Ideias do Milênio

"É preciso criar novas regras para enfrentar a falta de transparência na internet"

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13 de janeiro de 2019, 11h50

Reprodução Twitter
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Entrevista concedida pelo documentarista francês Thomas Huchon à jornalista Elizabeth Carvalho para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (3h30 e 7h30), às sextas (12h30) e aos sábados (5h30).

Elizabeth Carvalho — Entre a eleição de Donald Trump e a realização do documentário O Jogo Desleal: Como Trump manipulou a América passaram-se dois anos. Este foi o tempo necessário para que fatos encobertos que cercam a vitória em 2016 do primeiro presidente americano da era da pós-verdade viessem à tona e as pessoas se dessem conta da intensidade com que o espaço público tradicional do debate político se deslocou para o terreno pantanoso e sombrio dos manipuladores da indústria digital.

A fama mundial do documentário se deve, em primeiro lugar, a um mea-culpa de Christopher Wylie. Gênio autodidata da informática, 28 anos, cabelos cor de rosa, Wylie teve a coragem de denunciar perante o parlamento britânico um esquema milionário que sequestrou dados pessoais de 87 milhões de americanos usuários do Facebook, para alimentá-los com notícias falsas durante toda campanha presidencial e assim, construir uma realidade em que o azul passa a ser definitivamente vermelho ou vice-versa.

“Essencialmente a Cambridge Analytica foi a transformação de operações de informação militares e de propaganda em uma consultoria política americana que pudesse criar uma rede de desinformação no Facebook e em outras plataformas.” – Christopher Wylie

Thomas Huchon, o diretor do documentário, é um dos sócios da produtora francesa Spicee, dedicada ao jornalismo de investigação. Ao longo de nove meses, Huchon farejou as pegadas de personagens ligados à extrema-direita americana, ao mundo dos algoritmos das especulações financeiras e as empresas dedicadas à manipulação de mentes, como a inglesa Strategic Communication Laboratories. A SCL tem mais de 25 anos e vende serviços diversificados de análises psicossociais para fins militares, comerciais e inclusive para indução a manifestações políticas de massa que desestabilizam nações. No centro da teia elaborada que desfigura o conceito de democracia e estimula a ditadura pelo voto, está a empresa Cambridge Analytica, a filial da SCL nos Estados Unidos que tinha o jovem Christopher Wylie entre os seus empregados. Foi criada exclusivamente para atuar em processos eleitorais e acumula no portfólio trabalhos de intervenção em nada menos que quatro dezenas de países em várias partes do mundo. A Strategic Communication Laboratories e a Cambridge Analytica lidam com métodos psicométricos e estratégias altamente sofisticadas, uma verdadeira fábrica de manipulação personalizada não só capaz de fazer disparar mensagens a uma velocidade espantosa, mas de criar milhões de alvos específicos que são atingidos através do circuito do dark post, postagem escura, onde a mensagem desaparece imediatamente após ter sido lida pela pessoa a quem foi destinada.

Elizabeth Carvalho — Primeiro, fale um pouco sobre sua motivação para fazer esse documentário. Por que você o fez? Quanto tempo você levou para fazê-lo e quem o financiou?
Thomas Huchon —
Já faz anos que trabalho com o universo da internet, com tudo que está relacionado à informação, ao que chamávamos de “teoria da conspiração” e que agora chamamos de “fake news” e que ganhou muita importância no nosso dia a dia e na nossa vida como cidadãos. Na Europa, vínhamos testemunhando, nos últimos anos, um crescimento do populismo de extrema-direita nas urnas durante as eleições. Eu via esse crescimento nas urnas como um eco do aumento da audiência on-line de vários sites, de novos veículos pouco conhecidos, que diziam que sempre havia algo de sujo no nosso mundo, que sempre havia um complô, um grande regente comandando tudo. Faz quatro anos que trabalho num veículo de mídia francês chamado Spicee. Nele, trabalhei muito com fake news e teorias da conspiração e, por isso, durante o ano de 2016, não vi o crescimento de Donald Trump como nossos colegas. Vi esse crescimento como a continuidade de um processo que já existia antes e de uma presença muito grande da extrema-direita na internet, que eles haviam entendido como funcionava. Com isso, nós nos interessamos por Trump. Levamos nove meses para fazer a pesquisa e o filme, e o principal trabalho dessa pesquisa foi analisar as contas da campanha de Donald Trump para entender como aquilo havia funcionado. Para tentar entender algo, só há uma regra no jornalismo: “follow the money”, como dizem os ingleses. Siga o dinheiro e vai entender a dinâmica. E foi o que fizemos. Seguimos o dinheiro e descobrimos coisas realmente incríveis.

Elizabeth Carvalho — Ao seguir o dinheiro, podemos dizer que… o que você revelou foi uma estratégia bilionária, muito sofisticada, que tinha dois personagens-chave em seu centro, vindos, não à toa, do setor financeiro: Robert Mercer, o CEO de um dos maiores fundos de investimentos do mundo, e Steve Bannon, que havia trabalhado no Goldman Sachs e que hoje tem papel importante nas extremas-direitas da Europa. Fale um pouco desses dois personagens.
Thomas Huchon — Robert Mercer é matemático, um gênio da ciência da computação, que se tornou bilionário no fim dos anos 1980 e início dos 1990. Mercer é uma pessoa que tem muita influência em nossa vida. Muitos não sabem, mas foi ele que, nos anos 1960, inventou os programas, os algoritmos, que permitem traduzir idiomas. É uma pessoa que não fala com ninguém, que prefere a companhia dos gatos à das pessoas e que costuma dizer que seu barulho preferido é o silêncio de seu laboratório e o barulho do ar-condicionado. É um personagem muito singular. E, depois de ter inventado a máquina de tradução automática nos anos 1960, ele inventou uma máquina para fazer negociações na bolsa com base em algoritmos. Ele inventou o que chamamos de “especulação algorítmica” que hoje representa mais de 90% de negociações financeiras do mundo.

Foi ele que inventou e, a partir disso, criou um fundo de investimentos, o Renaissance Technologies, que gerou lucros incríveis – às vezes até 80% de lucro por ano. Isso era inédito, mesmo no mundo das finanças. Depois de criar a máquina de tradução automática e a máquina para ganhar dinheiro na bolsa de valores, ele criou uma máquina de ganhar eleições. Para gerir essa máquina de ganhar eleições, ele se aproximou de um homem que tinha sido funcionário do Goldman Sachs e que se tornou produtor de Hollywood para difundir ideias políticas reacionárias nas ficções que eram veiculadas nos EUA.

Steve Bannon teve muita influência, inclusive sobre Trump, até o fim de 2017, quando foi expulso da Casa Branca depois de vários escândalos. Ele também rompeu relações com Robert Mercer, mas continua sendo uma figura muito importante numa estratégia que pode ser vista como a união dos populismos internacionais. Bannon está conseguindo criar um tipo de elo ou conexão entre as extremas-direitas americana, italiana e húngara e está começando a conversar com pessoas na França. No fim de 2016, ele encontrou Marine Le Pen e a equipe da Frente Nacional para ver como poderiam trabalhar juntos. Ele continua conversando…

Fala muito com os ingleses do movimento Ukip, que está por trás do Brexit, da saída da Inglaterra da União Europeia. São pessoas muito próximas de Steve Bannon. Encontramos algumas semelhanças entre os discursos de extrema-direita utilizados e, no caso do Brasil, também devemos lembrar que o filho do presidente Bolsonaro encontrou Steve Bannon muitas vezes em agosto de 2018 e que ele mesmo divulgou isso no Twitter, explicando que tinha ideias parecidas com as de Bannon e que eles teriam métodos políticos parecidos para agir na campanha brasileira e ajudar Jair Bolsonaro a ser eleito presidente do Brasil.

Elizabeth Carvalho — Essa estratégia retirou a política de seus espaços tradicionais, digamos assim. Como foi desenvolvida essa “complosfera” com base em fake news para a demonização do adversário?
Thomas Huchon —
Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Podemos dizer que, de modo geral, no mundo todo, a extrema-direita tinha dificuldade de alcançar os veículos tradicionais. E, para conseguir divulgar suas mensagens, ela precisava achar meios de difusão. A internet surgiu e a extrema-direita usou a internet como meio de difusão de todas as suas mensagens. A mídia profissional não quis usar a internet no início e, ao mesmo tempo, a extrema-direita política, que não tinha acesso aos veículos de mídia tradicionais, usou a internet para criar seus veículos próprios para divulgar mensagens. Então, na internet, houve uma representação exagerada da extrema-direita. É algo que podemos notar em todos os países. Constatamos a mesma coisa em todos os países. Essa extrema-direita usa, majoritariamente, fake news e teoria conspiratórias para divulgar suas mensagens. Então constatamos, nos vários países, uma comunidade estratégica. O que foi feito a mais na campanha americana foi que Robert Mercer quis usar – o gênio da informática – as ferramentas da nova tecnologia para mudar a política.

Elizabeth Carvalho — Isso é uma loucura.
Thomas Huchon — Sim, mas política é debate. É a divulgação dos debates. E é o fato de que todos… Se escutassem o que estamos dizendo, uma pessoa poderia formar a própria opinião, pois compararia os nossos argumentos e formaria a própria opinião. Ao passar pela internet, isso é totalmente modificado, porque as mensagens que vamos receber, por exemplo, pelo Facebook, são definidas por certos critérios que não conhecemos. Sem saber, você disponibilizou muitas informações que permitem que se saiba quem é. Então, se eu decidir fazer uma propaganda para você, vou saber que você usa óculos, que tem uma camisa que parece de seda branca, que tem cabelos Chanel, que foi a Paris, já viajou… Com todas essas informações, que parecem inofensivas, podemos criar um perfil para saber quem é Elizabeth Carvalho e que tipo de mensagem devemos enviar-lhe para provocar um certo comportamento nela.

Tudo isso parece loucura, mas, resumindo, existe hoje uma ciência chamada psicometria. A psicometria é o estudo do comportamento humano através das redes sociais, do big data, por assim dizer. Foi um acadêmico de Stanford, Michal Kosinski, que fez essa pesquisa. E o que ele descobriu? Ele conseguiu descobrir que, se compararmos o conhecimento de um indivíduo às curtidas do Facebook, chegamos a algo impressionante. Com dez curtidas suas, um algoritmo conhece você melhor do que os colegas de trabalho que a conhecem há 20 anos. Com 100 curtidas, o algoritmo a conhece melhor do que sua família, que a conhece desde sempre. E com 230 curtidas, o algoritmo vai conhecê-la melhor que do seu companheiro, o nível mais alto de conhecimento em psicologia social. O que isso quer dizer? Quer dizer que, em média, uma pessoa usa redes sociais curte entre quatro e seis postagens por dia. Se fizermos o cálculo, isso quer dizer que, em menos de 40 dias no Facebook, os algoritmos a conhecem melhor do que quem compartilha sua cama e seus momentos mais íntimos.

Se conseguirmos agrupar as pessoas, não como uma unidade, mas como milhares de pessoas ou até milhões que têm o mesmo comportamento ao mesmo tempo, conseguimos entender várias coisas. O que aconteceu durante todo o ano de 2016 nos EUA foi que os observadores – os especialistas, os jornalistas e a grande mídia – não entenderam isso. Não entenderam o que estava acontecendo. E, de certa forma, temos de tirar lições dessa campanha…

Elizabeth Carvalho — A esquerda também não.
Thomas Huchon — A esquerda também não. Tem razão. O certo é que a Cambridge Analytica e a equipe do Trump entenderam uma coisa sobre o eleitorado americano que ninguém mais entendeu. Como? Porque foram mais inteligentes? Talvez. Porque tinham mais dados sobre as pessoas? Com certeza.

A Cambridge Analytica pediu falência logo depois de estourado o escândalo do Facebook, em março desse ano. Mas isso não significa que seus principais agentes tenham perdido a função. Steve Bannon, o chefe da campanha de Trump, e não por acaso o diretor da Cambridge Analytica, é hoje um personagem chave na articulação da extrema-direita no mundo e tem sido um notório guru da prole do futuro presidente do Brasil, não apenas nos assuntos de campanha, mas também na comemoração de datas festivas, como comprovam os posts do chanceler informal Eduardo Bolsonaro no dia do aniversário de Bannon.

Elizabeth Carvalho — Em que países podemos encontrar provas desse mecanismo?
Thomas Huchon — A Cambridge Analytica trabalhou na campanha do Brexit, na campanha de Trump… Estava envolvida nas eleições colombianas, mexicanas…

Elizabeth Carvalho — E nigerianas, não?
Thomas Huchon — Nós a vimos intervir, com o nome de SCL Elections, na Nigéria, em Gana e no Quênia. Nós a vimos intervir na Indonésia e também vemos claramente uma vontade de desenvolver, nos próximos anos, o mercado chinês. Eles querem muito se implantar na China para trabalhar com questões… Não sabemos direito em que eleições eles vão trabalhar na China, mas claramente é um mercado que interessa a eles.

Elizabeth Carvalho — A questão do Brasil, onde não foi o Facebook, mas o WhatsApp a ferramenta de propagação dessas ideias, qual é a ligação que podemos fazer?
Thomas Huchon — Primeiro, temos que lembrar que o WhatsApp pertence ao Facebook. O Facebook é o acionário majoritário do WhatsApp. O WhatsApp não é uma rede social porque não fazemos publicações que podem ser vistas por todos. É uma rede bem mais fechada. Mas acho que temos de entender que todas essas técnicas, essas novas maneiras de fazer política, evoluem permanentemente, e o WhatsApp se baseia em pequenos grupos militantes. São pequenos círculos militantes que vão crescendo à medida que trazemos pessoas para eles. E, nesses grupos, vão circular exatamente as mesmas mensagens que vimos circular no Facebook e no Twitter, que vimos passar por certos sites de extrema direita, nas páginas dos evangélicos brasileiros e nas páginas dos filhos do presidente Bolsonaro, que participaram da campanha.

Na verdade, vemos no WhatsApp o mesmo conteúdo de outros lugares, mas o WhatsApp é uma arma melhor. É um novo meio de difusão que permite… E este é o milagre do WhatsApp: ele escapa completamente aos radares. Ninguém sabe o que é dito ali. Se eu não entrar no grupo, não terei acesso ao conteúdo. Então eles podiam dizer o que quisessem, e os elementos que vimos — porque jornalistas brasileiros investigaram essas questões… Os elementos que vimos foram as mesmas montagens, as mesmas mensagens homofóbicas, mensagens racistas, mensagens acusando de corrupção os adversários de Bolsonaro… Exatamente as mesmas estratégias que Donald Trump usou com Hillary Clinton, que os defensores do Brexit usaram na campanha do Remain — dos que queriam ficar na União Europeia — e que acho que vamos ver nas próximas campanhas, especialmente, como você mencionou, nas eleições europeias.

Acho que os brasileiros vão enfrentar o mesmo que franceses e americanos enfrentaram depois das revelações sobre a Cambridge Analytica. Assim que o escândalo explodiu, em março de 2018, o Facebook explicou que não era responsável e que toda a culpa era da Cambridge Analytica. Eles encerraram a página de funcionários da Cambridge Analytica e disseram: “Tudo certo.” Mas não está tudo certo. Acho que há algo que os cidadãos do mundo têm de entender: todos temos o mesmo problema. O problema não é Bolsonaro ou Haddad. Esse não é o problema. O problema é que não temos nenhuma transparência no mundo da internet. Não temos nenhum modo de saber como tudo isso acontece, como essas mensagens chegam a nós e, no fim, isso tem consequências dramáticas. Podemos debater politicamente a oportunidade de Bolsonaro ou de Haddad e muitas outras coisas. Mas acho que todos concordamos que multinacionais estrangeiras não podem decidir o resultado das nossas eleições. Isso é uma escolha dos brasileiros e vai ser a escolha dos franceses. É uma escolha dos americanos, mas não podemos deixar multinacionais estrangeiras ganharem muito dinheiro atrapalhando o processo democrático. Temos que criar regras novas.

Elizabeth Carvalho — O que podemos fazer exatamente? Devemos criar novas leis internacionais?
Thomas Huchon — Sim, a União Europeia é provavelmente a instituição que mais está lutando contra isso através da criação de novas regras. Mas, para além da internet, temos um problema de acesso à informação. E nunca vamos resolvê-lo. Pelo menos tecnicamente. Só há uma solução verdadeira. É educar. Precisamos de educação. Temos de ensinar os mais jovens, mas não apenas eles, a ter espírito crítico.

Elizabeth Carvalho — Você faz um trabalho há alguns anos com os alunos do ensino médio da França.
Thomas Huchon — Nós tentamos fazê-los pensar em como construir um raciocínio. Mais que o senso crítico, tentamos trabalhar o espírito crítico. Ou seja, não só as conclusões, mas o modo de chegar a elas. Mais que soluções técnicas, mais que leis, a única solução verdadeira para termos bons cidadãos… Bons cidadãos não são de esquerda ou de direita, são cidadãos capazes de pensar por eles mesmos. O único modo de obter isso é através da educação. O único modo de obter isso é conseguir transmitir os valores centenários que muitos países democráticos compartilham e trazê-los à vida na nova geração. É preciso transmitir isso. É muito difícil, demorado e vai exigir muito trabalho, mas criar um mundo melhor não é fácil. É muito difícil. Então mãos à obra.

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