Opinião

Impossibilidade de retrocesso dos direitos fundamentais sociais

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18 de fevereiro de 2019, 7h41

A realização das eleições brasileiras no ano de 2018 desencadeou uma série de debates sobre a possibilidade de exclusão, por parte do novo governo, de direitos fundamentais sociais da população, tais como os programas que patrocinam a distribuição de renda, a educação, cultura, saúde, bem como alguns direitos trabalhistas. A partir de uma perspectiva eminentemente jurídica, esse artigo se propõe a analisar a legalidade da concretização desses direitos sociais fundamentais, sua manutenção e impossibilidade de exclusão por um novo governo, tendo em vista que a referida medida, se concretizada, seria passível de ser revertida judicialmente.

Os direitos sociais envolvem uma ampla gama de direitos, dentre os quais, os de proteção do trabalho, o direito à saúde e o direito à educação. Referidos direitos limitam a jornada de trabalho, impõem pisos salariais e asseguram participação nos lucros da empresa, resguardam o direito de greve e de sindicalização, além de outros. Objetivam claramente preservar o ser humano e, por isso, pode-se dizer que integram os direitos fundamentais, principalmente porque não se pode pensar em exercício de liberdades, de preservação do princípio da dignidade humana, sem que o denominado mínimo vital seja observado (Nunes Júnior, 63-65).

Pensando no ser humano como único ser dotado de um valor absoluto, não-relativo, a teoria do mínimo vital impõe a preservação material do ser humano, assegurando-lhe condições mínimas para a preservação da vida e para a integração na sociedade, como uma questão prejudicial às políticas públicas a serem desenvolvidas pela governança estatal. Desta forma, algumas ações estatais só podem ser realizadas depois que satisfeitas as necessidades básicas de todas as pessoas que estejam integradas ao Estado, é o que aqui se defende (Nunes Júnior, 70).

É importante ressaltar que, num patamar mínimo, os direitos sociais fundamentais se igualam aos direitos de liberdade (Queiroz, 2006, p. 98). Sem eles, não há sequer como se cogitar do próprio direito à vida, tampouco não há como se expressar o respeito por parte do Estado à dignidade da pessoa humana. Um dos mecanismos por meio do qual o constituinte lançou mão para a concretização do mínimo vital foi de transformar ao menos parte dos direitos que a ele se integram — como educação básica e assistência à saúde — em direitos públicos subjetivos, cuja realização, garantida em patamar constitucional, se não levada a efeito espontaneamente pelos órgãos executivos, pode, e deve, ser demandada judicialmente, quer por instância do interessado, quer por instância do Ministério Público ou de associação constituída para esse fim (Nunes Júnior, 2009, p. 131-132).

A existência dos direitos sociais pressupõe um contingente de pessoas que não contam com os recursos mínimos para sua subsistência digna, bem como supõe a existência de relações econômicas que, pautadas pela desigualdade de suas partes, frequentemente conduzem à submissão de uns aos outros. Neste cenário, os direitos sociais surgem como uma aspiração ética, que parte da premissa de que todos que participam da vida em sociedade devem ter direito a uma parcela dos frutos por ela produzidos.

Existem milhões de pessoas em condições de miséria absoluta no Brasil, que não possuem acesso à formação que lhe garanta disputar uma vaga no mercado de trabalho. Nessas condições, os programas que preveem a renda mínima são fundamentais para assegurar a dignidade dessas pessoas e o mínimo vital para que elas sobrevivam. Obviamente esses programas de oferecimento de renda mínima configuram um tipo de ação positiva que deve ser complementado por outras ações positivas, que propiciem acesso à educação, cultura e formação profissional, possibilitando que as pessoas em condições de miséria troquem os programas de renda pela sua autonomia pessoal e financeira, mas, para isso, precisam estar preparados e é obrigação do Estado zelar para que essa transição seja feita adequadamente.

A intervenção do Estado é o único meio capaz de alavancar as famílias que se encontram em extrema pobreza e sem recursos como educação, cultura, e o mínimo de profissionalização para os dias atuais, tornando-as capazes de concorrer a uma vaga no mercado de trabalho, tendo em vista que a iniciativa privada geralmente não tem por objetivo o crescimento pessoal e profissional das pessoas, mas, de forma objetiva, visam exclusivamente o lucro de seus acionistas.

Por conta disso, os direitos sociais possuem uma face voltada ao poder econômico, dele exigindo conteúdos mínimos essenciais em relações jurídicas privadas, além de assegurar liberdades (exemplo: greve) com o objetivo de dar poder as categorias vulneráveis, viabilizando relações jurídicas e econômicas mais paritárias e comutativas. A limitação do poder econômico, por meio de cláusulas assecuratórias de direitos sociais, acaba por servir de chancela às liberdades individuais, pois, sem aquelas, ainda que indiretamente, a submissão absoluta de um ser humano por outro ser humano, estaria franqueada (Nunes Júnior, 2009, 155-156) e, com ela, a prevalência da vontade pervertida de poder de algumas empresas que estão totalmente insensíveis à sua função social no Brasil

A Constituição Federal de 1.988 acabou por plasmar direitos sociais pela conformação de um perfil social dos institutos jurídicos fundantes de nossa ordem econômica. Os bens privados, sobretudo os que estejam aparelhados à atividade econômica, devem servir à sociedade como um todo, e não aos exclusivos desígnios de seu proprietário. Toda e qualquer atividade econômica só pode ser validamente desenvolvida em consonância com tal princípio de conformação, o que implica a vedação de toda e qualquer atividade econômica que vulnere a dignidade da pessoa humana. Somente se deve pensar em atividade econômica validamente desenvolvida como aquela que obedece aos valores chancelados pela Constituição. Assim, a exploração de mão de obra infantil, as atividades aviltantes da dignidade da pessoa humana, dentre outras, estão inaptas ao recebimento de proteção pelo Estado (Nunes Júnior, 2009, 161-166).

O Estado não deve mais se limitar ao restabelecimento do equilíbrio nas relações bilaterais, mas deve, por intermédio de regulação ativa, da padronização das relações de trabalho, de políticas fiscais e de taxas de juros, objetivar o crescimento, a produtividade, aumentos reais de salários e redução de desigualdades. O que se verifica na prática é que o aumento progressivo da arrecadação tornou o Estado um agente de acumulação de recursos. A contribuição realizada por todos os cidadãos garante a execução de programas para aqueles que não podem contribuir e, por esta razão, demandam o Estado em maior grau.

Os direitos sociais fundamentais são direitos elementares, que remetem à própria natureza do ser humano. Privar alguém de direitos fundamentais significa, em última análise, privá-lo da vida ou do direito de pertencer à sociedade na qual se integra. Conforme a lição de Dallari, “esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida” (Dallari, 1988, p.7).

Necessário ponderar, ainda, que uma vez consagradas legalmente as prestações sociais, como saúde, educação, e outras, o legislador não poderá depois eliminá-las sem alternativas ou compensações. Concretizado o direito fundamental social pelo Estado, nasce a obrigação de não sufragar esse mesmo direito social, o que consiste num dever de proteção jurídico-constitucional que deve ser pressuposto, quer pela Administração Pública, quer pelo Judiciário. Referido dever de proteção do Estado se converte em benefício do titular do direito, num direito de defesa em sentido formal (Queiroz, 2006, p. 116-120).

É justamente o exemplo dos programas de renda mínima, que são voltados às pessoas que não possuem condições de se manterem vivas com dignidade, por terem sido privadas de uma formação e proteção gerais, que lhe proporcionassem a aptidão para disputar uma vaga no mercado de trabalho. Nos reportamos aqui a pessoas que tiveram dificuldades básicas de se alimentar e que não tiveram acesso à educação, saúde e cultura. Estão entregues à própria sorte, motivo pelo qual o Estado tem a obrigação de proporcionar-lhes o mínimo vital, para que sigam sua caminhada com dignidade e que possam romper a bolha da pobreza.

Retirar dos brasileiros direitos sociais consagrados seria o mesmo que subtrair das pessoas um direito fundamental, seria privilegiar um retrocesso, ou, ainda, eliminar uma melhor posição jurídica do cidadão, o que pode se inferir a partir do estudo da obra de Alexy (2012, p. 199-201):

O terceiro grupo de direitos a ações estatais negativas é constituído pelos direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do direito.
(…)
Quando se proíbe a expressão de determinadas opiniões, elimina-se uma posição de a: a permissão de expressar essas opiniões. Uma tal proibição pode ser encarada sob dois aspectos: sob o aspecto do embaraço de uma ação e sob o aspecto da eliminação de uma posição. No caso de ações que não são atos jurídicos, o primeiro aspecto é o decisivo.
Mais uma vez é aconselhável reduzir a diversidade a uma forma padrão simples, como a seguinte:
(8) a tem, em face do Estado, um direito a que este não elimine a posição jurídica RP de a.
A existência de uma posição jurídica significa que uma norma correspondente (individual ou universal) é válida. O direito do cidadão, contra o Estado, a que este não elimine uma posição jurídica sua é, nesse sentido, um direito a que o Estado não derrogue determinadas normas.

Os direitos sociais consagrados na Constituição Federal não podem se limitar a um texto de normas não concretizadas, e, neste sentido, a atuação do poder Judiciário é fundamental para concretizar estes direitos, pois é de sua competência, ou seja, é dever que lhe cumpre honrar; julgar as causas que lhe sejam submetidas, determinando as providências necessárias à efetividade dos direitos sociais inscritos na Constituição Federal e em outros textos legais.

Havendo omissão do Executivo ou Legislativo na garantia dos direitos sociais, deve o Judiciário agir, já que o contrário implicaria uma negação da pretensão de justiça, um dos postulados do sistema jurídico. Postulados normativos são pressupostos epistemológicos do sistema jurídico, necessários à realização do ato de editar uma Constituição. A justiça é um postulado normativo, do qual se extrai que o direito pressupõe uma pretensão de realização de justiça. Trata-se de um limite inclusive ao poder constituinte originário (Pires & Martins, 2012, p. 54).

Não cabe ao Judiciário manter a neutralidade no caso de omissão ou ato ilegal dos poderes Legislativo ou Executivo, sob pena de contrariar o postulado da justiça e de negar sua principal tarefa no Estado Democrático de Direito. Acerca do tema, importante ressaltar que a evolução dos direitos fundamentais, dentre os quais se destacam os direitos dos negros, das mulheres e dos homossexuais, ocorreu a partir da intervenção do Judiciário, a qual é determinante para a concretização dos direitos sociais. Somente depois da intervenção histórica do Judiciário, garantindo direitos sociais fundamentais, é que o legislativo passou a reconhecer esses direitos (Villas Boas & Fernandes, 2016, ps. 62-65).

Não pode haver retrocesso quanto aos direitos sociais fundamentais, ou, ainda, sua exclusão sem uma contrapartida num mesmo grau ou superior. O Poder Judiciário pode e deve atuar, sempre que acionado, quando qualquer cidadão não tenha acesso aos serviços públicos que lhes garantam o atendimento dos seus direitos fundamentais sociais, quando não estejam recebendo os benefícios que têm direito, quando lhe seja negado o mínimo vital, ou seja, em toda e qualquer situação configuradora do alijamento de seus direitos fundamentais sociais, que é dever do Estado e direito de qualquer brasileiro.


Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2012;

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1988;

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988. São Paulo: Verbatim, 2009;

PIRES, Luis Manoel Fonseca; MARTINS, Ricardo Marcondes. Um diálogo sobre a justiça: a justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte, Fórum, 2012.

QUEIROZ, Cristina. O Princípio da Não Reversibilidade dos Direitos Fundamentais Sociais. Coimbra Editora, 2006;

VILLAS BOAS, R. V.; FERNANDES, Francis Ted. Prática de Ativismo Judicial ou Diálogos Contemporâneos entre Áreas do Conhecimento? Efetividade dos direitos Fundamentais, Concretizando a Justiça. In: Revista de Direito Privado (São Paulo), v. 65, 2016, ps. 62-65).

Autores

  • é mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Pós-graduado em Administração de Organizações pela USP. Professor assistente do curso de Direito Constitucional da PUC-SP nos anos 2015 e 2016 e atualmente professor convidado da área de Direitos Difusos e Coletivos da mesma instituição. Advogado e sócio de Fernandes e Abreu Advogados.

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