Segunda Leitura

Os desafios da inteligência artificial no Poder Judiciário

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

31 de março de 2019, 8h00

Spacca
A inteligência artificial, pouco a pouco, invade todas as áreas de produção e serviços, gerando medo e perplexidade nos atingidos. As reações são diversas. Parte das pessoas adapta-se aos novos tempos e segue na busca de uma convivência pacífica com os novos tempos. Mas uma parcela significativa —geralmente os mais velhos —afasta-se da luta e abandona o mercado de trabalho.

Pesquisa em 2062 atividades que serão atingidas pela automação indica o percentual deste impacto, ou seja, em quais será ele será baixo, quando será médio e quais serão as mais atingidas. [1] Por exemplo, psicanalistas e gerentes de recursos humanos sofrerão um percentual de apenas 35% de interferência. Contadores e jornalistas, entre 35% e 65%. Já nas profissões de professor de idiomas, médico cirurgião, desenhista técnico, tradutor, alfaiate, recepcionista e ascensorista, o índice será superior a 65%. Tudo isto virá acompanhado de uma desregulamentação cada vez maior.

Nenhum exemplo se compara ao aplicativo Uber, onde milhares de pessoas colocam-se disponíveis para transportar pessoas em seus veículos particulares, através de um contrato informal entre o interessado, a operadora e o motorista. Todos os contatos são feitos através da internet e a partir de um telefone celular, sendo o pagamento objeto de desconto em um cartão de crédito.

Esta simplificação do contrato de transporte cai ao gosto dos mais jovens. E não poderia ser de outra forma, já que as novas gerações tudo fazem a partir de um celular, nem sequer se interessam pelas transmissões na TV ou mesmo por computadores fixos.

Se assim é e cada vez mais será, justo é que se pense em um próximo passo: como serão os serviços da Justiça em 2, 5 ou 10 anos? Como combinar este novo tempo de informalismo e automação com as fórmulas seculares consagradas em códigos de processo e regimentos internos dos tribunais?

Indo ao mundo real, um jovem estudante de Direito de hoje se amoldará às regras de processo e de conduta, como o tratamento de excelência? À espera de anos por um julgamento em um tribunal superior? A audiências de ouvida de testemunhas pessoalmente, quando poderiam depor via celular? Como resolver o conflito entre um mundo que se transforma a cada dia e um sistema de Justiça atrelado a raciocínios e hábitos seculares?

Um exemplo. O Projeto de Lei do Poder Executivo, de nº 882 de 2019, prevê a inclusão de um artigo 7º – C da Lei 12.037, de 2009, criando um Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais e, quando possível, de íris, face e voz, para subsidiar investigações criminais. [2] Muitos enxergam nesta iniciativa ofensa ao direito de intimidade, resguardado no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.

Ocorre que no mundo real, para entrarmos em qualquer edifício comercial de cidade de grande porte, somos obrigados a fornecer nossos dados, tirar fotografia e, por vezes, fornecer a impressão digital. Quem não se submete, não entra.

Estaremos diante de um conflito entre o mundo das abstrações jurídicas e a realidade? É possível opor-se a esta e outras modificações? Devo resistir à mudança de forma de tratamento, que leva o motorista do Uber a chamar-me pelo prenome, ainda que meus cabelos brancos indiquem décadas de vida? Preparo-me para o presente? Ou aferro-me ao passado?

Estas dúvidas já são, e mais ainda serão, transportadas para os tribunais. Seus dirigentes deverão estar preparados para os novos tempos, porque eles virão, goste-se ou não.

Preparar-se para os novos tempos não significa apenas aprimorar o processo eletrônico, pois isto não é novidade alguma e já existe em tribunais de todos os continentes. É muito mais do que isto. É saber manejar o inconformismo da sociedade com a demora, a quebra do formalismo, a exigência cada vez mais de transparência (a Lei nº 12.527, de 2011,trata do acesso às informações) e outras transformações sociais. E, entre outras coisas, adequar a inteligência artificial às Varas e Tribunais.

No Reino Unido, o órgão que supervisiona os Tribunais Civis recomendou soluções on-line em causas no valor de até 25.000 libras, como forma de desafogar o sistema. Nesta linha,

O modelo de resolução de disputas on-line (ODR) proposto no relatório prevê um processo de três níveis: avaliação por meio de serviços e informações interativas, negociação com "facilitadores" on-line e, finalmente, se o acordo não for alcançado, resolução por um juiz treinado para tal tipo de submissões. Apenas o juiz precisa ser legalmente qualificado. Se necessário, as audiências por telefone
poderiam ser incluídas no último estágio. As decisões do juiz on-line seriam executáveis como qualquer julgamento do tribunal. [3]

No âmbito dos direitos do consumidor, a União Europeia criou uma plataforma chamada “On line dispute resolution”, [4] através da qual grande parte das reclamações são resolvidas fora do Judiciário.

Esta realidade já está entrando nos escritórios de advocacia e "foi pensando na rápida percepção de padrões que as inteligências artificiais produzidas através da plataforma Watson, desenvolvida pela IBM, que a equipe do consultório de advocacia Urbano Vitalino, empresa de serviços jurídicos, adquiriu uma versão personalizada da tecnologia. [5]

O que começa a introduzir-se na advocacia, por óbvio deverá entrar no Poder Judiciário, onde as causas repetitivas constituem um problema que importa em elevados custos econômicos e demora no julgamento das demandas. Por exemplo, os Juizados Especiais recebem dezenas de ações assemelhadas envolvendo danos morais contra bancos. Não faz sentido que juízes e servidores dediquem tempo a audiências de tentativa de conciliação, quando isto poderia ser feito através de um sistema de inteligência artificial que aproximasse as partes de uma solução de consenso. Note-se que os fatos de não estarem os envolvidos frente a frente auxilia na composição, pois evita a animosidade pessoal.

Mas, indo um passo à frente, imagine-se que os dirigentes dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário não se sensibilizem para os novos tempos. Suponha-se que não ouçam os jovens juízes —e são muitos — que estudam as soluções tecnológicas e queiram inovar na área. Que creiam que tudo deve continuar como está, milhões de processos ao sabor de dezenas de recursos e quatro instâncias, adiando por anos a solução do conflito.

Esta posição poderá levar à criação de órgãos particulares de solução de conflitos, algo inimaginável duas décadas atrás. Com efeito, grupos de profissionais com boa credibilidade podem criar plataformas para aproximar as pessoas, via pedidos on line, sem qualquer formalismo e a partir de um celular. Havendo acordo, este certamente será cumprido. Mas, se não o for, poderá ter força de título executivo extrajudicial (CPC, art. 784, incisos III e IV), desde que seja formalizado.

Aliás, isto já começa a tornar-se realidade, pois:

No Brasil, timidamente, softwares de ODR vêm ganhando espaço. No banco de dados da Associação Brasileira de Lawtechs & Legaltechs (AB2L) — entidade que visa apoiar o desenvolvimento de empresas que oferecem produtos ou serviços inovadores por meio do uso de recursos tecnológicos para a área jurídica –, encontramos as empresas Acordo Fechado, Concilie Online, eConciliar, Jussto, Mol e Sem Processo, as quais prestam serviços de resolução de disputas no campo virtual. [6]

Em suma, o futuro chegou e, aos que insistirem em ignorá-lo, só resta o
caminho da aposentadoria e das recordações de seu tempo,  acompanhadas de protestos contra o mundo atual. Com certeza, não é uma boa opção de vida.


[1] Jornal O Estado de São Paulo, “Um futuro mais humano no trabalho”, 30/3/2019, Caderno Especial Mercado de Trabalho, p. 8.

[2] Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019. Acesso 29/3/2019.

[3] Disponível em: https://www.theguardian.com/law/2015/feb/16/online-court-proposed-to-resolve-claims-of-up-to-25000. Acesso em 30/3/2019.

[4] Disponível em: https://ec.europa.eu/consumers/odr/main/?event=main.privacyForConsumer2.show. Acesso em 30/3/2019.

[5] Disponível em: https://canaltech.com.br/inteligencia-artificial/inteligencia-artificial-da-ibm-esta-ajudando-escritorio-de-advocacia-brasileiro-106622/. Acesso em 30/3/2019.

[6] Disponível em: https://www.ab2l.org.br/online-dispute-resolution-odr-e-ruptura-no-ecossistema-da-resolucao-de-disputas/. Acesso em 30/3/2019.

Autores

  • é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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