Opinião

A MP 905/19 e nova jornada de trabalho dos bancários

Autores

  • Alexandre Agra Belmonte

    é ministro do Tribunal Superior do Trabalho Professor Titular do IESB Doutor Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF) e membro das Academias Brasileira de Direito do Trabalho e Nacional de Direito Desportivo.

  • André Araújo Molina

    é professor de Direito Processual do Trabalho da Faculdade de Direito da UFMT juiz do Trabalho Titular no TRT-23 pós-doutor em Direito do Trabalho pela USP e titular da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

16 de dezembro de 2019, 7h29

A CLT adotou a técnica de fixar jornadas especiais para algumas categorias. Assim o fez, diante de circunstâncias que foram, ao longo do tempo, superadas pela tecnologia e pelas transformações do mercado de trabalho, em relação aos bancários.

Atualmente, o que justificava que o pedreiro trabalhasse, muitas vezes debaixo de sol, durante oito horas por dia e quarenta e quatro por semana, ao longo de seis dias por semana, num serviço pesado e desgastante, e todo bancário, independentemente da função exercida, o fizesse em apenas seis horas por dia, excluídos os sábados?

Outras tantas categorias especiais poderiam ser comparadas com as chamadas categorias comuns, caso, por exemplo, de quem trabalha no comércio ou com movimentação de carga, e chegaríamos à mesma conclusão de que as jornadas especiais, em sua maioria, se tornaram corporativas, discriminatórias e desajustadas da realidade do mercado.

A eliminação das jornadas especiais legalmente fixadas, que terminaram por se tornar discriminatórias, ressalvadas condições estressantes, penosas e insalubres, nos parece a providência que, por justiça social, atualmente se impõe.

Se o legislador, futuramente, assim vier a proceder, nada impedirá, se equalizadas as jornadas, que por norma ou convenção coletiva, jornada reduzida em relação à geral, possa ser fixada, em atendimento a circunstâncias peculiares empresariais ou categoriais de determinado setor ou lugar de produção.

A Medida Provisória 905/2019 e a jornada dos bancários
O setor bancário foi um dos mais afetados pela automação. A maioria das operações é hoje feita à distância ou por meio de caixas automáticos, reduzindo sensivelmente os postos de trabalho no setor, as filas que caracterizavam o atendimento bancário, bem como o estresse e o frenetismo na prestação do serviço.

Como consequência, a recente edição da Medida Provisória 905, de 11 de novembro de 2019, trouxe diversas alterações na legislação trabalhista, destacando-se a mudança de redação do artigo 224 da CLT, que readequou, quase que integralmente, a jornada de trabalho dos bancários.

Até novembro de 2019, a CLT dizia que os cargos gerais nos bancos eram enquadrados na jornada de seis horas diárias, com intervalo de 15 minutos. Também existiam as funções com grau de fidúcia que estavam excepcionadas da regra, desde que cumulassem o recebimento da gratificação e os poderes de gestão, para se enquadrar na jornada de oito horas diárias, com o intervalo de uma a duas horas. Por fim, alguns cargos excepcionais no banco, assim entendidos os gerentes-gerais de agência e de direção empresarial, não se sujeitavam a controle de jornada.

A regulamentação da duração do trabalho dos bancários passou incólume pelas contundentes alterações promovidas pela reforma trabalhista, Lei 13.467 de 2017, mas foi agora objeto da atualização promovida pela MP 905 de 2019.

A primeira novidade foi restringir a jornada especial de seis horas diárias e trinta semanais apenas para aqueles que operam exclusivamente no caixa, respeitando o intervalo de quinze minutos, mas admitindo que estes possam pactuar, a qualquer tempo, jornada superior, limitada a oito horas diárias, por meio de acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.

A manutenção da jornada reduzida dos caixas certamente decorreu do fato de tratar-se do bancário que fica na linha de frente, submetido a maior estresse.

A inclusão do § 3º ao artigo 224 da CLT reforça a ideia de que, à exceção dos caixas e dos trabalhadores referidos no artigo 226, os ocupantes das demais funções, que antes estavam submetidos na jornada especial de seis horas diárias, agora foram movimentados para a regra geral da jornada de oito horas diárias, com o intervalo intrajornada de uma a duas horas e com a possibilidade de trabalho aos sábados, até o limite de quarenta horas semanais.

Com a mudança de redação do caput e a introdução do § 3º no artigo 224 da CLT, pela MP 905 de 2019, o § 2º do artigo precisará ser reinterpretado, dentro do novo contexto normativo. A inclusão do § 3º ao artigo 224 da CLT, que universaliza a jornada de oito horas para os bancários, leva à primeira conclusão de que os ocupantes dos cargos técnicos e dos cargos administrativos, não mais precisarão receber gratificação, nem acumular poderes de gestão, para trabalhar as oito horas diárias. Porém, caso passem a atender ambos os requisitos, previstos no artigo 224, § 2º, da CLT, a segunda conclusão é que ficarão, então, excluídos dos limites da jornada bancária, que agora é de oito horas diárias e quarenta semanais. Segue que, para as ocupantes de cargos de gestão, na vigência da MP 905 de 2019, passarão da antiga jornada especial de oito horas para a ausência de controle de jornada.

Neste particular, como a CLT tem norma específica e ela prevê, se atendido o adicional de pelo menos 1/3, que os cargos de chefia e gestão bancários são de confiança (artigo 224, § 2º, 2ª parte), com exclusão da duração horária (artigo 224, § 2º, 1ª parte c/c § 1º), não mais se lhes aplicará o artigo 62, II, da CLT.

Também na nova redação do caput do artigo 224 da CLT foi retirada a limitação quanto ao trabalho dos bancários nos sábados, de modo que, seguindo a jurisprudência atual do TST nesse sentido (Tema repetitivo 002 – DEJT 19.12.2016), o sábado é considerado dia útil e poderá ser exigido trabalho dos bancários, respeitados os limites diário e semanal.

A interpretação do Tribunal Superior do Trabalho sempre foi no sentido de que a gratificação de função recebida pelo bancário que, por decisão judicial, fosse excepcionado da regra do artigo 224, § 2º, da CLT, não seria suscetível de compensação com as horas extras e reflexos reconhecidos judicialmente. Agora, em sentido oposto, trouxe a MP 905 de 2019 a inserção do § 4º ao mesmo artigo celetista, para dizer, expressamente, que o valor recebido a título de gratificação de função e seus reflexos, caso o exercício de função de confiança seja afastado por decisão judicial, enquadrando o bancário em jornada inferior, de seis ou oito horas diárias, deverá ser integralmente deduzido ou compensado.

Por fim, o artigo 225 da CLT teve a redação mantida no sentido de que a duração normal do trabalho dos bancários poderá ser excepcionalmente prorrogada para até oito horas diárias, dentro do limite de quarenta horas semanais. Agora, no contexto em que a regra passou a ser a jornada diária de oito horas, a disposição terá a função de servir de autorização para que apenas os caixas e ocupantes das funções específicas do artigo 226 da CLT possam realizar até duas horas extras por dia, com o respectivo pagamento de horas extras, bem como, na vertente de limitação, impede que os demais bancários, que ordinariamente já trabalharão em jornada de oito horas, façam qualquer hora extra, dentro do figurino legal.

Direito Intertemporal
Uma questão importante que se apresenta a partir de qualquer alteração legislativa é sobre a definição da sua eficácia temporal. Especificamente, orientar, de maneira objetiva, qual seria a jornada de trabalho dos bancários a partir da vigência da MP 905 de 2019, com especial atenção aos trabalhadores que se encontram com os contratos em curso e que, há anos, trabalham em jornada diferente (e reduzida) em relação aos novos limites.

A CLT adotou a regra que: “Os dispositivos de caráter imperativo terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas, antes da vigência desta Consolidação.” (artigo 912), deixando claro que a lei nova atinge os contratos em curso.

Atualmente, o Supremo Tribunal Federal é firme na posição de que não há direito adquirido a regime jurídico (RE 563.965 – DJE 20.03.2009 – Repercussão Geral), já que a ninguém é dado invocar a garantia de direito adquirido para se ver livre da incidência do novo regime legislativo que alterou as condições estatutário-funcionais nas quais estão inseridos. Para tanto, o Tribunal diferencia as cláusulas contratuais das normas legais. Em precedente recente do Plenário, afirmou que as cláusulas contratuais ficariam a salvo das futuras alterações legislativas, resguardando-se, aí sim, o direito adquirido contratual das partes de verem os contratos executados integralmente e de acordo com o figurino legislativo da data da contratação. De outro lado, nas relações jurídicas que são regradas pela legislação, sem previsão contratual explícita, as novas leis têm aplicação imediata, alcançando as relações jurídicas em curso, para reconfigurá-las (RE 211.304 – DJE 03.08.2015).

De sua parte, o Tribunal Superior do Trabalho já foi convocado para enfrentar situação idêntica à da MP 905 de 2019, quando da MP 56 de 2002, depois convertida na Lei 10.556 de 2002, que aumentou a jornada de trabalho dos empregados do BNDES.

No caso concreto, o TST definiu que o aumento da jornada de trabalho, trazido por Medida Provisória, teria eficácia imediata nos contratos em curso, dos empregados do BNDES, cuja posição cristalizou-se na OJ-T 77 da SDI1 do TST.

Encerrando a questão do direito transitório quanto à nova jornada bancária, o artigo 52 da própria MP 905 de 2019 diz: “Ressalvado o disposto no Capítulo I, as disposições desta Medida Provisória aplicam-se, integralmente, aos contratos de trabalho vigentes.”

Em resumo esquemático: I) os contratos já executados e extintos até 11.11.2019, a jornada bancária será integralmente regulada pela redação anterior do artigo 224 da CLT, ainda que eventual ação judicial seja ajuizada já na vigência da MP 905 de 2019; II) Os contratos novos serão integralmente regulados pela nova redação do artigo 224 da CLT; III) Os contratos em ainda curso sentirão a eficácia imediata da nova legislação, apenas em relação à jornada praticada a partir de 11.11.2019, resguardando-se a regulamentação pela lei antiga, quanto ao período executado anteriormente; IV) Havendo alguma cláusula contratual expressa, quanto à jornada de trabalho, celebrada entre o bancário e o empregador, essa deverá ser observada, respeitando-se a ultratividade do ajuste até o final do período contratual; e V) As cláusulas das normas coletivas, que tratam especificamente da jornada de trabalhos dos bancários, deverão ser respeitadas, inclusive após a vigência da MP n. 905 de 2019 e até o final do período de vigência do instrumento coletivo.

Caso a Medida Provisória perca a sua eficácia, seja pelo vencimento do prazo sem a sua apreciação pelo Congresso Nacional, seja pela rejeição expressa na votação de mérito, haverá, consequentemente, a retomada da eficácia da redação anterior do artigo 224 da CLT, que voltará a regular a jornada dos bancários. Caso isso ocorra, a MP n. 905 de 2019 preservará a sua eficácia em relação às situações jurídicas que ocorrerem durante o período de sua vigência e eficácia (artigo 62, §§ 11 e 12, da CF/88).

O princípio da irredutibilidade salarial
Uma última questão decorrente que se coloca é sobre o resguardo do princípio da irredutibilidade salarial. O aumento da jornada de trabalho, imediatamente, sem o aumento de salários, proporcionalmente ao número de horas trabalhadas, reduzirá o salário dos bancários.

O Supremo Tribunal Federal validou a transmudação de regime de celetista para estatutário dos servidores públicos, fixando a tese de que deveria ser resguardado o mesmo patamar remuneratório (RE 212.131 –DJ 29.10.1999), até que no julgamento do RE 563.965 firmou que “Não há direito adquirido a regime jurídico, desde que respeitado o princípio constitucional da irredutibilidade de vencimentos.” (DJE 20.03.2009 – Repercussão Geral).

Enfim, I) para aqueles que laboravam em jornada de seis horas diárias e que agora tiveram o aumento para oito horas, deverão ter aumento salarial proporcional; II) já para quem cumpria jornada de oito horas, inserido na exceção do artigo 224, § 2º, da CLT, com gratificação de função, não mais precisará receber a gratificação para ser exigida a mesma carga horária, no entanto, como deve manter a mesma remuneração, o valor equivalente da gratificação que será retirada, converter-se-á em salário, para garantia da irredutibilidade.

Autores

  • é ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Professor Titular do IESB, Doutor, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF) e membro das Academias Brasileira de Direito do Trabalho e Nacional de Direito Desportivo.

  • é Professor Titular da ESMATRA-MT, Pós-Doutorando em Direito do Trabalho pela USP, Doutor em Filosofia do Direito e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, Bacharel em Direito pela UFMT, Juiz do Trabalho Titular no TRT da 23ª Região e membro da Academia Mato-Grossense de Direito.

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