Opinião

Restrição à competência delegada previdenciária na justiça estadual

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17 de novembro de 2019, 6h33

A sabedoria popular recomenda que não se deve colocar a carroça na frente do boi, no sentido de que não é adequado atropelar a ordem das coisas ou buscar o resultado de algo sem cumprir as etapas necessárias para alcançá-lo.

Essa regra é de ouro no processo legislativo. Quando uma lei ordinária depende inicialmente da alteração da Constituição Federal para com esta tornar-se compatível, é preciso primeiro emendar a Lei Maior e, somente depois de concluída essa etapa, iniciar a discussão sobre ato normativo cuja matéria afrontaria o texto constitucional anterior. 

Não foi, infelizmente, a cautela adotada pelo Congresso Nacional ao aprovar a Lei 13.876, de 13 de setembro de 2019, que, no seu artigo 3º, modificou a Lei 5.010/66 (Lei de Organização da Justiça Federal). O dispositivo restringiu a competência delegada previdenciária da justiça estadual às causas ajuizadas em comarcas de domicílio do segurado situadas a mais de setenta quilômetros da sede de vara federal.

Entretanto, na edição da lei, vigorava a redação original do § 3º do artigo 109 da Constituição Federal, que delegava à justiça estadual a competência para as causas previdenciárias, sempre que a comarca não seja sede de juízo federal; portanto, sem possibilidade de restrição de distância pela legislação ordinária.

É certo que sobreveio a Emenda Constitucional 103, promulgada em 12 de novembro de 2019, facultando à lei delegar à justiça estadual a competência para as causas previdenciárias. Tradicionalmente, o artigo 15, inciso III, da Lei 5.010 atribuía às comarcas do interior onde não funcionar vara federal processar e julgar os feitos ajuizados em face do INSS, sem limitação.

Fácil concluir que a alteração legal para restringir as comarcas delegadas somente se revelou possível após a modificação do art. 109, § 3º, da CF pela promulgação da EC nº 103, a qual não torna supervenientemente constitucional o dispositivo acrescido pela Lei 13.876.

Nossa Suprema Corte possui vasta e antiga jurisprudência consolidada a respeito da inadmissibilidade, no sistema jurídico brasileiro, da figura da constitucionalidade superveniente (ADI 2.158 e 2.189, rel. Min. Dias Toffoli; RE 346.084, Rel. Min. Marco Aurélio; RE 343.801, Rel. Min. Ayres Britto, RE 470.085-AgR/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia; RE 472.031/MG, Rel. Min. Ellen Gracie).

O ordenamento jurídico, por pressupor respeito à Constituição, não pode tolerar e conviver com sua própria violação até posterior convalidação ou recepção da norma inconstitucional. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e deve ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua edição.

Tampouco seria jurídico afirmar que a constitucionalidade da Lei 13.876 deve ser analisada após sua vacatio legis em janeiro de 2020. O juízo de constitucionalidade judicial é realizado sob o plano da validade (conformidade com o ordenamento jurídico), na edição do ato normativo, e não depende da eficácia ou da vigência da norma sindicada.

Nesse sentido, “a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admite o fenômeno da constitucionalidade superveniente. Por essa razão, o referido ato normativo, que nasceu inconstitucional, deve ser considerado nulo perante a norma constitucional que vigorava à época de sua edição” (ARE 683849 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe-208 28-09-2016).

Além do momento inoportuno que acarreta a inconstitucionalidade e exige a elaboração de novo ato normativo, cabe crítica ao legislador na simplicidade da redação engendrada, diante da complexidade da modificação de competência para processar centenas de milhares de casos já ajuizados, com perícias e audiências realizadas ou a serem realizadas, entre outros atos processuais. 

Sabe-se que a delegação da competência previdenciária nas comarcas que não sediam vara federal mereceu especial atenção do legislador constituinte para garantir, sobretudo aos segurados mais necessitados, acesso à justiça nas lides contra o INSS, sem a dependência de deslocamento até os fóruns da justiça federal, restritos em 1988 às capitais e a algumas cidades de maior contingente populacional no interior dos estados.

É fato, de outro lado, que a justiça federal expandiu suas subseções consideravelmente nas três últimas décadas, ostentando grande capilaridade no interior dos estados, o que, justificadamente, animou o constituinte derivado a inverter a lógica da delegação de competência à justiça estadual, que agora está condicionada aos termos da lei. 

Contudo, todo o avançado processamento nas varas estaduais, com provas produzidas, decisões e sentenças, em fase de conhecimento ou de cumprimento, não poderia ser desprezado pelo legislador, à luz das regras de fixação de competência e celeridade de tramitação, recomendando uma norma de transição, à semelhança do que foi adotado no artigo 75 da Lei 13.043/14 para as execuções fiscais federais, o qual previu que os feitos anteriormente ajuizados na justiça estadual não fossem alcançados pela alteração.

Nesse sentido, em boa hora disciplinou o Conselho da Justiça Federal que a alteração perpetrada pela Lei 13.876 não está contemplada pelas ressalvas finais do artigo 43 do CPC, determinando-se, portanto, a competência delegada da justiça estadual no momento do registro ou da distribuição para as ações propostas antes de 1º de janeiro de 2020. Mas, como a questão dependerá inicialmente da interpretação em decisão jurisdicional dos juízes estaduais e federais, avizinham-se milhares de conflitos de competência, tendentes a paralisar os processos até definição do juízo competente, com evidentes prejuízos à prática de atos processuais e à celeridade dos feitos.

Também não se podem ignorar, diante das inúmeras especificidades territoriais de um país continental, as dificuldades que a justiça federal terá de superar, por exemplo, no transporte intermunicipal de segurados hipossuficientes, domiciliados até setenta quilômetros de distância, para perícias na sede do juízo ou para realizá-las no local de residência dos jurisdicionados por peritos não cadastrados na vara federal.

Seria extremamente recomendável que, no curso do processo legislativo, fosse ouvido o Conselho da Justiça Federal, cuja composição contempla os presidentes dos tribunais regionais federais, além da OAB, AGU, Defensoria Pública da União e MPF, a fim de que os problemas estruturais decorrentes da restrição da competência delegada pudessem ser debatidos e, eventualmente, solucionados de forma razoável pelo legislador, evitando maiores prejuízos aos jurisdicionados.

De toda sorte, como o ato normativo que nasce inconstitucional é nulo perante a norma constitucional vigente à época de sua edição, aguarda-se que os juízes e as cortes nacionais competentes declarem a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei 13.876 e que outra norma legal venha disciplinar a delegação de competência previdenciária, de acordo com o ordenamento jurídico e com adequada consideração dos desafios dessa transição.

Assim, o boi à frente poderá puxar a carroça, na direção desejada da ordem constitucional, pois em jogo está a garantia fundamental do cidadão, sobretudo dos segurados mais carentes: o pleno acesso à justiça.

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