Opinião

O Coaf como ferramenta de gestão pública de Estado

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17 de janeiro de 2019, 5h06

Em artigo publicado na ConJur no último dia 4, o professor Gamil Hireche adverte sobre os riscos que a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Ministério da Justiça e Segurança Pública pode trazer em termos de expansionismo penal, em face principalmente do que chama de função eminentemente persecutória dessa instituição, o que a meu juízo não ocorre, senão vejamos.

Em primeiro lugar, é preciso que tenhamos claro quais as competências normativas do Coaf, estabelecidas pela Lei 9.613/98, em especial pelo seu artigo 1º, a saber: disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta mesma norma, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades públicos. Assim, em face da leitura gramatical desse dispositivo, resta claro que não possui o Coaf competências ou funções eminentemente persecutórias.

Enquanto órgão administrativo, o Coaf cumpre papel fundamental de inteligência financeira voltada à identificação e prevenção de operações suspeitas relacionadas a ilícitos de ocultação e dissimulação da origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal (artigo 1º da Lei 9.613/98).

Mas o que vem a ser esta inteligência financeira no âmbito da norma? É justamente uma ferramenta de apoio a investigação sistêmica dos ilícitos que pretende coibir e responsabilizar. É porque ela se afigura tão importante hoje? É o que passo a precisar.

Já tive oportunidade de dizer que, em face dos compromissos assumidos pelo Brasil, desde a assinatura da Convenção de Viena de 1988, temos aprovado uma série de leis, atos normativos, e mesmo a criação de órgãos voltados ao combate ao crime organizado, corrupção, tráfico de entorpecentes, lavagem de dinheiro e outros tipos criminais de alta complexidade e sofisticação. Esses espaços constituídos no país têm proporcionado o crescimento da cooperação organizada e efetiva entre as autoridades responsáveis pelo enfrentamento de atividades delinquentes, proporcionando apurações compartidas que, em seu conjunto, geram informações fundamentais à tomada de providências — curativas e preventivas — (administrativas, legislativas e judiciais) indispensáveis na sociedade de riscos atual[1].

Diante disso, o fundamental no Coaf é a possibilidade do esforço conjunto por parte dos vários órgãos governamentais que cuidam da implementação de políticas nacionais voltadas para o enfrentamento de ilícitos marcados por níveis de sofisticação e complexidade perversos, causadores de desastres trágicos, direta e indiretamente, a direitos e garantias fundamentais individuais e sociais.

Não há como lidarmos com cenários e protagonistas que operam de forma ilícita no campo de paraísos fiscais e centros de offshores; bolsas de valores; companhias seguradoras; mercados imobiliários; mercado de obras de artes; setor de jogos e sorteios, sem políticas públicas e privadas adequadas; sem instrumentos de investigação, prevenção e responsabilização consertados a partir da necessária colaboração de todos os agentes estatais competentes.

Tenhamos em conta que nos sistemas jurídicos ocidentais contemporâneos, modo geral, a necessidade da intervenção do Estado tem se alterado, porque se modificaram os níveis de importância de determinados âmbitos da vida social em seu evolver histórico, os quais reclamam proteção diferida e ampliada — inclusive penal — para a salvaguarda de bens tomados como indispensáveis para o desenvolvimento sustentável e responsável com as presentes e futuras gerações, prevenindo ameaças e perigos cada vez mais iminentes (concretos e abstratos) que podem causar danos irrecuperáveis não só a interesses individuais, mas fundamentalmente a interesses públicos, difusos e coletivos.

Ocorre que, por mais que os sistemas jurídicos estabeleçam catálogos de direitos e garantias referidas como autoaplicáveis, e disso não se tem dúvidas, o fenômeno de efetivação concretizante destes sempre contará com graus/medidas passíveis de mensuração, e estas, definitivamente, não estão dadas de forma exaustiva pelos próprios sistemas, demandando do intérprete/aplicador atribuição de sentido racional e material às suas reivindicações, caso por caso, levando em conta o universo de variáveis que convergem a ele.

E isso ocorre por uma razão muito simples, a saber, pelo fato de que uma teoria coerencial do direito não pode resolver sozinha o problema da aplicação racional do direito. Assim como regras não podem se aplicar a elas mesmas, um sistema não pode produzir ele próprio a resposta correta. Para tanto, são necessários pessoas e procedimentos. Todavia, estas pessoas e procedimentos precisam, por sua vez, estar ancorados em sistemas normativos que possuam caráter fundamentalmente deontológico, regulando o contexto vital dos cidadãos de uma comunidade jurídica concreta.

Por isso não podemos aceitar o argumento — muito propalado — de que a presunção de inocência enquanto direito fundamental constitucional está a inviabilizar qualquer tipo de intervenção legítima no patrimônio, intimidade e privacidade de sujeitos de direito que se submetem aos termos das normas debatidas, isto porque inexistem direitos fundamentais absolutos, haja vista que são passíveis de restrições em face de determinadas situações e casos[2]. E nas situações que envolvem alguns dos delitos que referimos, é possível que tenhamos que tomar precauções urgentes para evitar a violação de bens jurídicos fundamentais protegidos e para garantir a apuração da responsabilidade de tais atos (seja para fins de verificação de se as coisas apreendidas tenham sido ou não adquiridas com os proventos da infração; seja ainda para servir de garantia ao dever de indenizar os danos causados pelo crime).

Por outro lado, temos como inadequado associar esta migração do Coaf para o novo ministério com o expansionismo do Direito Penal, também porque as informações que o órgão coleta e gere servem para segmentos e órgãos administrativos e financeiros nacionais e internacionais não relacionados à persecução penal.

A inteligência financeira do Coaf, a despeito do ministério em que estiver lotado, vai servir a políticas e ações públicas vinculantes de todo o Estado, e não somente do governo, eis que lida com interesses públicos indisponíveis até para os agentes públicos eleitos.

Seguro que aqui igualmente se apresentam riscos e perigos de abuso de poder e desvios de finalidades na concepção e, ou, execução das atividades eventualmente praticadas pelo Coaf, levadas a efeito para cumprir com suas funções, razão pela qual devemos sempre estar atentos para que estas iniciativas sejam acompanhadas de amplos mecanismos de controle público efetivo, e responsabilidades consectárias, isto porque quando qualquer política ou medida pública de contenção de ilícitos vem à tona de forma arbitrária, resta configurado o que Agamben[3] chama de Estado de Exceção, o que é ainda mais perigoso, pois tal situação pode oportunizar novas formas de poderes soberanos não democráticos. Por outro lado, não há como eliminar completa e absolutamente os problemas que estamos identificando na gestão dos interesses sociais e individuais em jogo, mas somente gestá-los da forma mais transparente possível, com os meios normativos autorizados pelos regimes democráticos.


[1] LEAL, Rogério Gesta. Responsabilidade penal do patrimônio ilícito como ferramenta de enfrentamento da criminalidade. Porto Alegre: FMP, 2017, acesso em http://www.fmp.edu.br/servicos/285/publicacoes.
[2] Partimos aqui da perspectiva denominada de Teoria Externa das Restrições aos Direitos Fundamentais, no sentido de compreender tais direitos e suas restrições como objetos distintos, isto porque as restrições não afetam o conteúdo do direito, mas apenas o seu exercício, a depender das particularidades do caso concreto normatizado. Isto se dá porque a relação entre direito e restrição nasce a partir da necessidade de equacionar a proteção a diferentes bens jurídicos. Neste sentido ver o texto de SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2014.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Stato di Eccezione. Op.cit., p.29, ou seja: Lo stato di diritto si sospende e crea l'eccezione all'interno della quale il potere diviene pura violenza non più regolata dal diritto.

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