pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.

[11] REsp 1.326.592/GO. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. Quarta Turma. Julgado em 07.05.19. DJe 05.08.19.

[12] São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: […] III – transfiram responsabilidades a terceiros;

[13] REsp 1.326.592/GO. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. Quarta Turma. Julgado em 07.05.19. DJe 05.08.19.

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  • é advogado do Trigueiro Fontes Advogados, pós-graduando em Direito Processual Civil pela FGV-SP e graduado em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte.

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