Opinião

Discussões interpretativas sobre cabimento do agravo de instrumento

Autor

  • Ronaldo Kochem

    é sócio do Souto Correa Cesa Lummertz & Amaral Advogados mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Global Rule of Law and Constitutional Democracy pela Universidade de Gênova (Itália).

16 de agosto de 2019, 6h55

Introdução
Um novo problema relativo ao artigo 1.015 do CPC tem surgido nos tribunais de segundo grau. Hoje, após alguns meses do julgamento do Tema 988 pelo STJ, a discussão concentra-se na interpretação dos acórdãos do STJ, especialmente no que diz respeito à modulação de efeitos neles enunciada. É que parcela dos julgadores dos tribunais de segundo grau tem inadvertidamente inadmitido os agravos de instrumento interpostos antes da publicação do precedente em que se discute o cabimento do recurso. O fundamento para essa inadmissão tem sido a regra de modulação de efeitos estabelecida.

Ao fazer isso, os tribunais têm adotado uma interpretação excessivamente ampla do precedente, deixando de diferenciar aquilo que foi objeto da decisão do STJ daquilo que não foi. Essa interpretação excessivamente ampla está amparada em uma confusão — que este ensaio pretende esclarecer — entre a atividade de interpretação dos incisos do artigo 1.015 do CPC e a atividade de construção jurídica de hipóteses recursais não previstas legalmente.

O que se demonstra neste ensaio é que o STJ decidiu, no precedente do Tema 988, exclusivamente com relação à construção jurídica, pelo que não se poderá aplicar o entendimento lá firmado a recursos envolvendo questões de interpretação jurídica. Tampouco é aplicável a esses casos a modulação de efeitos editada pelo STJ, pelo que os tribunais de segunda instância não poderão se furtar de decidir, mesmo para recursos interpostos contra decisões prolatadas antes do julgamento do STJ, sobre questões controversas acerca do cabimento de agravo de instrumento.

O que o STJ decidiu no Tema 988?
Nos recursos especiais 1.704.520/MT e 1.696.396/MT (Tema 988), o STJ decidiu pelo cabimento de agravos de instrumento contra decisões de primeira instância que versam sobre competência e o descabimento com relação ao valor da causa. Como se lê dos acórdãos que firmam o precedente, o tribunal propôs-se a decidir, a partir do artigo 1.015 do CPC, pela recorribilidade imediata, ou não, das decisões interlocutórias “não previstas nos incisos do referido dispositivo legal”. Decidiu-se pela recorribilidade imediata de decisões fora das hipóteses dos incisos do artigo 1.015 do CPC, quando presentes elementos que os acórdãos especificam.

O critério central definido pelo STJ é a “urgência”, que vai entendida por dois subcritérios: (1) risco de inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação; e/ou (2) risco de retrocesso, de maior ou menor escala.

Enquanto a eleição do subcritério do risco de inutilidade é clara já em uma primeira leitura, vê-se que o STJ também decidiu que a “urgência” está presente em outros casos. Decidiu-se, assim, que o conceito da “urgência” que foi utilizado não abrange apenas os casos em que o provimento da apelação (posterior) seria inútil — como no caso em que a decisão monocrática indefere o pedido de decretação de segredo de justiça, hipótese na qual a publicidade do processo até o provimento da apelação “impedirá o reestabelecimento do status quo ante, tratando-se de medida absolutamente irreversível do ponto de vista fático”.

Além da inutilidade, o STJ indica que o conceito de “urgência” abrange casos em que o reexame da decisão de primeira instância apenas em apelação implicaria retrocesso significativo. Assim, consta dos acórdãos que “questões que, se porventura modificadas, impliquem regresso para o refazimento de uma parcela significativa de atos processuais deverão ser igualmente examináveis desde logo, porque, nessa perspectiva, o reexame apenas futuro, somente por ocasião do julgamento do recurso de apelação ou até mesmo do recurso especial, seria infrutífero”.

Contudo, mesmo o “retrocesso significativo” vai mitigado, já que, segundo os acórdãos, a noção não abrange apenas casos em que, uma vez provido o recurso, será consequência necessária, obrigatória, o refazimento de todos os atos processuais já realizados. No caso da incompetência, por exemplo, o STJ afirmou que “não se pode negar que haverá um significativo desperdício de tempo para a solução da controvérsia, acarretando prejuízos aos jurisdicionados e ao próprio sistema de justiça civil”, porque atos processuais, “ainda que parcialmente, em maior ou menor escala”, poderão vir a ser refeitos por determinação do juízo competente.

O Tema 988 como precedente aditivo
Como tivemos a oportunidade de registrar em outra oportunidade[1], há que se distinguir os significados atribuídos, muitas vezes de modo irrefletido, ao termo “interpretação”. No campo da atividade jurisdicional prática, há duas atividades básicas a que “interpretação” pode se referir: de um lado, a interpretação decisória (standard), entendida como a escolha de uma das normas que, segundo as diretivas interpretativas vigentes em determinada cultura jurídica e em determinado momento, são admissíveis serem reconstruídas como significados de dispositivos normativos e, de outro lado, a construção jurídica, que corresponde ao estabelecimento de normas implícitas a partir do conjunto de normas do sistema jurídico. Não por significação, mas por implicação. Para designar a mais relevante das atividades que compõem a construção jurídica, costuma-se utilizar o termo integração jurídica.

A distinção entre construção jurídica e interpretação é relevante para classificar o tipo de decisão que o precedente constitui e o seu conteúdo. Assim, na hipótese de o tribunal do precedente argumentar pela interpretação de um dispositivo, o precedente firmado poderá ser classificado como interpretativo[2]. Em o tribunal argumentando pela construção jurídica, o precedente poderá ser classificado de modo diverso.

Entendemos que, tal como se classifica a decisão que, no controle de constitucionalidade, adiciona uma nova norma implícita no sistema jurídico como aditiva e aquela que substitui uma norma (explícita ou implícita) do sistema jurídico por uma nova norma implícita como substitutiva[3], também os precedentes podem ser assim classificados. Assim, aquelas atividades de construção jurídica que implicam manipulação de normas de um sistema jurídico — e não de escolha de significados para reconstrução dessas normas —, com uma atividade legislativa intersticial de maior intensidade, podem ensejar precedentes aditivos ou substitutivos. Aditivos denominam-se os precedentes que incluem uma norma não explícita no sistema jurídico; substitutivos denominam-se os precedentes que excluem uma norma do sistema jurídico e incluem uma nova norma implícita.

O precedente do Tema 988 do STJ é aditivo.

Não se atribuiu um ou outro significado aos incisos do artigo 1.015 do Código de Processo Civil. Adicionou-se ao conjunto de normas explícitas reconstruídas imediatamente a partir dos dispositivos do código uma norma implícita, a saber: o cabimento de agravo de instrumento contra decisão interlocutória, quando presente a “urgência”, entendida como tal o risco (i) da inutilidade do provimento posterior do recurso contra a decisão, ou (ii) de retrocesso processual, em maior ou menor escala.

A regra de transição do STJ
A inovação na ordem jurídica pelas decisões judiciais é mais evidente nos precedentes aditivos ou substitutivos, razão pela qual se exige regras de transição aptas a tutelarem a confiança dos jurisdicionados na passagem da ordem jurídica “original” para a ordem jurídica “inovada”.

No julgamento do Tema 988, embora o STJ tenha afirmado a ausência de risco de surpresa ao jurisdicionado, decidiu-se pela modulação de efeitos, para que a tese firmada valesse apenas para recursos interpostos contra decisões interlocutórias proferidas após a publicação dos acórdãos do precedente.

A limitação da modulação de efeitos ao conteúdo do precedente
Como se viu, o STJ decidiu sobre questão jurídica do cabimento de agravo de instrumento por construção jurídica, concluindo positivamente. Sob o aspecto material da tese firmada, portanto, é cabível agravo de instrumento contra decisões interlocutórias não reconstruídas a partir dos incisos do artigo 1.015 do CPC, quando presente o requisito que o precedente definiu como “urgência”. Sob o aspecto temporal, o STJ decidiu que a tese firmada no Tema 988 é aplicável tão somente para recursos interpostos após a publicação dos acórdãos paradigmas.

Portanto, seguindo o STJ, para o âmbito temporal prévio ao precedente, não valerá a tese do cabimento do agravo de instrumento contra decisões interlocutórias cujas hipóteses não sejam reconstruídas a partir dos incisos do artigo 1.015 do CPC. Não caberá, é dizer, construção jurídica de hipóteses de recorribilidade imediata para casos de decisões interlocutórias proferidas antes da publicação dos acórdãos da Tese 988.

Contudo, os agravos de instrumento que debatem a interpretação dos incisos do artigo 1.015 do CPC, anteriores ou posteriores à publicação dos acórdãos paradigmas, não são abrangidos pela tese do Tema 988, pelo fato de não debaterem a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias “não previstas nos incisos do referido dispositivo legal”. Nos recursos em que se debate o enquadramento, mais ou menos claro, do caso concreto em um dos incisos do artigo 1.015 do CPC, a questão jurídica a ser enfrentada é outra: a interpretação dos dispositivos e, assim, é distinta daquela examinada pelo STJ no Tema 988.

Com isso, vê-se que a aplicação da regra de modulação dos efeitos do Tema 988 de forma indiscriminada, para casos em que não se debate a recorribilidade fora das hipóteses legais, constitui indevida aplicação da tese firmada.

Considerações finais
A recorribilidade imediata das decisões interlocutórias é uma questão controversa por diferentes razões, algumas de cunho interpretativo, outras de cunho construtivo ou integrativo. Parcela dessa questão controversa teve rápida jornada dos tribunais de segunda instância até o STJ, para julgamento formalmente vinculante. Agora, outra parte da questão parece ensaiar uma nova jornada. Para evitar a indevida aplicação da tese do precedente e que a questão tenha de voltar outra vez ao STJ, entendemos que as partes e os tribunais de segunda instância devem reconhecer expressamente a distinção entre interpretaçãoconstrução jurídica, o que é essencial para delinear a abrangência do precedente do Tema 988.


[1] https://www.conjur.com.br/2018-mar-19/ronaldo-kochem-artigo-1015-cpc-stj-construcao-juridica.
[2] CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law, 4ª ed.. Oxford: Claredon Press, 1991, p. 178.
[3] Por todos, GUASTINI, Riccardo. Das Fontes às Normas (1990). São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 299-304.

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    é sócio do Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestrando em Global Rule of Law and Constitutional Democracy pelas universidade de Gênova (Itália) e de Girona (Espanha).

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