Opinião

O foro do domicílio do autor em ação contra o estado e o acesso à Justiça

Autor

  • Pedro Lube Sperandio

    é sócio do escritório Lube & Miguel Advocacia e Consultoria mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Getulio Vargas e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.

18 de dezembro de 2019, 7h03

O Código de Processo Civil de 2015 introduziu no sistema processual brasileiro normas inéditas que, na esteira do texto constitucional, concretizam a garantia de acesso à Justiça através do aprimoramento das regras de jurisdição e competência. Entre elas, aqui se destaca a prerrogativa processual prescrita no parágrafo único do artigo 52 do CPC, a qual faculta ao autor, em ações judiciais movidas contra estado ou Distrito Federal, optar por ajuizá-la no foro de seu domicílio.[1]

A norma vem dar concretude ao direito fundamental de inafastabilidade da tutela jurisdicional, previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição. Ocorre que tal novel direito do cidadão tem encontrado resistência em sua aplicação, sobretudo quanto à possibilidade do foro do domicílio do autor estar situado em território estadual diverso daquele do ente demandado. Alguns magistrados têm declinado sua competência, até mesmo de ofício, colocando em dúvida a extensão da referida norma sob o pretexto de impossibilidade do Poder Judiciário de certo estado-membro ou Distrito Federal julgar atos exercidos por outro ente federativo.

Foi o que aconteceu em processo patrocinado por nosso escritório. Propusemos ação pelo procedimento comum com pedido de anulação de condenação imposta pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro a uma empresa capixaba que havia prestado consultoria técnica e financeira para elaboração de estudo de viabilidade para implantação de destilaria no município de Quissamã (RJ). No caso, o TCE-RJ, em tomada de contas ex officio, entendeu pela imputação de responsabilidade solidária à empresa por supostas irregularidades cometidas pelo então prefeito de Quissamã no processo licitatório que deu ensejo ao contrato administrativo por ela executado. Como a empresa é domiciliada em Vitória, no estado do Espírito Santo, optou-se então pela propositura da ação em uma das varas de Fazenda Pública estaduais da capital capixaba, com base no citado artigo 52, parágrafo único, do CPC, reforçado pela interpretação conforme dada em recentes julgados proferidos pelo STJ.

Entretanto, a 5ª Vara da Fazenda Pública Estadual, Municipal, Registros Públicos, Meio Ambiente e Saúde de Vitória, ao receber a petição inicial, proferiu decisão interlocutória em que, ex officio, declarou sua incompetência para o julgamento do feito. Arguiu como fundamento que o foro de Vitória, por estar vinculado ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo, não poderia apreciar pedido que demande obrigação a ente estadual diverso (estado do Rio de Janeiro). Deu-se assim interpretação restritiva ao citado parágrafo único do artigo 52 do CPC, por entender que tal opção não se coadunaria com o sistema federativo.

Diante disso, impugnou-se tal decisão por meio de agravo de instrumento, cujo cabimento está alicerçado na interpretação analógica e extensiva dada ao inciso III do artigo 1.015 do CPC pelo STJ.[2] O recurso foi interposto sob dois fundamentos autônomos, a saber: (a) o estabelecimento da possibilidade de opção pelo domicílio do autor disposto pelo artigo 52, parágrafo único do CPC, bem como pela (b) impossibilidade de reconhecimento da incompetência relativa (territorial) de ofício pelo juízo, por violação ao artigo 64, parágrafo 1º do CPC[3] e incidência do enunciado da Súmula 33 do STJ.

No dia 5 de dezembro de 2019, por decisão monocrática prolatada com fulcro no artigo 932, inciso V, alínea “a”, do CPC, o desembargador Ewerton Schwab Pinto Júnior conheceu e deu provimento ao recurso “para reconhecer o error improcedendo e anular a decisão recorrida, para regular processamento da ação na origem” (AI 0034166-26.2019.8.08.0024, 1ª Câmara Cível do TJ-ES). O desembargador relator — conquanto tenha reconhecido a existência de debate na doutrina e na jurisprudência sobre a aplicabilidade de tal regra invocada no artigo 52, parágrafo único do CPC, sobretudo no que tange a impossibilidade de intervenção na organização administrativa de um estado em outro — no final acatou o pedido recursal, de acordo com o que se tem decidido no STJ.

A rigor, a citada decisão monocrática preferiu não enfrentar diretamente o debate no tocante aos limites da aplicação do artigo 52, parágrafo único do CPC, porém entendeu que a situação inerente à declaração de incompetência relativa de ofício a antecederia. Por isso, resolveu anular a decisão recorrida, com base no segundo fundamento recursal (b), isto é, o de que o artigo 64, parágrafo 1º, do CPC, só permitiria o reconhecimento ex officio para hipóteses de incompetência absoluta (e não relativa-territorial como no caso). Entendimento esse assente na Súmula 33 do STJ.

Para tanto, um dos julgados do STJ citados no recurso foi utilizado na fundamentação. Trata-se do Agravo Interno no Conflito de Competência 163.985, julgado em 18 de junho de 2019, relatado pelo ministro Gurgel de Farias. Nesse caso, a parte ajuizou ação em face do estado de Mato Grosso em seu domicílio situado no município de Ituiutaba (MG).

No entanto, identificou-se e colacionou-se no recurso pelo menos mais dois julgados sobre o tema proferidos pelo STJ, ambos sob relatoria da ministra Regina Helena Costa. Primeiro, o Agravo Interno no Conflito de Competência 157.479, julgado em 28 de novembro de 2018, em que a parte autora ajuizou ação em face do estado de Sergipe em seu domicílio situado no município de Pedreiras (MA). Segundo, a recente decisão no Agravo Interno no Conflito de Competência 165.119, julgado em 29 de outubro de 2019, em que se discutia a competência da comarca de Campos dos Goytacazes (RJ) para julgar ação de responsabilidade civil promovida em face do estado do Espírito Santo em litisconsórcio com um hospital estadual seu.

Em todos esses casos, manteve-se incólume o entendimento da corte superior tanto sobre a possibilidade da eleição do foro do domicílio do autor nas ações movidas em face de estados/DF, como sobre a impossibilidade de declaração de incompetência relativa territorial de ofício.

Apesar disso, cumpre ressalvar que esse suposto problema de organização judiciária é um dos objetos examinados pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.492, que tramita no STF. Trata-se de processo de controle concentrado de constitucionalidade proposto pelo governador do estado do Rio de Janeiro, que, entre outros dispositivos impugnados, sustenta que o artigo 52, parágrafo único, do CPC, comprometeria a efetividade da garantia do contraditório (Constituição, artigos 3º, I, 5º, LIV, LV), esvaziaria a Justiça Estadual como componente da auto-organização federativa (Constituição, artigo 125) e poderia dar margem a abuso de direito no processo (Constituição, artigo 5º, LIV).

Na referida ADI 5.492 já se manifestaram pela constitucionalidade do artigo 52, parágrafo único do CPC, o Senado, a Advocacia-Geral da União e o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) (amicus curiae). Por outro lado, o Ministério Público Federal e a Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep) (amicus curiae) se manifestaram por sua inconstitucionalidade (conferir interpretação conforme a fim de que a competência seja definida nos limites territoriais do respectivo estado/DF.).

De fato, a questão trazida aqui ainda será objeto de muita controvérsia na jurisprudência e na doutrina acerca da interpretação quanto a sua aplicação. Por isso, os debates e premissas apresentadas neste texto são elucidativas, ou seja, servem apenas como ponto de partida para o exame do tema. Não existe nenhuma pretensão aqui em se dar respostas rigidamente fechadas e conclusivas. Contudo, enquanto não há o desfecho pelo STF na citada ADI 5.492, defende-se, sim, a correição tanto da comentada recente decisão proferida pelo TJ-ES como das decisões do STJ. Afinal, ante a presunção de constitucionalidade do comando legislativo do artigo 52, parágrafo único, do CPC, tais julgados são acertados por conferirem exatamente o direito positivado do autor à opção de aforamento da ação em seu domicílio, sem qualquer restrição à circunscrição territorial do estado demandado.

Data máxima vênia¸ nesse momento, portanto, decisão em sentido diverso a esse seria além de contra legem¸ estaria também em desacordo com a interpretação até então conferida pelo STJ (o que no mínimo atrairia um forte ônus argumentativo para tal). Em nossa visão, reitera-se, o artigo 52, parágrafo único, do CPC, proporciona uma prerrogativa processual em favor do cidadão, trazendo assim um pouco mais de equilíbrio ao desprestigiado jurisdicionado, em contrapartida à grande sorte de prerrogativas mantidas em favor do poder público. Trata-se, enfim, de garantia que confere maior acessibilidade à jurisdição e que não implica violação ao pacto federativo.[4]

[1] Artigo 52. É competente o foro de domicílio do réu para as causas em que seja autor Estado ou o Distrito Federal. Parágrafo único. Se Estado ou o Distrito Federal for o demandado, a ação poderá ser proposta no foro de domicílio do autor, no de ocorrência do ato ou fato que originou a demanda, no de situação da coisa ou na capital do respectivo ente federado.

[2] V.g., REsp 1.679.909. Rel.: Min. Luis Felipe Salomão. 4ª T. DJe: 14/11/2017.

[3] Artigo 64. A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação. § 1º A incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício.

[4] Concorda-se com a manifestação do IBDP na qualidade de amicus curiae na ADI 5.492: “O Código de Processo Civil manteve em favor do Poder Público em juízo uma grande sorte de prerrogativas (v.g., artigos 85, § 3º, 91, caput, 183, caput, § 2º, 496, 534 e 535, 968, § 1º, 1.007, § 1º, 1.021, § 5º, 1.026, § 3º, 1.059), mas, por outro lado, prestigiou também o próprio jurisdicionado, exatamente para que haja um equilíbrio de forças entre Estado e cidadão à luz das garantias processuais constitucionais envolvidas. Se o tratamento diferenciado em prol do Estado é constitucional, também compatível com a Constituição Federal há de ser o tratamento diferenciado em favor do cidadão. Afinal, o princípio da igualdade “interdita tratamento desuniforme às pessoas”. (…) Agora, após quase três décadas de instituição da ordem constitucional de 1988, que prevê como garantia fundamental a inafastabilidade da tutela jurisdicional, chegou o momento de os Estados-membros e o Distrito Federal – todos detentores de ostensivas prerrogativas processuais – também se sujeitarem à mesma “opção de foro” já atribuída, pela própria Constituição Federal, aos autores de demandas propostas contra a União. Assim, o Código de Processo Civil de 2015 cumpre o desiderato central de disciplinar e de ordenar as regras de processo – inclusive as regras que versem sobre competência territorial – “conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil” (artigo 1º). A recíproca correspondência entre os parágrafos únicos dos artigos 51 e 52 do Código de Processo Civil, respectivamente em relação às causas em que demandadas a União e os Estados ou o Distrito Federal, justifica-se sob o ponto de vista constitucional e não implica violação ao pacto federativo”. (…) A possibilidade de a demanda ser proposta no domicílio do autor não altera a competência da justiça estadual, federativamente unitária. A auto-organização e a autoadministração internas previstas na Constituição Federal (artigo 125) não afetam a competência da justiça estadual para apreciar as demandas que exorbitem da justiça especializada. (…) Afinal, compete à lei federal (artigo 22, I, da CF) estabelecer regras processuais de competência territorial e a escolha legislativa privativamente realizada pelo Código de Processo Civil deve ser respeitada, em obediência aos “princípios da separação de Poderes, da segurança jurídica e da isonomia”.

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  • é sócio do escritório Lube & Miguel Advocacia e Consultoria, mestrando em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo, pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Getulio Vargas e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.

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