Opinião

A formação do dever internacional de redução de riscos de desastres

Autor

  • Délton Winter de Carvalho

    é pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres University of California Berkeley EUA (com bolsa CAPES); doutor e mestre em Direito Unisinos; professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS nível Mestrado e Doutorado.

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10 de março de 2019, 7h27

Apesar de se tratarem de eventos que acompanham historicamente a humanidade, as décadas recentes apresentam uma elevação significativa das ocorrências tanto dos chamados desastres “naturais” como dos “antropogênicos”. Diante das expectativas provenientes dos cenários climáticos previstos para as próximas décadas, pode-se antever um agravamento de eventos climáticos extremos e de suas consequências. Em conformidade com o último World Disaster Report, elaborado pela International Federation of Red Cross and Crescent Societies, apenas na década entre 2006-2016 ocorreram mais de 771 mil mortes atribuídas a desastres e dois bilhões de indivíduos foram afetados por eventos severos. Segundo esse relatório, os danos excederam US$ 1,5 trilhão[1].

O Direito Internacional vem, de longa data, abordando a matéria dos desastres, remontando às suas origens no primeiro desastre moderno, o terremoto de Lisboa de 1755[2]. Contudo, seu principal foco, numa primeira geração histórica de normas de Direito Internacional, foi para resposta pós-desastres. Em outras palavras, historicamente, o Direito Internacional dos Desastres (International Disaster Law – IDL) vem sendo mais atento e eficiente no “lado direito” do “círculo de gestão de riscos de desastres”, o que significa nas fases de resposta de emergência, compensação e reconstrução[3]. Apenas recentemente vem ocorrendo uma destacada mudança na compreensão do papel do Direito Internacional na direção também da gestão dos desastres a partir das fases da prevenção, da mitigação e do preparo aos desastres. Trata-se, portanto, a exemplo da própria redução de riscos de desastres (Disaster Risk Reduction – DRR), de “uma espécie de ‘segunda geração’ dentro do direito internacional dos desastres, do qual as ramificações e implicações jurídicas ainda estão por ser inteiramente exploradas”[4].

Nesta nova fase, o Direito Internacional dos Desastres (DID) deve ser permeado por uma racionalidade circular em que todas as fases de um processo de gestão de desastres têm em comum a ênfase sobre a necessária gestão dos riscos de desastres, unindo todas essas fases coerentemente. Com isso, esse ramo apresenta uma autonomia e identidade centrada fortemente na necessidade de gestão de riscos graves, apresentando um portfólio interconectado de funções, a partir de uma constante ordem de gestão de riscos em todas elas. Essa perfectiva, que apresenta a gestão de risco como elemento constituinte da própria racionalidade do Direito dos Desastres, atribui ao mecanismo da redução de riscos de desastres um protagonismo jurídico e sua inserção em todas as fases de um evento extremo[5]. Apesar desse destaque, o Direito Internacional dos Desastres vem sendo construído ainda de forma bastante fragmentada, sendo necessária uma maior análise sobre a estrutura normativa da Gestão de Riscos de Desastres (Disaster Risk Management – DRM) e, dentro dele, das estratégias de redução de riscos de desastres.

Num primeiro momento, o Direito Internacional dos Desastres apresentava uma perspectiva exclusivamente de apoio humanitário a populações afetadas por desastres e guerras. Em 1971, é fundada a United Nations Disaster Relief Office (Undro), agência da ONU. O crescimento recente da necessidade e do interesse do Direito Internacional pela redução dos riscos de desastres e suas implicações legais são demonstradas pela formação de um significativo corpo normativo internacional sobre o tema. Apesar de fragmentado (fragmented legal network), este começa a formar um sistema capaz de gerar padrões de decisão e orientações para as legislações nacionais acerca do tema. Essas experiências nacionais bem-sucedidas (como better practices), por seu turno, retroalimentam o sistema internacional numa matriz bottom-up, servindo novamente de guia para um processo top-down.

Em 1989, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a década de 1990 como a década internacional para a redução dos desastres naturais (International Decade for Natural Disaster Reduction – IDNDR), formando uma primeira fase de aumento da conscientização acerca do tema. O objetivo dessa proclamação era “reduzir, por meio de ações internacionais concertadas, especialmente em países em desenvolvimento, a perda de vidas, danos à propriedade e perturbações sociais e econômicas causadas por desastres naturais”[6]. Naquela década, mais especificamente em 1994, ocorreu a primeira World Conference on Natural Disaster Reduction (em Yokohama), na qual foram aprovadas as Guidelines for Nautral Disaster Prevention, Preparedness and Mitigation, também conhecidas como Estratégia de Yokohama[7]. É neste momento em que há uma conscientização da elevação dos níveis de frequência e intensidade dos desastres naturais e tecnológicos a níveis sem precedentes[8].

Na década seguinte, foi criada, em nível de secretaria permanente, a International Strategy for Disaster Reduction (UNISDR), com o intuito de difundir uma cultura de prevenção a desastres, a ser exercida em nível doméstico. Em 2005, a segunda World Conference on Natural Disaster Reduction, realizada em Hyogo, teve como resultado o Hyogo Framework for Action 2005-2015: Building the Resilience of Nations and Communities to Disasters. O escopo do Hyogo Framework é prover “uma abordagem estratégica e sistemática para reduzir as vulnerabilidades e os riscos para os perigos através do desenvolvimento de instituições, mecanismos e capacidades mais fortes para construir resiliência, com o objetivo geral de uma integração efetiva da Redução de Riscos de Desastres nas políticas de desenvolvimento sustentável”[9].

Na década atual, há um aprofundamento do papel atribuído e nas referências feitas por documentos internacionais à redução de riscos de desastres. A característica marcante desta década consiste na adoção de uma abordagem de múltiplos riscos e múltiplos setores (multi-hazard and multisectoral approach). A integração e convergência com outros ramos do Direito Internacional como o ambiental, direitos humanos, mudanças climáticas ou desenvolvimento sustentável é outra característica marcante da atual perspectiva do IDL. Nesta esteira histórica surge o Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015-2030[10], negociado durante a terceira World Conference on DRR e aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Com sete metas e quatro prioridades de ação, este apresenta como objetivo a redução substancial de riscos de desastres e vidas. Da mesma forma que os Estados detêm a responsabilidade primária para a redução de riscos de desastres, compartilhada com partes interessadas, incluindo governos locais e setor privado. Apesar de se tratar de acordo não vinculativo (non-biding), este exerce uma orientação a partir de standards para os atores nacionais na gestão dos desastres e na redução dos riscos. Em seguida, a incorporação do DRR no artigo 9 da International Law Comission’s Draft Articles on the Protection of Persons in the Event of Disasters, adotado em 2016, confirma não apenas o papel do Direito na redução dos riscos de desastres (prevenção, mitigação e preparo), mas principalmente um movimento na direção de constituição de um dever internacional de implementação de DRR, pelos países em suas esferas jurídicas nacionais. Apesar de tratar-se de outro instrumento não vinculativo, seu conteúdo serve, apesar da persistência de incertezas interpretativas, como um importante padrão (standard) e guia interpretativo e decisório, sempre a partir de uma premissa de encontrar “um equilíbrio entre este intento de protegera as pessoas e o princípio da soberania das Nações”[11].

Desta forma, o DRR como um dever de Direito Internacional ganha forma a partir de uma série de tratados internacionais e regionais, acordos e diretrizes, assim como legislação e instrumentos regulatórios em nível doméstico desenhadas para reduzir impactos físicos ou antropogênicos sobre as comunidades afetadas, suas economias e meio ambiente.


[1] IFRC. World Disaster Report. 2016. p. 232-263. Disponível em https://www.ifrc.org/Global/Documents/Secretariat/201610/WDR%202016-FINAL_web.pdf. Acesso em 28.10.2018.
[2] URIOSTE, Alejandra de. When Will Help Be on the Way? The Status of International Disaster Response Law, 15 Tul. J. Int’l & Compl. L. 18, 183 (2006).
[3] FARBER, Daniel. “Disaster Law in the Anthropocene.”In: Jacqueline Peel; David Fisher. The Role of International Environmental Law in Disaster Risk Response. Leiden/Boston: Brill Nijhoff, 2016. p. 43.
[4] Referência no original: “a sort of ‘second generation’ within international disaster law, whose legal ramifications and implications are still to be fully explored.” BARTOLINI, Giulio; NATOLI, Tommaso. Disaster Risk Reduction: an International Law perspective. Questions of International Law. 2018. Disponível em http://www.qil-qdi.org/disaster-risk-reduction-international-law-perspective/. Acesso em 20/10/2018.
[5] CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação. São Paulo: RT/Thomson Reuters, 2015.
[6] No original: “to reduce through concerted international actions, especially in developing countries, loss of life, property damage and social and economic disruption caused by natural disasters.” UNGA Resolution A/RES/42/169 of 11, December 1987.
[7] International Decade for Natural Disaster Reduction (IDNDR). Yokohama Strategy and Plan of Action for a Safer World: guidelines for natural disaster prevention, preparedness and mitigation. Available at: https://www.unisdr.org/we/inform/publications/8241. Acesso em 22/10/2018.
[8] GIUSTINIANI, Flavia Zorzi. “Something old, something new: Disaster risk reduction in international law.” Questions of International Law, Zoom-in 49 (2018), p. 09.
[9] No original:a strategic and systematic approach to reducing vulnerabilities and risks to hazards through the development of stronger institutions, mechanisms and capacities to build resilience, with the overall goal of an effective integration of DRR into sustainable development polices.” United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNISDR). Hyogo Framework for Action 2005-2015: Building the resilience of nations and communities to disasters. Available at: https://www.unisdr.org/we/inform/publications/1037. Access: 20/10/2018.
[10]United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNISDR). Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015-2030. Available at: https://www.unisdr.org/we/coordinate/sendai-framework. Access: 26/10/2018.
[11] No original: a balance between this intent to protect people, and the principle of state sovereignty.” ARONNSSON-STORRIER, M; COSTA, Karen. Regulating Disasters? The Role of International Law in Disaster Prevention and Management. Disaster Prevention and Management. 26 (5), 2017. p. 03.

Autores

  • é advogado, professor de Direito Ambiental no PPGD Unisinos. Pós-Doutor em Direito Ambiental e Direito dos Desastres University of California, Berkeley (2013) e Loyola University, New Orleans (2024). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Risco e Ecocomplexidade (CNPq/PPGD Unisinos). Professor visitante na Berkeley School of Law.

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