Diário de Classe

STJ acerta ao reinterpretar o instituto da estabilização da tutela antecipada

Autor

  • Igor Raatz

    é sócio-fundador do Raatz & Anchieta Advocacia professor da Universidade Feevale pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

7 de dezembro de 2019, 8h32

Não é de hoje que, na tradição jurídica luso-brasileira, a lei — por mais singela que seja a sua aplicação — venha cedendo às tentações de juízes e Tribunais fazerem prevalecer o seu “sentimento de justiça”[1] ou uma espécie de “razão iluminada”.

Em Portugal, por exemplo, após a revolução liberal do século XIX, houve uma forte resistência dos juízes ao constitucionalismo surgido com o fim do antigo regime, os quais não aceitaram a “supremacia dos políticos sobre os juristas”, defendendo o “império da razão”, adverso da criação parlamentar do direito, e dotado de legitimidade pela autoridade racional ou científica.

Nessa perspectiva, a soberania, ou seja, o poder do povo de criar o direito pela via parlamentar, estaria limitada pela razão, a qual constituía a verdadeira ordem jurídica[2]. Contemporaneamente, esse discurso parece se repetir tanto no âmbito dos Tribunais Superiores brasileiros, aos quais há quem defenda competir um “papel iluminista”, como é o caso do ministro Luís Roberto Barroso (sobre o tema, em tom crítico, ver aqui), quanto no âmbito doutrinário.

A diferença entre texto e norma, tornou-se, para parcela considerável da doutrina, um subterfúgio para que o juiz possa simplesmente criar a norma conforme melhor lhe aprouver, mesmo que, para isso, tenha que ignorar o texto normativo.

É provável que uma das causas desse modo de compreender o Direito, no Brasil, decorra da ênfase que se conferiu à “interpretação teleológica” da lei, com franco apego ao pensamento de Jhering em desabono à metodologia de Savigny, durante o século XIX e primeira metade do século XX.

Porém, nem mesmo Carlos Maximiliano – talvez o principal responsável por disseminar entre nós a noção de interpretação teleológica, calcada na busca pelos “fins da lei”, recurso capaz de conferir ao intérprete a possibilidade de “erigir-se como verdadeiro legislador”[3] – aceitaria que a função do juiz fosse “alterar, corrigir, substituir” os textos: “pode melhorar o dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém não – negar a lei, decidir o contrário do que a mesma estabelece”. Não seria tarefa do juiz criar exceções aos preceitos legais, muito menos emancipar-se do legislador, sobrepondo sua vontade individual à vontade geral manifesta na lei[4].

O respeito irrestrito à lei, por sinal, tem sido, como muito bem apontado por Lenio Streck, uma “atitude revolucionária” (clique aqui). E isso, é importante registar, já não mais se restringe somente ao âmbito da aplicação judicial do Direito. Muitas vezes, a doutrina brasileira – mesmo que eventualmente provida de boas intenções – tem conferido aos textos normativos um significado que estes não possuem, colocando-se na condição de doutrinadores-legisladores. É verdade que a doutrina não pode ser servil às decisões dos Tribunais; porém, isso não significa que ela esteja acima dos textos normativos. Algo, por sinal, bastante simples.

Um bom exemplo disso é a interpretação que se conferiu ao artigo 304 do Código de Processo Civil brasileiro, o qual prescreve que “a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”. Antes de adentrar no ponto, cabe fazer uma breve explanação sobre o instituto da “estabilização da tutela antecipada”, positivado no referido dispositivo legal.

Pode-se dizer que a “estabilização da tutela antecipada” busca prestigiar a tutela jurisdicional de cognição sumária, mediante a adoção de uma espécie de cognição exauriente eventual a depender da manifestação de vontade da parte ré, contra a qual foi deferida a tutela antecipada.

Sob um primeiro olhar, a estabilização da tutela antecipada encontra-se respaldada nas situações que Ovídio Baptista da Silva nominava de “tutela sumária autônoma”, vale dizer, naquelas hipóteses em que a antecipação da tutela — no que concerne aos seus efeitos — não tem nada de provisória, na medida em que impõe consequências que somente poderão ser reparadas por alguma forma subsequente de reposição monetária[5].

Um exemplo bastante atual seria a concessão de tutela antecipada para a realização de um procedimento médico sob as expensas do Estado. Nesse caso, uma vez satisfeito o direito do autor, pode este carecer de interesse na obtenção de um provimento jurisdicional de cognição exauriente e com aptidão para produzir coisa julgada, até porque os efeitos práticos que seriam obtidos com a tutela final já foram alcançados — aqui, a extinção do processo em razão da irreversível satisfação do direito do autor impediria que se continuasse uma discussão judicial em busca da tutela de cognição exauriente acerca da qual não permanece sequer o interesse das partes.

Contudo, nos termos da legislação brasileira, a estabilização da tutela antecipada também poderá ocorrer nos casos em que os efeitos provenientes da decisão que concede a tutela antecipada sejam, faticamente, provisórios.

Imaginemos o caso em que o autor obtém, em tutela antecipada, a determinação para a exclusão do seu nome de um órgão de proteção ao crédito, dando-se por satisfeito com esse efeito prático, mesmo não existindo declaração, fundada em cognição exauriente, sobre a inexistência da dívida que gerou a sua negativação. Há, nesses casos, uma espécie de ruptura com a noção de cognição sumária, prevalente no direito brasileiro e duramente crítica por Ovídio Baptista da Silva, a qual não significaria nada mais do que aquela legitimação de um juízo sumário, à espera de confirmação, no curso da ação, cuja cognição final a completará”[6].

A adoção da estabilização da antecipação da tutela permite, desse modo, que o juiz decida com base em cognição sumária e que essa decisão adquira um alto grau de estabilidade ao ponto de somente poder ser revertida se for proposta uma nova ação pelo réu – na qual assumirá posição de autor. Vale dizer, a cognição sumária não estará mais à espera de confirmação pela decisão definitiva a ser proferida no mesmo processo, pois o exaurimento da cognição, uma vez deferida a tutela antecipada, dependerá de ato positivo do réu.

Trata-se, pois, de um fenômeno próprio daquilo que, com base em Menchini, pode-se denominar de época da jurisdição sem finalidade cognitiva[7].

No Brasil, porém, o legislador mostrou-se cauteloso com a possibilidade da estabilização da tutela antecipada, fazendo com que a estabilização da tutela antecipada não opere de plano — o que redundaria na imediata extinção do processo, impondo-se ao réu, caso queira reverter a decisão de cognição sumária contra si proferida, a necessidade de propor uma nova ação. Com efeito, o artigo 304 do CPC estabelece que a decisão que conceder a tutela antecipada em caráter antecedente torna-se estável se contra ela não for interposto o respectivo recurso”.

Recurso é meio voluntário de impugnar uma decisão judicial que, diferentemente de outros meios impugnativos como, por exemplo, a ação rescisória,é manejado no mesmo processo em que proferida a decisão impugnada — é meio de impugnação endoprocessual, portanto. Não se confunde, pois, com outros atos praticados pelas partes que se voltam a objetivos diversos, como, por exemplo, a contestação e outros atos postulatórios que não têm por finalidade impugnar uma decisão judicial, em que pese o legislador tenha, no artigo 304 do CPC, ampliado a própria funcionalidade do recurso mediante uma espécie de “efeito obstativo da tutela antecipada”, uma vez que, agora, além de meio de impugnação da decisão que concede a tutela antecipada assumiu as vezes de ato impeditivo da estabilização da tutela antecipada (sobre o ponto, ver aqui).

Apesar disso, no Brasil, difundiu-se a doutrina no sentido de que qualquer manifestação do réu — e não somente a interposição do respectivo recurso como diz a lei – impediria a estabilização da tutela antecipada. Há quem diga, por exemplo, que “pode ocorrer de o réu não interpor agravo de instrumento, mas desde logo oferecer contestação no mesmo prazo — ou, ainda, manifestar-se dentro desse mesmo prazo pela realização da audiência de conciliação ou de mediação”, de modo que a manifestação do réu no primeiro grau de jurisdição serviria “tanto quanto a interposição do recurso para evitar a estabilização dos efeitos da tutela”[8]. Também nesse sentido, tem-se afirmado que “eventual apresentação da defesa no prazo do recurso é um dado relevante, porque afasta a inércia e, com isso, a estabilização”[9].

Animado por esses entendimentos, o Superior Tribunal de Justiça, inicialmente, adotou o posicionamento de “embora o caput do artigo 304 do CPC⁄2015 determine que ‘a tutela antecipada, concedida nos termos do artigo 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso’, a leitura que deve ser feita do dispositivo legal, tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, é que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação pela parte contrária, sob pena de se estimular a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os Tribunais, além do ajuizamento da ação autônoma, prevista no art. 304, § 2º, do CPC⁄2015, a fim de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada” (REsp 1.760.966⁄SP, Rel. Ministro MARCO AURELIO BELLIZZE, Terceira Turma, julgado em 4⁄12⁄2018, DJe 7⁄12⁄2018, sem grifos no original).

Novamente, o recurso à interpretação teleológica — mencionado no início do texto como subterfúgio para o intérprete transformar-se em legislador — foi utilizado para reescrever a lei.

Antes mesmo da referida decisão, no livro “Tutelas Provisórias no Processo Civil brasileiro” (clique aqui), defendi que referido entendimento mostrava-se equivocado, tendo em vista três argumentos.

Primeiro, que nem a doutrina, nem o órgão jurisdicional tem a liberdade para substituir a palavra recurso por qualquer manifestação do réu tendente a dar prosseguimento ao processo, modificando o seu sentido. Ora, texto e a norma não são cindíveis razão pela qual não se pode considerar correta uma interpretação que extrapole os limites semânticos do texto[10].

Segundo, que o entendimento em questão transforma a estabilização numa figura tão excepcional que ela acabaria deixando de existir, até por razões práticas: como, no final das contas, somente em casos de revelia haveria a estabilização (pois qualquer atitude do réu impediria esse fenômeno) o autor deixaria de ter até mesmo interesse na estabilização, pois diante da revelia do réu inevitavelmente teria preferência pela decisão fundada em cognição exauriente com aptidão para ser coberta pela coisa julgada.

Terceiro, que a proposta de generalizar o ato impeditivo da estabilização é contrária à tônica que pauta o próprio instituto, ou seja,da jurisdição sem finalidade cognitiva, com a prevalência da tutela sumária em desabono da chamada ordinariedade.

No entanto, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça reviu o seu posicionamento, entendendo que onde está escrito recurso deve-se ler efetivamente recurso. No voto-vencedor, a ministra Regina Helena Costa, asseverou que não mereceria “guarida o argumento de que a estabilidade apenas seria atingida quando a parte ré não apresentasse nenhuma resistência, porque, além de caracterizar o alargamento da hipótese prevista para tal fim, poderia acarretar o esvaziamento desse instituto e a inobservância de outro já completamente arraigado na cultura jurídica, qual seja, a preclusão”. Nessa linha, argumentou que “embora a apresentação de contestação tenha o condão de demonstrar a resistência em relação à tutela exauriente, tal ato processual não se revela capaz de evitar que a decisão proferida em cognição sumária seja alcançada pela preclusão, considerando que os meios de defesa da parte ré estão arrolados na lei, cada qual com sua finalidade específica, não se revelando coerente a utilização de meio processual diverso para evitar a estabilização, porque os institutos envolvidos – agravo de instrumento e contestação – são inconfundíveis.”Ainda, chancelou a tese de que “a ausência de contestação já caracteriza a revelia e, em regra, a presunção de veracidade dos fatos alegados pela parte autora, tornando inócuo o inovador instituto” (REsp 1797365/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/10/2019, DJe 22/10/2019)

É interessante notar, ainda, o fato de a ministra Regina Helena Costa ter mencionado, em seu voto, que durante a tramitação legislativa do atual CPC, optou-se por abandonar expressão mais ampla – "não havendo impugnação" (sem explicitação do meio impugnativo) – adotando-se expressão diversa — "não for interposto o respectivo recurso". Desse modo, segundo a ministra, “a interpretação ampliada do conceito, efetuada pelo tribunal de origem, caracterizaria indevida extrapolação da função jurisdicional”.

Nitidamente, o tratamento inicial conferido ao artigo 304 do CPC pelo Superior Tribunal de Justiça não passava de uma tentativa de reescrever a lei. Que os textos normativos não são inequívocos e que mesmo diante da clareza não cessa a interpretação são lições tão velhas que nem sequer precisariam ficar sendo o tempo todo repetidas (elas eram discussões palpitantes no clássico Compêndio de Hermenêutica para uso das faculdades de direito do império, de Francisco de Paula Baptista, o qual, em crítica à doutrina de Savigny, defendia que  interpretação não teria lugar sempre que a lei, em relação aos fatos sujeitos ao seu domínio, fosse clara e precisa).

Hoje essas afirmações não passam de obviedades, as quais, no entanto, têm desempenhado o papel de legitimar formas de extrapolar a função jurisdicional, investindo juízes e tribunais na condição de legisladores. O julgamento do mencionado REsp 1797365/RS é, diante desse quadro, um sopro de esperança na busca pelo irrestrito respeito à legalidade.

 


[1] Na verdade, a busca do jurista brasileiro por justiça ao arrepio da lei remonta, com bem observado por Francisco Sabadina Medina, ao período do ius comune no Brasil e em Portugal. Nesse sentido, ver MEDINA, Francisco Sabadina. Anwendung und Auslegung von Recht in Portugal und Brasilien –  Eine rechtsvergleichende Untersuchung aus genetischer, funktionaler und postmoderner  Perspektive – Zugleich ein Plädoyer für mehr Savigny und weniger Jherin, de Benjamin Herzog.  Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun, 2016, p. 409.

[2]  Cabe registrar que o desejo que se tinha, em Portugal, com o fim do antigo regime era claro: uma concepção democrática do direito capaz de conter o poder dos juízes e juristas, colocando fim ao que, na época, se chamava de “desembargocracia” (em clara alusão ao antigo Tribunal Supremo, denominado Desembargo do Paço).  Então, pode-se dizer que os juízes do período liberal, defendendo a razão sobre a lei mantinham os ideais iluministas do primado da razão, que havia sustentado o direito do antigo regime. Porém, eram agora livres da lei e, ao mesmo tempo, livres do poder do soberano –figura incompatível com um esquema rígido de separação de poderes . Afinal, agora a soberania estava na lei, e não mais no rei! Automaticamente, o alvissareiro governo da lei estaria submetido ao governo dos juízes. Não somente ao governo dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, mas também aos demais juízes, já que o império da lei soçobrava ao voluntarismo dos juízes. Sobre o tema, ver STRECK. Lenio. RAATZ, Igor. MORBACH, Gilberto. Da genealogia dos mecanismos vinculantes brasileiros: dos assentos portugueses às ‘teses’ dos Tribunais Superiores. Revista da UFSM. v. 14. n. 1. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/37204.

[3] A crítica e a expressão são de HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 7. ano 3. p. 277-292. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2016, p. 284.

[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, ponto 81 e seguintes.

[5] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. v.2. Processo cautelar (tutelas de urgência) 4. ed., rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007-2008, pp. 70-71.

[6] SILVA, Ovídio A. Baptista da. O contraditório nas ações sumárias. Revista da AJURIS.  Ano XXV. Nº. 80. Dezembro de 2000. Porto Alegre: AJURIS, 2000, p. 214.

[8]MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. Volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 216.

[9] DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 11 ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016, p. 622.

[10]STRECK, Lenio Luiz. Os limites semânticos e sua importância na e para a democracia. Revista da AJURIS. v. 41, n. 135, setembro de 2014. Porto Alegre: AJURIS, 2014.

Autores

  • é pós-doutor, doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor, advogado e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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