Opinião

Tempos de AI-5: uma retrospectiva de 2019 à luz de Machado de Assis

Autor

31 de dezembro de 2019, 7h03

1º dia do Advento. São Paulo. Paraisópolis. Ação da Polícia Militar em baile funk: 9 jovens mortos e imagens de outros barbaramente espancados pela polícia. Dia 3 de dezembro. Proximidades do Metrô Paraíso: mídia noticia que 2 crianças “em situação de rua” morreram queimadas em um barraco. Sobre elas, relatou uma testemunha:

As crianças a gente via direto… todos os dias. A gente estava comendo, elas vinham aqui observar a gente comer. Isso eu falo com toda tristeza porque, de fato… São Paulo… Isso não é só aqui… na região do Paraíso… está sendo na região completa da cidade. [1]

Os mortos de Paraisópolis tiveram os nomes divulgados. O mesmo não ocorreu aos filhos de Moisés de Jesus Moreira Gomes. Talvez não tivessem nome. Seu pai, ao contrário, parece ter tido o nome escolhido por um grande escritor realista autor de uma tragédia na qual o maior dos profetas do Judaísmo e o Salvador na tradição cristã encarnam um mesmo personagem. Este, com queimaduras de terceiro grau no rosto e mãos adquiridas na tentativa de salvar os filhos, após ter passado pelo pior que um ser humano pode passar ainda foi preso em flagrante. Nova crucificação no mês do Natal.

Carlos Drummond de Andrade parece ter pensado nos mortos e sobreviventes de 2019 ao inscrever os seguintes versos no Poema de Sete Faces:

Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco.

Parodiando o mesmo poema:

Por que as crianças observavam pessoas comerem
Pergunta o meu coração

No início de sua carreira literária, Drummond teceu críticas à obra de Joaquim Maria Machado de Assis, vista como adversária pelo movimento modernista. Porém:

Com o passar dos anos, Drummond passou a publicar elogios a Machado, o autor da “obra de arte literária mais perfeita já elaborada no Brasil”.

Em 1981, o poeta sugeriu que o Prêmio Esso de jornalismo fosse concedido a Machado, que continuava “o mais atual, o mais agudo observador do nosso tempo e sociedade”.[2]

Em A um bruxo, com amor, Drummond imortalizou sua capitulação:

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.

Concordando com o poeta itabirano, apropriado recorrer a Machado de Assis para tentar compreender 2019, esse ano-esfinge que todos os dias parecia nos dizer “Decifra-me, ou devoro-te!”.

A obra machadiana, em sua fase realista, tal como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, expressa profunda crítica à sociedade filha da Revolução Francesa e aos pensadores iluministas em sua proposta de fazer da razão as “luzes” que iluminariam o mundo, permitiriam ao homem sair da “Idade das Trevas” e construir uma sociedade com liberdade, igualdade e fraternidade.

Em O Alienista (1881), Machado comparou a Revolução Francesa à Revolta dos Canjicas em Itaguaí. Nessa rebelião, os cidadãos de Itaguaí pretendiam acabar com o terror de encarceramentos na Casa Verde (“aquela Bastilha da razão humana”) e matar o alienista Dr. Simão Bacamarte. Transcreve-se a respeito o seguinte trecho:

o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde – dada a diferença de Paris a Itaguaí – podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.[3]

Após tomar a Câmara dos Vereadores, o líder dos canjicas, o barbeiro Porfírio, fez a seguinte proclamação:

Itaguaienses!
Uma Câmara Corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. (…)[4]

Significativo que em nenhum momento da narrativa se houvesse mencionado corrupção da Câmara e que, ao tomá-la, o primeiro argumento proclamado tenha sido sua corrupção.

Machado sabia do que estava falando. E previa o que estava falando. Ora, 2019 foi marcado por desastres variados, dentre os quais ameaças de um novo Ato Institucional 5. Este, em seu primeiro considerando, dizia que o regime instaurado em 1964 se baseava “na luta contra a corrupção”, bem como “na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana” (!). E o último considerando afirmava que o AI-5 era necessário para evitar fossem destruídos aqueles ideais, lembrando o movimento político atual que, alegando a imperiosa necessidade de evitar a derrota da “luta anticorrupção”, pretende, em um ato de Estado de exceção, apagar da Constituição a cláusula pétrea insculpida em seu artigo 5º, LVII, a fim de possibilitar a prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Para 2019, esse ano desafiador da crença na razão humana, foi escrito também o romance Quincas Borba (1892). Pertinente tentar saber quem ou o que é representado por cada um de seus personagens.

Pobre Rubião! Quem ele representa?

No enredo machadiano, era um professor de Barbacena amigo do filósofo Quincas Borba, cuja filosofia, o Humanitismo, tinha como mote a frase “Ao vencedor, as batatas!”. O filósofo deixa em testamento um grande legado a Rubião, com uma condição: de que este cuidasse do cachorro daquele, também chamado, como o dono, Quincas Borba.

Rubião, então riquíssimo, muda-se para a capital do império, o Rio de Janeiro. Lá, apaixona-se por Sofia, esposa de um aspirante a banqueiro. Sofia dá corda ao amor de Rubião, mas faz pouco caso de sua declaração de amor: “Que todas as noites, às 10h, fitasse o Cruzeiro, ele o fitaria também, e os pensamentos de ambos iriam achar-se ali juntos, íntimos, entre Deus e os homens”[5]. Ah, que romântico era o Rubião! E quão românticos são os afeiçoados pela civilização dita moderna? E, de passagem, que crítica ao romantismo literário…

Amigos frequentavam a casa desse Romeu caipira. Lá faziam as refeições e fumavam à vontade os charutos do dono da casa. O encontro entre dois desses amigos tem especial menção. Um deles era o Cristiano Palha (Cristão Pulha?), o marido de Sofia. O outro era um advogado e jornalista, o Camacho, assim descrito:

trazia a política no sangue; não lia, não cuidava em outra coisa. De literatura, ciências naturais, história, filosofia, artes, não se preocupava absolutamente de nada. Também não conhecia grandes coisas de direito; guardava algum do que lhe dera a academia, mais a legislação posterior e as práticas forenses. Com isso ia arrazoando e ganhando[6].

Após a descrição machadiana dos operadores do Direito, dá-se o seguinte episódio na casa de Rubião:

Palha e Camacho olharam um para o outro… Oh! esse olhar foi como um bilhete de visitas trocado entre as duas consciências. Nenhuma disse o seu segredo, mas viram os nomes no cartão, e cumprimentaram-se[7].

Junho de 2019 legou para a História um idílio que lembra aquela troca de olhares em prejuízo de Rubião: em pleno Dia dos Namorados, o presidente da República e o ministro que muito ajudou a elegê-lo quando era juiz federal foram assistir a um jogo de futebol em Brasília. Após, o presidente declarou acerca de sua ida com o ministro ao jogo de futebol: “Gestos dizem mais do que palavras”. “Você olha nos olhos daquela pessoa e sente que aquela pessoa quer o bem e acredita em você, isso não tem preço.” [8]

Camacho representa os profissionais do Direito e jornalistas e seu papel na produção e manutenção da ordem política, social e econômica brasileira. Lembre-se que a “reforma da previdência” tal como aprovada em 2019 foi possível porque camachos operadores do Direito, abnegados em mais uma “luta anticorrupção”, prenderam o candidato favorito à disputa eleitoral de 2018, sob os holofotes dos camachos da imprensa e estes, em seguida, tornaram os holofotes para a causa do retrocesso social em matéria previdenciária.

No decorrer do enredo de Quincas Borba, Palha e Camacho prosperam às custas de Rubião e dão-lhe as costas na doença e na miséria, o que lembra a insistência com que as forças políticas associadas ao capital financeiro e à grande mídia atentam contra a Seguridade Social no Brasil, seja por ações (como nas rotineiras propostas de “reforma”), seja por omissões. Estas são mais silenciosas e talvez ainda mais prejudiciais que as ações, consistindo no abandono, desleixo e penúria em que Estado brasileiro mantém os órgãos e entidades que devem prestar saúde, previdência e assistência social.

Sofia é a promessa de prazer, esposa do capital financeiro, que a exibe para o proveito próprio. Ela, tal qual a ideologia por ela representada, é fiel a seu marido, apesar de temporários flertes com outros personagens.

O ambicioso Palha, o capital financeiro, enriqueceu ao lado de Sofia enquanto ambos administravam os bens e o coração do ex-professor, que, antes de morrer, acabou arruinado e louco, achando que era Luís Bonaparte. Este foi um político francês marcante no Século XIX — célebre por suas poucas luzes —, sobrinho de Napoleão Bonaparte.

Quincas Borba, o filósofo, é a representação dos teóricos legitimadores da sociedade burguesa. Machado deu ao livro o nome desse personagem filósofo caricatura de pensadores iluministas, com isso mais que insinuando clara crítica aos movimentos filosóficos e políticos que derrubaram o Antigo Regime feudal e instituíram a ordem social moderna.

A crítica ao novo mundo burguês fruto da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas é insinuada também na admiração de Rubião a Napoleão e a Luís Bonaparte, admiração que atingiu o ápice na loucura.

A loucura de Rubião, não obstante descrita como caso clínico, representa a adesão a um status quo social e político contrário à racionalidade humana embora se proponha defensor e realizador da mesma racionalidade.

O cachorro Quincas Borba é o fantasma encarnado do filósofo, que Rubião não podia abandonar sob pena de tornar-se pobre. E não abandona. Mas torna-se pobre igualmente.

Mas, afinal, quem é Rubião?

Ele é o cidadão, e não mais o súdito; o homem livre que governa a si próprio como membro do povo; segundo o discurso fundador do Estado de Direito. Rubião é o escravo das tentações da ideologia casada com o capital financeiro. Ele é também uma pessoa de pouca cultura e um crente no ideário político e filosófico da sociedade moderna, embora não o entenda, motivo por que enfaticamente lhe chamava de ignaro o filósofo Quincas Borba.

Rubião é o brasileiro vítima das maquinações dos poderosos, seja no governo de Pedro, seja no governo de Paulo, como nos disse Machado em outro romance: Esaú e Jacó.

Conforme a estética realista, tal qual o final de Madame Bovary (personagem e romance), foi especialmente trágico o fim de Rubião e de Quincas Borba (personagem e romance). O primor do texto demanda sua transcrição:

Poucos dias depois morreu… Não morreu de súbito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça — uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.
— Guardem minha coroa – murmurou. – Ao vencedor…
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dois minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abdicação.

Queria dizer aqui o fim de Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro, e por que antes um que outro – questão prenhe de questões, que nos levariam longe… Eia! Chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens risos, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.

“Questão prenhe de questões, que nos levariam longe…”. Longe, mesmo, certamente até 2019 e para muito além em nosso passado, presente e futuro representados na obra de Machado de Assis.


1 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/12/03/policia-prende-pais-de-criancas-mortas-durante-incendio-em-barraco-na-zona-sul-de-sp.ghtml (Acesso em 25/12/2019)

2 https://oglobo.globo.com/cultura/livros/amor-odio-como-drummond-mudou-de-opiniao-sobre-machado-de-assis-23677990 (Acesso em 25/12/2019)

3 ASSIS, Machado. O Alienista e outras histórias. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 36

4 Idem, p. 40.

5 ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 4. Ed. São Paulo: Martin Claret, 2019, p. 68.

6 Ob.cit., p. 94.

7 Idem, p. 96.

8 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/gestos-de-apoio-a-moro-dizem-mais-que-palavras-defende-bolsonaro-em-culto.shtml (Acesso em 22/06/2019)

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!