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ANPD em busca de sua autonomia: é preciso aperfeiçoar a MP 869/2018

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1 de maio de 2019, 8h00

Spacca
A promulgação da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, tirou o Brasil da posição de retardatário na proteção de dados pessoais, várias décadas após a Europa inaugurar a sua longa experiência legislativa no tema, recentemente reforçada com a entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

A lei brasileira, que finalmente coloca o país no rol dos países que possuem uma norma geral de proteção de dados pessoais[1], encontra um cenário de grande complexidade e aumento exponencial da importância dos dados pessoais, cuja utilização comercial não é mais um ato esporádico, tendo se transformado em uma verdadeira indústria[2].

Porém, ao promulgar a lei, o presidente da República vetou, entre outros dispositivos, os artigos 55 a 59, que criavam e estruturavam a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Tal veto trouxe temores quanto à plena efetividade da lei, diante da necessidade de um órgão regulador e fiscalizador do cumprimento dos direitos e deveres estabelecidos na norma.

Um alento ocorreu com a edição da Medida Provisória 869, de 27 de dezembro de 2018, que a princípio seria merecedora de efusiva celebração, por ter criado a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Porém, o órgão nela estabelecido é institucionalmente mais frágil do que o previsto originariamente nos dispositivos vetados, não lhe tendo sido garantida a necessária autonomia, o que poderá enfraquecer a sua atuação e assim restringir a efetividade da tutela de dados pessoais no Brasil.

Portanto, é imprescindível a modificação do texto da medida provisória durante a sua tramitação no Congresso Nacional. Com efeito, o órgão previsto no texto vetado possuía a natureza de autarquia especial, vinculada ao Ministério da Justiça, sendo caracterizada pela independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira. Por seu turno, a Medida Provisória 869/2018 confere à ANPD a natureza de órgão da administração direta federal, subordinada à Presidência da República.

Assim, a distinção de natureza é impactante: enquanto a autarquia especial possui autonomia administrativa, financeira e hierárquica, o órgão da administração direta é destituído de tais características, tendo em vista a sua subordinação hierárquica direta ao presidente da República.

Esta estrutura enfraquecida traz diversas consequências negativas. Por exemplo, coloca em xeque a sua autonomia decisória, já que o artigo 56 da Lei 9.784/1999 estabelece o direito de recurso contra todas as decisões administrativas no âmbito federal, trazendo o risco das decisões da ANPD estarem sujeitas a revisão por meio de recurso administrativo hierárquico endereçado ao presidente da República.

Ademais, a estabilidade dos membros do conselho diretor restou enfraquecida, pois embora a medida provisória tenha previsto investidura pelo prazo de quatro anos aos diretores da ANPD, a nomeação deixou de ser uma ato complexo, não mais sendo prevista a participação do Senado Federal[3].

Acrescento ainda que o órgão é destituído de receitas próprias, agravando a ausência de autonomia orçamentária. Houve, ainda, a retirada de importantes atribuições, como, por exemplo, a competência para elaborar diretrizes para Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade.

A ausência de um órgão efetivamente autônomo e independente, com atribuições regulatórias, fiscalizatórias e sancionatórias, reduz a probabilidade da lei ser efetiva, temor reforçado com a análise da experiência europeia, exitosa justamente pela proatividade das autoridades nacionais e regionais de proteção de dados. A institucionalização de tais órgãos é decorrência da tutela dos dados pessoais ter sido alçada à categoria de direito fundamental na União Europeia[4], sendo pioneiramente imposta pelo artigo 286 do Tratado da Comunidade Europeia com as modificações introduzidas pelo Tratado de Amsterdam. A importância da independência de tais órgãos foi atualizada pelo artigo 16 do vigente Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

A determinação dos tratados europeus é refletida nas normas comunitárias e nacionais que sistematizam a tutela de dados. Neste contexto, o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, o mais abrangente e profundo diploma legislativo existente no mundo sobre o tema, dispõe de um capítulo específico para as autoridades de proteção de dados regulação europeia, determinando que as autoridades deverão atuar de forma independente, livre de influências externas, diretas ou indiretas, sendo o seu artigo 52 dedicado especificamente a garantir a independência do órgão[5].

Portanto, a experiência internacional aponta para a necessidade de se garantir independência às autoridades de proteção de dados, sendo essencial não apenas que a autonomia seja técnica, mas também decisória, hierárquica e financeira, o que não está adequadamente disciplinado na medida provisória. A solução seria assim alterar o seu texto, a fim de estabelecer que a ANPD tenha a natureza de órgão da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial, sendo assim dotada de independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, bem como de autonomia financeira. Como decorrência da nova natureza jurídica, o órgão deveria ter receitas próprias e ter acrescida entre as suas atribuições a fixação das diretrizes da política nacional de proteção de dados.

Foi este o posicionamento adotado pelo parecer do relator Comissão Especial instituída no Congresso Nacional para apreciar a Medida Provisória 869/2018, merecendo assim apoio o texto por ele proposto, na medida em que conferiu à ANPD a natureza jurídica de autarquia especial, estabeleceu expressamente a sua autonomia decisória, a dotou de receitas próprias e resgatou a sua atribuição de fixar as diretrizes da política nacional de proteção de dados. Apenas entendo que o ideal seja dotar imediatamente a autoridade da natureza de autarquia e não aguardar o lapso de dois anos, como proposto pelo relator[6].

Importante analisar se haveria impedimento a que o Congresso Nacional efetivasse tais aperfeiçoamentos, principalmente tendo em vista que os dispositivos originais da Lei 13.709/2018 que criaram a ANPD foram vetados sob o argumento de que foi usurpada a iniciativa privativa do presidente da República para propor leis que criem órgãos da administração pública federal (artigo 61, parágrafo 1º, II, ‘e’ da Constituição Federal) já que o projeto de lei enviado pelo chefe do Poder Executivo Federal ao Congresso Nacional não continha a criação da autoridade.

Entendo não mais subsistir tal impedimento, já que a medida provisória editada pelo presidente da República tem como objetivo central precisamente a criação da ANPD. Assim, a simples modificação da natureza da autoridade durante a tramitação legislativa não significaria afronta ao artigo 61, parágrafo 1º, II, ‘e’ da Constituição Federal.

E como a institucionalização da ANPD com a natureza de órgão da administração indireta seria advinda da conversão da Medida Provisória 869/2018 em lei, estaria suprida também o requisito de criação de autarquia mediante lei específica, cumprindo-se assim o comando do artigo 37, XIX da Constituição Federal.

Outro dispositivo constitucional que poderia colocar em xeque a validade da alteração proposta é o artigo 63, I da CF que estabelece não ser admitido aumento de despesa por alteração feita pelos parlamentares em projeto de lei de iniciativa exclusiva do presidente da República.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme na interpretação de que não é vedada a possibilidade do Congresso Nacional alterar parcialmente o teor original do texto do projeto de lei enviado pelo presidente da República, desde que tais modificações não importem em aumento da despesa pública ou sejam veiculadas matérias diversas da versada na propositura[7].

Entendo que a modificação proposta além de estar absolutamente coerente com a matéria tratada na medida provisória não implicará em aumento da despesa prevista. Isto porque não vislumbro despesas adicionais ocasionadas pela modificação da natureza de administração direta para indireta, uma vez que as despesas para estruturação do órgão fundamentalmente serão as mesmas, com a vantagem adicional de serem atribuídas receitas próprias à autarquia.

A conversão em lei da Medida Provisória 869/2018 com as alterações propostas neste artigo ocasionará o imprescindível e almejado salto de qualidade para a efetividade da tutela de dados pessoais no Brasil. Com efeito, os aperfeiçoamentos propostos permitirão a institucionalização de uma autoridade com natureza de autarquia especial, dotada da consequente autonomia técnica, financeira e decisória, investida de atribuições regulatórias, fiscalizatórias, sancionatórias e conciliatórias, que lhe darão as condições necessárias para desempenhar com protagonismo o papel de guardiã dos direitos e deveres estatuídos pela Lei Geral de Proteção de Dados.


[1] Ver, a propósito: Banisar, David. National Comprehensive Data Protection/Privacy Laws and Bills 2018 (September 4, 2018). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1951416.
[2] Ver, por exemplo: European Commission. Towards a thriving data-driven economy. Disponível em: https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/news/communication-data-driven-economy.
[3] Cabe ressaltar que o julgamento mais conhecido de garantia de estabilidade no cargo envolveu a análise de investidura a termo de membro de agência reguladora com natureza de autarquia especial e nomeado por ato complexo: STF – ADI nº 1949/RS. Relator: Min. Dias Toffoli – Tribunal Pleno – J. em 17/09/2014.
[4] Hijmans, Hielke. “The European data protection supervisor: the institutions of the EC controlled by an independent authority”. Common Market Law Review 43, Issue 5, (2006): 1313–1342.
[5] O texto do regulamento é coerente com o entendimento consolidado no relatório que precedeu a sua promulgação. Ver: Comissão Europeia COMISSÃO EUROPEIA. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comitê Econômico e Social Europeu e ao Comitê das Regiões. Uma abordagem global da protecção de dados pessoais na União Europeia. Bruxelas, 4 nov. 2010. COM(2010) 609 final. Disponível em: http://ec.europa.eu/justice/news/consulting_public/0006/com_2010_609_pt.pdf. No relatório é destacado o papel essencial e imprescindível das autoridades públicas de fiscalização, por serem “guardiões independentes de direitos e liberdades fundamentais relacionados à proteção de dados pessoais, nos quais os indivíduos confiam para garantir a proteção de seus dados e a legalidade de operações de processamento”.
[6] Congresso Nacional. Comissão Mista da Medida Provisória 869/2018. Parecer do relator. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7945369&ts=1556212192317&disposition=inline.
[7] STF – ADI 3.114, Rel. Min. Ayres Britto, Pleno, j. Em 24-8-2005.

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