Estatais e o regime de precatórios: enxergando a questão além do Direito
3 de março de 2019, 6h51
No último dia 24 de dezembro, o ministro Dias Toffoli, em decisão monocrática, concedeu liminar nas reclamações 32.882 e 32.888, determinando a suspensão de decisões proferidas em ações trabalhistas que afastavam a incidência do sistema de precatórios para o pagamento dos débitos judiciais da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) de Porto Alegre[1], sob o fundamento de que as prerrogativas típicas da Fazenda Pública se estendem para empresas estatais que prestam serviço público sob o regime de não competição, na linha do entendimento firmado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 387.
Embora a decisão confirme posição firmada pela corte há algum tempo, a sua divulgação recente nos traz a oportunidade de refletir sobre a prática de estender benefícios típicos de pessoas jurídicas de direito público a empresas estatais, especialmente o regime de precatórios para o pagamento de débitos judiciais, e entender que impactos isso gera na atividade contratual dessas empresas.
As empresas estatais são instrumentos utilizados pelo Estado para a atuação no domínio econômico. Embora não se possa precisar o momento exato em que surge a figura do Estado empresário, o certo é que a utilização massiva dessa técnica de gestão pública se intensifica no contexto em que o Estado assume um papel mais ativo na garantia de direitos que demandam uma ação mais concreta do poder público ou, particularmente no caso brasileiro, avoca para si a missão de desenvolver segmentos estratégicos para a mudança do perfil econômico do país.
Apesar do uso da forma empresarial pelo Estado em setores socialmente relevantes não ser de fato novo, particularmente no caso brasileiro, até a promulgação da Lei 13.303/2016 (Estatuto Jurídico das Empresas Estatais), para além dos contornos previstos na Constituição Federal e na legislação esparsa, a expansão dessas empresas em número e em importância não foi acompanhada de uma definição clara sobre pontos sensíveis relacionados à sua forma de organização, de funcionamento, e que conjunto de regras de Direito Público ou Privado incidir sobre a sua atividade.
Esse vácuo legislativo foi ao longo do tempo preenchido pela doutrina, que, seguindo a tendência dogmática tradicional, buscou enquadrar as empresas estatais nos regimes jurídicos existentes, para então extrair disso uma série de consequências “naturais”. Apoiando-se na ideia de que as empresas estatais podem ser vocacionadas à realização de atividades distintas, passou-se a se defender nos manuais Brasil afora que as empresas estatais, apesar de entidades privadas, sujeitar-se-iam a um regime híbrido, com prevalência do regime de direito privado para os casos em que desenvolvam atividade em regime de livre mercado e com prevalência do regime publicista para as hipóteses em que esteja envolvida a prestação de serviço público, enquadrando-se também nesta última categoria as empresas criadas para o serviço de suporte à administração.
Embora a atribuição de um regime híbrido às empresas estatais não seja uma criação nacional e haja uma angustia compartilhada por aqueles que as estudam em identificar os reflexos práticos da prevalência de um regime de direito público ou de direito privado, o fato é que especialmente em relação às empresas estatais prestadoras de serviço público de forma não competitiva, in terra brasilis, a prevalência do regime publicista representa a submissão das obrigações de pagar quantia certa ao regime de precatórios. Isso tem gerado algumas dificuldades para aqueles que se relacionam com empresas estatais, pois saber de antemão a que tipo de execução estará sujeita uma sentença judicial contra uma pessoa jurídica é dado sensível na tomada de decisão sobre (i) relacionar-se ou não com a empresa e, se sim, (ii) em que termos esse relacionamento pode ser mais eficiente do ponto de vista econômico. Contudo, indicar a que categoria pertence uma empresa estatal pode não ser uma atividade trivial.
De partida, surge o problema de identificar em essência o que diferencia o serviço público e atividade econômica em sentido estrito no contexto normativo/econômico atual, seja em razão da tendência de se introduzir a competição como técnica de aperfeiçoamento da gestão dos serviços públicos, seja em razão da tendência de se regular com intensidade setores econômicos socialmente relevantes com o fim de corrigir eventuais falhas de mercado, seja, ainda, por não haver critérios que permitam apontar com clareza que atividade pode ser enquadrada como serviço público ou atividade econômica em sentido estrito.
Mesmo pressupondo que exista um cenário hipotético no qual cada atividade faça parte de uma categoria específica, no nosso caso específico há o desafio adicional de delimitar em que campo atua de maneira preponderante cada empresa estatal. Isso porque a prestação de serviços públicos pode gerar boas e lucrativas oportunidades de negócios, cuja exploração deve ser realizada sempre que a alternativa permita que a estatal extraia dos seus ativos todas as suas potencialidades sem desvirtuar a finalidade pública que justificou a sua criação. Para superarmos esse desafio, alguns caminhos podem ser trilhados, contando naturalmente cada um com suas pedras.
Uma primeira alternativa seria analisar em que termos o legislador autorizou a criação da empresa estatal e que natureza de atividade foi a ela delegada. Embora seja esse um juízo que não deva ser desprezado, não se pode também ignorar que a dinâmica da sociedade contemporânea, das sociedades empresárias e o conteúdo dos conceitos empregados pelo legislador geram um hiato entre a forma como a empresa foi pensada e a sua efetiva atuação.
Ante as limitações inerentes à análise da questão sob a ótica legislativa, resta-nos avaliar de que maneira a empresa efetivamente atua e, caso desempenhe mais de uma função, qual a relevância de cada uma dessas atividades na sua estrutura.
Os que lidam no cotidiano com a administração pública e estão familiarizados com a dinâmica das empresas estatais conhecem a dificuldade de definir que tipo de atividade prepondera em cada estatal. Como indicamos acima, a jurisprudência tem concedido o regime jurídico de direito público para as estatais que prestam serviço público de maneira não concorrencial. No plano ideal, a solução pode funcionar. Mas como chegar a tal conclusão? Analisando os atos constitutivos das empresas ou esses dizem tão pouco quanto às leis que autorizam a sua criação? Caso se escolha por analisar a questão sob a perspectiva financeira e se observe que a empresa explora em conjunto atividades econômicas associadas aos serviços públicos, que regime então deverá prevalecer? Deveremos arbitrar o regime com base no orçamento da empresa ou aplicaremos um regime próprio para cada atividade? A quem cabe arbitrar o regime da empresa? Essa análise deve ser revista continuamente, ao longo do tempo? Passando ao objeto do artigo, o regime de execução de sentença será definido levando em consideração a realidade da empresa no momento da assunção da obrigação que gerou a sentença ou no momento da sua execução?
Para além dessas questões, que revelam a complexidade do problema, surge nesse ponto mais uma, parecendo-nos essa ainda mais central: até que ponto faz sentido, do ponto de vista estratégico, entender que empresas estatais devem submetem ao regime de precatórios, dados os custos econômico e de oportunidade relacionados a essa escolha?
Embora uma leitura apressada do artigo 100 da Constituição Federal por alguém que não conheça a realidade do Estado brasileiro possa despertar, num primeiro momento, uma simpatia pelo instituto do precatório, por enxergar o seu mérito enquanto mecanismo que facilita a gestão de contingências estatais, não se pode ignorar o fato de que a submissão da administração ao regime de precatórios tem representado, em muitos casos, em recurso utilizado pelos gestores para postergar indefinidamente o pagamento de dívidas[2]. O quadro de insolvência crônica de alguns entes públicos, aliado à postura permissiva do sistema jurídico — especialmente do Supremo Tribunal Federal — em não dar eficácia aos mecanismos que garantam a aplicação do artigo 100, fazem com que o regime de precatórios se transforme numa modalidade de moratória constitucional institucionalizada.
O ponto a ser considerado é que submeter dívidas decorrentes de litígios contratuais a esse tipo de sistema tem um custo. Os agentes que contratam com o Estado — racionais que são — precificam o risco de ter que discutir judicialmente o não cumprimento de uma cláusula contratual e o custo de não recebê-la durante o período do litígio[3]. Para além dos custos associados ao tempo do processo e os incentivos gerados pelo sistema de precatórios em termos de política de solução de conflitos, não são desprezíveis as externalidades inerentes a esse tipo de sistema, que produz impacto, por exemplo, nos custos de concessão de créditos a serem empregados em obras públicas.
No quadro de crise de solvência de parte do Estado brasileiro, não é de se espantar que esses agentes acreditem que a administração pública poderá se sentir estimulada pela própria existência de um sistema de precatórios para não cumprir obrigações, como forma de postergar o pagamento de dívidas. Isso aplicado a contratações de longa duração e que exijam a realização de investimentos pelo agente privado pode ter o efeito de inviabilizar a realização de operações vantajosas para a sociedade. Não à toa que, no caso brasileiro, a viabilização de um programa sólido de concessões e parcerias público-privadas passa pela estruturação de um sistema sólido de garantias.
A postura de estender o regime de precatórios para as empresas estatais — independentemente do seu objeto e finalidade — parece-nos problemático. Primeiro porque desconsidera a escolha feita pelo próprio constituinte, que definiu ao longo do texto constitucional que parcelas do regime publicista se estendem ao Estado empresário, sendo o regime de cumulação de cargos, a submissão das contratações de pessoal à prévio concurso público, exemplos claros disso. Segundo porque retira do Estado o poder de optar — presentes os pressupostos constitucionais para a criação de estatais — e obter os benefícios de uma “fuga para o direito privado”, com todas as vantagens e custos inerentes a essa escolha. Por fim, porque o corte feito pela jurisprudência de limitar o regime de precatórios às empresas estatais que prestam serviços públicos de modo não competitivo não traz o resultado que deseja, dada a dificuldade relatada acima indicar na prática o que isso realmente significa.
A criação de uma empresa estatal exige a adoção de uma postura pública consciente, uma vontade qualificada pelo próprio processo de criação, que exige por força constitucional a interação ativa entre os Poderes Executivo e Legislativo. A prática de “autarquizar” o regime das estatais retira do Estado a possibilidade de extrair as vantagens econômicas que podem decorrer da não aplicação de um regime publicista puro, mesmo que esteja envolvida no caso a prestação de serviço público. A não aplicação do regime de precatórios pode criar incentivos importantes, capazes de aprimorar a forma de gestão do serviço e de conflitos com particulares. Parece-nos oportuno que o Poder Judiciário se atenha ao regime constitucional das empresas estatais, “levando a sério” a sua natureza empresarial[4].
[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=399482. Acesso no dia 12/1/2019.
[2] O estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, apresentou no seu pacote de medidas para a solução de sua crise fiscal a redução da faixa de pagamento dos seus débitos por requisições de pequeno valor, que passariam de 60 para 10 salários mínimos, tendo momentaneamente recuado da proposta. http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/governo-recua-e-pede-devolua-a-o-do-projeto-de-lei/439279. Acesso no dia 15/02/2019.
[3] Sobre a análise econômica dos conflitos contratuais, cf. HERMALIN, Benjamin E. et al. Handbook of Law and Economics. Vol. 1. Elsevier. P. 102 e ss.
[4] A expressão foi empregada por Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani no trabalho “Licitação nas Estatais: Levando a Natureza Empresarial a Sério”, publicado na Revista de Direito Administrativo, v. 245, 2007.
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