Opinião

Crime tributário e o bis in idem do artigo 387, IV do Código de Processo Penal

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1 de fevereiro de 2019, 5h14

O Ministério Público e, muitas vezes, a Fazenda Pública, enquanto assistente de acusação, solicitam a fixação judicial de um valor para reparação do crime tributário, nos termos do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal, vinculando este importe ao valor encontrado quando do lançamento da dívida fiscal definitiva.

Ao se debruçar sobre essa situação, é possível destacar um problema jurídico que merece ser analisado. Isto, pois, considerando que o processo penal de crimes tributários somente pode ser iniciado com o lançamento definitivo do débito tributário[1] e considerando que o lançamento administrativo autoriza a Fazenda Pública a ingressar com uma competente ação de execução fiscal[2], não incorreria a aplicação do artigo 387, IV do Código de Processo Penal bis in idem[3]?

Em miúdos, se já existe a constituição definitiva do débito fiscal pela Fazenda Pública, com força de título executivo, não estaria exaurida a necessidade de fixação de um valor mínimo para reparação do dano decorrente da infração tributária sob pena de repetição do mesmo objeto?

Vamos enfrentar o tema.

O Código de Processo Penal traz em seu artigo 387, IV a seguinte redação (que foi dada pela Lei 11.719, de 2008):

Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória:

[…]

IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.

Interessa destacar que essa norma do Código de Processo Penal, primeiramente, enfatiza o termo “valor mínimo”, em segundo lugar traz o fim especial de “reparação dos danos causados pela infração” e, por fim, impõe como imperativo e limite “os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

A ideia de valor mínimo teria por função normativa não impor ao julgador do processo penal uma árdua busca por um valor exato de natureza civil, desprendendo-se do objetivo do principal do processo penal. Logo, o que se espera é a fixação de um valor que seja incontroverso e razoável frente às provas produzidas no processo penal[4]. Este valor mínimo deve ser obrigatoriamente vinculado a um dano sofrido pela infração penal. Isto é, não basta existir a infração penal, mas esta deve ter gerado um dano. Não pode a condenação servir de fonte de enriquecimento ilícito. Por isso, para haver indenização, é preciso prejuízo[5] (artigos 5º, V e X, da CR/88, 186 c/c 927 do Código Civil, Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça). Por fim, este dano tem que ser auferido enquanto prejuízos sofridos pelo ofendido, estando na escala de valores materiais, morais e patrimoniais[6].

No caso de crimes tributários, sobrevém situação especial que é a exigência sumular do Supremo Tribunal Federal (Súmula Vinculante 24) sobre a elementar material do tipo penal, isto é, que o próprio processo penal só pode surgir quando do lançamento definitivo do débito tributário. Neste ponto, surge como forte hipótese a impossibilidade ou desnecessidade[7] de o juiz penal fixar valores mínimos de indenização, quando da prolação de sentença penal condenatória que tenha como cunho crimes tributários.

Ao observar que o poder público quando faz o lançamento tributário definitivo se torna autorizado e poderá cobrar o tributo através do processo de execução fiscal tributário, e que este título autoriza o processo penal, poder-se-ia dizer que a exigência do artigo 387, IV do Código de Processo Penal foi atendida antes mesmo da propositura da ação penal.

Depurando a matéria, conclui-se que já existe valor mínimo fixado em favor da Fazenda Pública, a qual não depende de qualquer processo de conhecimento ou de fixação de valor mínimo pelo juízo penal para alcançar o valor mínimo ou buscar autorização de execução dos prejuízos oriundos da infração penal tributária. Para além, sequer depende de liquidação o valor apurado pela Certidão de Dívida Ativa, que possui presunção de liquidez e certeza. É dizer, não há como o juiz fixar um valor mínimo na sentença penal para fins de ressarcir o erário quando a dívida definitiva tributária já cumpriu esta função. De mais a mais, é exatamente esta dívida um tópico-parte da materialidade da sentença penal condenatória, sendo condição objetiva de punibilidade.

Pelo que foi analisado, a fixação em sentença de um valor mínimo a ser indenizado, nos casos de crime tributário, resulta em bis in idem, pois o julgador já faz menção e consideração ao débito tributário para se investir no poder de condenar por crime tributário e por já existir o pretenso título executivo. Outro ponto é que a solicitação de condenação mínima, quando já existe processo específico de execução tributária, geraria uma cobrança em duplicidade do valor ou seria simplesmente redundante, não podendo ser executado em sua prática. Em final questionamento: se já existir um título executivo que autoriza o processo de execução fiscal tributário para os autos de infração que foram objeto do processo penal, o que pretende o Ministério Público e o assistente de acusação com nova fixação de patamares mínimos de indenização que são vinculados aos valores definidos no lançamento definitivo do débito fiscal?


[1] Súmula Vinculante 24: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.
[2] A certidão extraída a partir da divida ativa (CDA) é título executivo extrajudicial, que “goza de presunção de certeza e liquidez” (art. 3 da Lei nº. 6.830 de 1980 que dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública).
[3] Segundo a obra de De Plácido e Silva, bis in idem significa para o direito tributário “imposto repetido sobre a mesma coisa”, enquanto para o direito administrativo seria “dupla apenação do servidor público pelo mesmo fato”, e finaliza que no direito processual “indica repetição de idêntica demanda”. (Silva, De Plácido e, Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2001. p.130).
[4] Tanto assim que o paragrafo único, do artigo 63 do Código de Processo Penal, rege que “a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido”.
[5] Neste sentido José Martinho Nunes Coelho e Rafael Pereira Coelho no texto “Valor mínimo dos prejuízos causados pelo crime (art. 387, IV, do CPP)”, disponível em https://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/429/1/D2v1972011.pdf, acesso em 22/1/2019.
[6] Neste sentido RECURSO ESPECIAL Nº 1.686.232 – MS (2017/0180091-7), Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Superior Tribunal de Justiça, Publicação: 18 /08/2017.
[7] Delgado, Yordan Moreira. Costa, Werton Magalhães. Comentários à reforma do código de processo penal e lei de trânsito. Salvador: Jus podivm, 2009. p 57.

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