Opinião

Devido processo negociado não se afasta do conceito de devido processo legal

Autor

  • Guilherme Puchalski Teixeira

    é sócio do Garrastazu Advogados doutor e mestre em Direito pela PUCRS e especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor convidado da Unisinos e da PUCRS.

17 de agosto de 2019, 6h54

1. Processo civil e autonomia das partes: do procedimento legal ao procedimento convencional
Não se pode acreditar que um novo código seja uma “solução para todos os males”, capaz de, por si só, alterar a realidade e a cultura processual. Entretanto, um código novo pode ser a melhor forma de começar a mudança de uma realidade. Um código novo simboliza ruptura, quiçá evolução. Evolução ou involução é uma resposta que somente o tempo dirá.

Dentre suas inovações, o CPC/2015 outorgou às partes generoso poder para celebrarem negócios jurídicos processuais. Por meio desses negócios, o Estado concedeu às partes a oportunidade de convencionarem, antes ou durante o processo, mudanças no procedimento ou sobre situações processuais (ônus, poderes, faculdades e deveres).

Nesse propósito, o artigo 190 do CPC estabeleceu os contornos essenciais dos negócios processuais, oferecendo campo fértil à participação das partes na construção do caso concreto.

Ciente das barreiras culturais e ideológicas que iria enfrentar, o legislador pátrio demarcou o espaço de autonomia concedido às partes com o emprego de uma genuína cláusula geral, a tornar maleável e, portanto, perene os valores e objetivos a que se propõe.

Em perspectiva comparada, o legislador brasileiro foi corajoso. Valendo-se do material sedimentado na doutrina estrangeira, alargou o espaço de abertura concedido às partes, especialmente em relação às legislações de países associados à civil law, tais como França, Itália, Espanha e Portugal.

Por longo período, liberdade e processo estiveram em lados opostos no plano cultural e normativo. Resta saber a que custo, por quanto tempo e em que medida, liberdade e processo irão se amoldar aos contornos dos negócios processuais.

Impõe-se não ignorar o fato de que, não apenas no Direito, sucede-se um acalorado debate em torno da concepções binárias público versus privado, publicismo versus privatismo. Pois este debate atingiu em cheio o processo, na medida em que o Estado reconheceu às partes espaço de liberdade para adequarem o processo aos seus interesses, poder antes reservado primordialmente ao legislador, a quem incumbia a missão — inalcançável — de criar quantos procedimentos especiais quantas fossem as particularidades de seus titulares ou do direito material posto em causa.

Daí falar-se em procedimento legal e procedimento convencional, o primeiro pensado abstratamente pelo legislador e o segundo adequado in concreto pelas partes, ambos adstritos às balizas do devido processo legal.

2. O panorama dos negócios processuais na experiência forense
Os acordos processuais constituem importante instrumento para a estruturação de um processo civil democrático, que prestigia a autonomia da vontade, a comunicação entre o juiz e as partes e proporciona condições de adequar o procedimento às características da demanda e aos interesses estratégicos das partes.

Nesse sentido, Loïc Cadiet refere que a utilização dos negócios jurídicos processuais está associada à decadência do centralismo estatal e do legiscentrismo[1]. Cadiet refere um aumento gradativo no número de contratantes em França interessados na adaptação do procedimento legal para os seus casos a fim de melhor atender os interesses e necessidades específicas da sua relação jurídica.

Dentre outras vantagens, Loïc percebe na contratualização do processo um mecanismo eficiente para uma maior aceitação social da atividade jurisdicional, ao promover uma Justiça mais democrática, sem perder a tutela e a chancela do Estado[2].

O renomado autor francês faz menção a diversas cláusulas, como a cláusula de renúncia prévia ao direito de apelação (ou do duplo grau de jurisdição), a modificação das regras de repartição dos custos do processo, a cláusula de modificação de competência, a cláusula que obrigada as partes a tentarem uma solução negocial antes do ajuizamento da demanda, dentre outras[3].

Já no cotidiano norte-americano é recente, porém crescente, a prática da modificação do procedimento por iniciativa das partes mediante acordo pré-processuais (ex ante estipulations). Como retratam Kevin Davis e Helen Hershkoff, a assunto passou a chamar a atenção da doutrina, pouco se conhecendo, ainda, a respeito da prática desses acordos e de seus impactos sobre o procedimento legal[4].

A importância que vem sendo atribuída aos negócios processuais — não apenas pelo legislador, mas pelos operadores do Direito em geral — caminha de mãos dadas com o reconhecimento da autonomia privada como norma fundamental do processo, eis que a autonomia privada decorre diretamente das garantias constitucionais da liberdade e da dignidade da pessoa humana.

A autodeterminação do indivíduo na conformação do procedimento ao caso concreto coloca-o frente a um papel até então reservado ao Estado, tornando-se mais factível pensar — e acreditar — em um ambiente processual mais democrático[5], marcado por estruturas e condutas cooperativas em contraditório.

Neste contexto, projeta-se, a médio prazo, uma possível alteração na cultura processual brasileira, no sentido de que partes, procuradores e juízes façam cada vez mais uso dos acordos processuais enquanto técnica processual voltada à solução de litígios.

Atualmente, porém, a realidade negocial, a experiência forense e a reduzida produção jurisprudencial evidenciam ainda ser tímida a prática de acordos pré-processuais no Brasil.

3. O devido processo negociado
O devido processo legal está usualmente associado a um cipoal de normas positivadas em nível constitucional e infraconstitucional. De outro modo, a partir da gradativa abertura do sistema processual à flexibilização do procedimento previsto em lei, podemos também falar de um devido processo negociado.

A doutrina refere, acima de tudo, a existência de um devido processo constitucional[6], a dar os contornos do conteúdo do chamado modelo constitucional de processo, formado, dentre outros, pelos princípios constitucionais do processo civil, pelos procedimentos jurisdicionais constitucionalizados, pelas normas de organização do Poder Judiciário e pelas normas de distribuição de competências, dentre outras.

É certo que a noção atual do devido processo legal compreende as normas constitucionais de processo civil, dela não podendo ser dissociada, como didaticamente elucida o artigo 1º do Código de Processo vigente. Daí porque a concepção do devido processo legal deve necessariamente abranger o respeito ao conteúdo mínimo das garantias constitucionais de acesso à Justiça, do contraditório efetivo, da igualdade processual, da imparcialidade e independência do magistrado, da fundamentação das decisões proferidas e da duração razoável do processo.

Assim, processo devido é aquele desenvolvido com respeito aos direitos fundamentais processuais previstos no ordenamento e na Constituição de modo geral. A palavra “law” integrante da expressão clássica norte-americana “due processo of law”, tal como a palavra “legal” do devido processo legal, deve ser compreendida como ordenamento jurídico, e não como lei em sentido estrito[7].

Da mesma forma, o que chamamos de devido processo negociado, fruto da celebração de negócios processuais entre os sujeitos processuais, não se afasta do conceito de devido processo legal, visto que a admissibilidade e os contornos dos negócios processuais estão previstos em diversos dispositivos ao longo do código, assim integrando o conceito de devido processo legal.

Ora, a possibilidade de flexibilização do procedimento por vontade das partes está prevista em lei e, logicamente, integra o conceito de devido processo legal. Deste modo, o devido processo convencional não está dissociado do devido processo legal, ao contrário, integra-o.

A bem da verdade, para aqueles que guardam reservas ideológicas, históricas ou culturais em relação aos negócios processuais, cabe referir que negar este espaço de convenção às partes ou impor-lhes limites para além da moldura prevista pelo ordenamento importa desobediência ao devido processo legal.

Esta liberdade processual, a final de contas, também encontra resguardo na Constituição. Ali está, como visto, o fundamento e a legitimidade dos negócios processuais.

É certo, de outro lado, que não se poderá admitir um processo civil negociado com desprezo às normas fundamentais que compõem o conceito do devido processo legal. Exemplificativamente, negócios que afastem a publicidade das decisões, a imparcialidade do julgador, a fundamentação suficiente das decisões, a duração razoável do processo, dentre outros, indicam ofensa ao núcleo essencial[8] do devido processo legal e terão sua validade controlada pelo juiz do caso concreto.

Neste contexto, é certo que nenhum direito ou garantia é ilimitado, aspecto que demanda maior aprofundamento, abordado em nossa tese de doutorado recentemente defendida na PUCRS, cuja versão atualmente encontra-se no prelo para publicação.

4. A adequação do processo por iniciativa das partes à luz do devido processo negociado
O Código de Processo Civil de 1973, sob o aspecto procedimental, dividia-se em quatro partes: a primeira cuidava do processo de conhecimento; a segunda, do processo de execução; a terceira, do processo cautelar; e a quarta, dos procedimentos especiais.

Sob o ponto de vista formal, o processo de conhecimento ordinário apresenta-se rígido e previsível, refletindo um paradigma racionalista na expressão utilizada por Ovídio Baptista, fundado na busca de segurança jurídica através de metodologia própria às ciências naturais ou matemáticas[9].

Revela-se aí o chamado mito da ordinariedade a que se refere Ovídio: a concepção do processo como espaço neutro, quase indiferente às particularidades do caso.

O mito da ordinariedade foi caindo por terra com o passar do tempo. Percebeu-se a necessidade de maior diversificação dos procedimentos e adaptabilidade da tutela para atender as peculiaridades do direito material subjacente, a exemplo da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor[10].

A percepção é que não se mostra suficiente a pré-compreensão de ritos variados pelo legislador diante das características “abstratas” de determinados direitos. É preciso possibilitar que o procedimento amolde-se à situação concreta, conferindo-lhe maior elasticidade pela atividade dos sujeitos processuais.

Esta capacidade de “customizar” o processo deve ocorrer através de técnicas processuais de gestão e organização reconhecidas ao juiz e de um espaço maior de autonomia outorgado às partes.

O modelo de flexibilidade procedimental adotado pelo CPC/2015 possui largo espectro. Observe-se, por exemplo, que o artigo 139, VI do Código confere grande amplitude ao julgador para “alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito”. No inciso IV do mesmo artigo outorga-se poderes para que o juiz determine “todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento da ordem judicial”.

Cuida-se, em qualquer dos casos, de outorgar-se liberdade de gestão do processo ao juiz — que deverá justificar sua decisão, é claro — para que escolha o melhor caminho ou a melhor medida sem estar “preso” a esquemas preestabelecidos pelo legislador.

De seu lado, às partes também é outorgado o direito de (i) influenciar o juiz neste percurso e (ii) de também alterar o procedimento pela via dos negócios processuais (devido processo negociado).

Ademais, o modelo de adequação do processo adotado pelo CPC/2015 está em plena consonância com o modelo de sociedade atual, na qual as espécies de conflitos diversificam-se em uma velocidade não acompanhada por alterações legislativas, muito menos pela pré-concepção de ritos especiais.

Um processo civil contemporâneo, adequado ao seu tempo, exige um procedimento previsível, a conferir legalidade e segurança jurídica, porém flexível, com a previsão de mecanismos e instrumentos de adequação do procedimento ao caso concreto.

5. Conclusão
Os acordos processuais constituem importante instrumento para a estruturação de um processo civil democrático, que prestigia a autonomia da vontade, a comunicação entre o juiz e as partes e proporciona condições de adequar o procedimento.

O devido processo negociado, fruto da celebração de negócios processuais entre os sujeitos processuais, não se afasta do conceito de devido processo legal, visto que a admissibilidade e os contornos dos negócios processuais estão previstos em diversos dispositivos ao longo do código, assim integrando o conceito de devido processo legal.

O modelo de adequação do processo adotado pelo CPC/2015 está em plena consonância com o modelo de sociedade atual, na qual os conflitos diversificam-se em uma velocidade não acompanhada por alterações legislativas, muito menos pela pré-concepção de ritos especiais.

Migra-se de uma adequação abstrata por imposição da lei para uma adequação concreta e democrática, com a participação das partes e do juiz.


[1] CADIET, Loïc. Les conventions relatives au procès en droit français. Revista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Numero speciale: Accordi di Parti e Processo. Milano: Giuffrè, 2008, p. 8-9.
[2] CADIET, Loïc. Les conventions relatives au procès en droit français sur la contractualisation du règlement des litiges. In Revista de Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, volume 33, n. 160, 2008, p. 65.
[3] CADIET, Loïc. JEULAND, Emmanuel. Droit judiciaire privé. 8ª ed. Paris: LexisNexis, 2013, p. 387.
[4] DAVIS, Kevin E. HERSHKOFF, Helen. Contracting for procedure. William and Mary Law Review. Vol. 53. Williamsburg, 2011-2012, p. 507-564.
[5] THEODORO JR., Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 300.

[6] Expressão que se encontra, por exemplo, na obra dos autores Sérgio Gilberto Porto, Cidadania Processual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016, p. 17 e ss, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª ed., 2012, p. 127.
[7] A esse respeito, DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 20ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 63).
[8] Consistente em um âmbito de proteção (núcleo) que não pode ser violado, mesmo que para fomentar um outro princípio. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed, 2006, p. 118).
[9] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 36.
[10] Leis 7.347/85 e 8.078/1990, respectivamente.

Autores

  • é sócio do Garrastazu Advogados, doutor e mestre em Direito pela PUCRS e especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor convidado da Unisinos e da PUCRS.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!