Opinião

As Ordenações Filipinas ainda estão em vigor?

Autor

  • Fernando Orotavo Neto

    é advogado professor licenciado da Universidade Candido Mendes (Ucam) e membro da Comissão de Direito Constitucional Processo Civil e Amicus Curiae do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

11 de novembro de 2019, 7h04

Dada a instigante e provocativa perquirição lançada no título deste texto, explico logo a sua razão, para que não digam por aí que “o Orotavo ficou maluco”. Num processo que patrocino, tão logo foram arroladas as testemunhas da parte contrária, fui impelido a redigir uma contradita, com a finalidade de arguir a suspeição de uma delas, cujo prazo (ou melhor: momento processual oportuno), como todos sabem, se dá “entre a qualificação desta e o início do seu depoimento” (Superior Tribunal de Justiça, REsp 735.756, ministro João Otávio de Noronha).

Recorrendo ao novo CPC, pude verificar que são suspeitos “o inimigo da parte ou o seu amigo íntimo” (CPC, artigo 447, parágrafo 3, inciso I). Até aí nada de novo, pois o CPC/1973, em seu artigo 405, parágrafo 3º, inciso III, já trazia regramento legal absolutamente idêntico ao ora vigente; conquanto, exatamente como o CPC/2015, também não se tenha preocupado em definir ou conceituar quem, afinal, poderia ser qualificado juridicamente como “inimigo da parte” ou seu “amigo íntimo”.

Já curiosíssimo, voltei mais um pouquinho no tempo, e graças à biblioteca herdada do vovô, fundador do escritório, resolvi consultar o CPC/1939, à procura dos referidos conceitos. A emenda, entretanto, saiu pior do que o soneto, no que passo a explicar o porquê…

No CPC/1939, deparei-me com o artigo 235, que era de uma vacuidade à toda prova. Diz ele: “Poderão depor como testemunhas as pessoas que a lei não proíbe”. Ultrapassada a frustração inicial, cheguei ao artigo 241 e encontrei o amigo íntimo, pois lá dizia: “A testemunha não poderá se recusar a depor, salvo: I – sobre questões a que não possa responder sem deshonra própria, ou de seu cônjuge, ou parente em grau sucessível, ou amigo íntimo, ou sem expô-los a perigo de demanda ou de dano patrimonial imediato.”

Mas Deus, cadê o inimigo da parte? E nada, ainda, do tal do inimigo da parte. Fui, então, ao Código Civil de 1916 e lá descobri que, em seu artigo 142, também não podiam depor (i) os loucos de todo o gênero; (ii) os cegos e surdos, quando a ciência do fato, que se quer provar, dependa dos sentidos que lhes faltam; (iii) os menores de dezesseis anos; (iv) o interessado no objeto do litígio, bem como o ascendente e o descente ou o colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consanguinidade ou afinidade; e, finalmente, (v) os cônjuges.

Embora sem ainda encontrar o “inimigo da parte”, pelo menos entendi a razão do artigo 235 do CPC/1939. Ele não era vago; apenas se reportava ao Código Civil, implicitamente embora. Quem sabe Francisco Campos, ministro da Justiça à época e principal figura por detrás do CPC de 1939, tenha inspirado a teoria do diálogo das fontes, apresentada por Erik Jayme, em Haia, em 1995. Brincadeira minha: não há registro histórico de que o jurista alemão tenha conhecido o jurista brasileiro ou se tenha inspirado em seu trabalho.

Inconformado, continuei à procura do tal do “inimigo da parte”. Voltei ao CPC/1939 e lá me deparei com as hipóteses de parcialidade do juiz, onde o tal do ennemi se encontrava finalmente mencionado. Regozijei-me, por um momento, e retornando à biblioteca deixada pelo vovô, pude verificar que na vigência do CPC de 1939, os amigos íntimos eram considerados suspeitos para depor por força de previsão legal expressa relativa às testemunhas (artigo 241, I); e os inimigos da parte por força da aplicação sistemática do artigo 185, II, referente à suspeição do juiz, que assim declarava: “Art. 185. Considerar-se-á fundada a suspeita de parcialidade do juiz quando: II – amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes”.

Graças à coletânea de jurisprudência, denominada Revista Forense, que me foi legada pelo vovô, desde a sua edição primeira — santo vovô! — pude compreender a razão de os inimigos capitais da parte, assim como os amigos íntimos, também não poderem depor, já ao tempo da vigência do CPC de 1939. Tratava-se de orientação jurisprudencial fundada na interpretação sistemática do artigo 185, II, do CPC vigente. Razoável… so much reasonable!

Mas e aí? Voltei até 1939 e, mesmo assim, não achei os conceitos de “inimigo capital” ou “amigo íntimo”. O que fazer? Pouco havia a fazer, muito obviamente, se eu não me predispusesse a voltar ainda a mais no tempo. Loucura? Talvez, mas quem me conhece sabe que eu não durmo antes de matar a minha curiosidade.

E, assim, lá vou eu de volta ao Brasil colônia, onde vigorava o mesmo sistema jurídico que existia em Portugal, o das Ordenações Reais. E quem gosta de história, como eu, bem sabe que nesta época vigoravam as Ordenações Afonsinas (1446), as Ordenações Manuelinas (1521), e, por último, as Ordenações Filipinas ou Código Filipino (1603), obra de Filipe I, que, entretanto, representava, em verdade, mera compilação das Ordenações Manuelinas acrescidas de leis posteriores e extravagantes.

Você, caro leitor, certamente, pode imaginar a minha felicidade, então, quando encontrei nas Ordenações Filipinas, o conceito de inimigo capital da parte. No Livro III, Título LVI (“Que pessoas não podem ser testemunhas”), parágrafo 7, está lá: “O inimigo capital de algum não será perguntado por testemunha contra elle. E declaramos ser inimigo capital de outro o que com elle algum tempo teve, ou tem feito crime, ou civel, em que se trate, e mova demanda de todos os bens, ou a maior parte delles; ou quê houvesse aleijado, ou malferido aquelle, que fosse dado por testemunha contra elle, ou contra sua mulher, seu filho, neto, ou irmão ou houvesse feito a cada humdelles algum grande furto; roubo, ou injuria, ou houvesse commettido adulterio com a mulher de cada humdelles, ou a testemunha houvesse morto, ou commettido cada hum dos ditos casos contra parte, ou contra sua mulher, filho, neto ou irmão” (no original).

Perfeito! Se a testemunha processou a parte, criminal ou civilmente; agrediu a parte ou a mulher da parte, seu filho, neto ou irmão; os furtou, injuriou, ou manteve relações sexuais com a mulher da parte, ou, ainda, atentou contra a vida da parte, de sua mulher, filhos, netos ou irmão, jamais poderia ela depor como testemunha na causa.

Apesar de feliz, por ter encontrado o conceito de inimigo (capital) da parte, o certo é que nas Ordenações Filipinas eu não encontrei o conceito de amigo íntimo — fato que, frustrado, antecipadamente confesso. Mas, tudo bem, uma vez que neste ponto (“inimigo da parte”) já estou habilitado a responder à pergunta feita no provocativo título deste texto.

Como o CPC de 2015 revogou expressamente o CPC de 1973, em seu artigo 1.046; o CPC de 1973 revogou expressamente o CPC de 1939, em seus artigos 1.211 e 1.219; e o CPC de 1939 revogou as disposições em contrário das Ordenações Filipinas, em seu artigo 1.052, o fato é que, em não havendo, em nenhuma das normas processuais do CPC de 1939 e nas leis processuais subsequentes, qualquer disposição sobre um novo conceito de “inimigo (capital) da parte”, penso eu que o conceito ou definição contida nas Ordenações Filipinas, no concernente a este tópico, ainda se encontra em vigor no ordenamento processual civil.

Para quem pensa que eu estou louco, chamo a atenção para o julgamento do REsp 36.911-8, relatado em 7 de dezembro de 1993 pelo ministro Torreão Braz, integrante da 4ª Turma do STJ, d’onde se colhe o ensinamento, por exemplo, de que os requisitos da escritura pública “continuam a ser disciplinados basicamente pelas Ordenações Filipinas”.

Nem tão louco assim, não é?

Nenhuma louquice, portanto, há em se afirmar que as Ordenações Filipinas ainda vigem no ordenamento jurídico-processual brasileiro no que concerne à definição ou conceito de “inimigo da parte”, dada a histórica omissão legislativa incorrida pelos Códigos de Processo Civil, posteriormente editados, sucessivamente, desde 1939 até 2015.

Certamente, os loucos de todo o gênero (risos), que, assim como eu, chegaram até aqui, acompanhando o meu destrambelhado raciocínio, devem estar se perguntado: – e quanto ao amigo íntimo? Bom, quanto a este, só me resta propor um conceito, uma vez que ele inexiste legalmente, até onde eu sei. E lá vai a definição (ou conceito, como se preferir), claramente inspirada nas Ordenações Filipinas: “E declaramos ser amigo íntimo de outro aquele que frequenta, habitualmente, o lar, moradia, domicílio ou residência de uma das partes; ou aquele que desfruta habitualmente da particular convivência da parte ou do seu cônjuge, pais, filhos e irmãos”.

Àqueles que insistirem em me tachar de louco, vos digo: desatinado, talvez; curioso, seguramente; insone, com certeza!

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!