Opinião

Desconsideração da personalidade jurídica nas execuções fiscais após a MP 881

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1 de agosto de 2019, 6h15

Os temas relativos à aplicabilidade ou não do incidente de desconsideração de personalidade jurídica (IDPJ) e do artigo 50 do Código Civil às execuções fiscais são polêmicos e vêm sendo debatidos pela doutrina e jurisprudência desde antes da vigência do CPC/2015. Essa discussão ganhou novas nuances com a MP 881/2019, apelidada de “MP da liberdade econômica”.

Em linhas gerais, por meio do IDPJ (artigos 133 a 137, CPC/2015), assegura-se a um terceiro o direito de defesa antes de seu ingresso no processo na qualidade de responsável pela obrigação discutida em juízo.

Para a Fazenda Nacional, o IDPJ é visto como uma barreira aos seus rotineiros pedidos de redirecionamento de execuções, amparados em simples “início de provas” e formulados, no mais das vezes, em face de empresas supostamente integrantes de grupos econômicos “de fato”.

A fundamentação desses requerimentos, em geral abstrata e genérica, lastreia-se indistintamente nos artigos 124, I, 134 e 135, do CTN e artigo 50, do CC, sem indicação concreta de nenhuma situação neles prevista que autorize sua pretensão. É nesse cenário que muitas vezes esses pedidos são deferidos, com a convolação do terceiro em executado, imediatamente instado a pagar o débito ou garantir o juízo no exíguo prazo de cinco dias, para só então poder se defender de imputações que, a rigor, sequer conhecia. Por “atrapalhar” esse contexto, permitindo o contraditório e a suspensão da execução sem prévia garantia do juízo, é que o “incidente” é amplamente questionado pela Fazenda Nacional.

A 1ª Turma do STJ, analisando pioneiramente o tema no âmbito daquela corte, proferiu julgamento unânime no REsp 1.775.269/PR (21/2/2019), no qual firmou as seguintes razões de decidir:

(i) o artigo 124, I, do CTN não autoriza pretensão de redirecionamento, porque essa hipótese de solidariedade vincula-se ao “interesse comum na situação que constitua o fato gerador”, verificando-se, portanto, anteriormente à constituição do crédito tributário, que “não pode ser refeito no decorrer do processo executivo (v.g.: Súmula 392 do STJ…)”;

(ii) é possível o redirecionamento da execução, sem prévio IDPJ, em face daqueles que constem na CDA ou, mesmo dela não constando, caso “o fisco demonstre a responsabilidade, na qualidade de terceiro, em consonância com os artigos 134 e 135 do CTN”; e

(iii) não sendo o caso da letra “b”, o redirecionamento “depende da comprovação do abuso de personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, tal como consta do art. 50 do Código Civil, daí porque, nesse caso, é necessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica devedora”, vez que “o só fato de integrar grupo econômico não torna uma pessoa jurídica responsável pelos tributos inadimplidos pelas outras”.

Da conclusão da 1ª Turma do STJ quanto ao artigo 124, I, do CTN, aliada ao fato de que os artigos 134 e 135 são dirigidos, em regra, a pessoas naturais, tem-se que essa decisão — objeto de embargos de divergência ainda pendentes de julgamento —, na prática, condicionou o redirecionamento contra pessoas jurídicas do mesmo grupo econômico à comprovação efetiva, mediante IDPJ, de uma das hipóteses previstas no artigo 50, do Código Civil.

Ocorre que desde 30 de abril as exigências previstas no artigo 50 do CC foram “incrementadas” pela “MP da liberdade econômica”, em especial no que atine à comprovação dos requisitos autorizadores da desconsideração.

Além da necessidade de comprovação do “abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”, à Fazenda também caberá, em especial:

  • comprovar quem são os efetivos “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, vez que, em razão de necessário nexo causal, antes ignorado, somente estes responderão pelo crédito e na extensão do proveito obtido (modificação do caput). Não mais caberão, porque insuficientes, imputações genéricas em face de todas as pessoas jurídicas que, por exemplo, tenham sócios em comum com a executada, em especial porque “a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica” (parágrafo 4º);
  • na hipótese de alegação de confusão patrimonial, comprovar a “ausência de separação de fato entre os patrimônios” do executado e do terceiro (parágrafo 2º). Não bastará afirmar que duas empresas detêm patrimônio comum, porque localizadas num mesmo endereço ou porque dividem a mesma secretária ou linha telefônica. Nessas situações, deverá ir além, para comprovar, por exemplo, que somente uma das pessoas jurídicas paga integral e costumeiramente o salário da secretária compartilhada ou a totalidade do aluguel do prédio, sem contrapartida; e
  • no caso de desvio de finalidade, a Fazenda terá que demonstrar um elemento subjetivo (dolo específico) antes não exigido, qual seja, a “utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza” (parágrafo 1º).

Mais recentemente, a 2ª Turma do STJ, no REsp 1.786.311/PR, proferiu julgamento concluindo pela desnecessidade de IDPJ em dado caso concreto, no qual, diversamente daquele analisado pela 1ª Turma, “a confusão patrimonial entre as pessoas jurídicas integrantes do grupo econômico já estava caracterizada”,[1] evidenciando não ser mais necessário o incidente.

Como se vê, o cenário mudou. Por força de modificação legislativa e a partir das premissas fixadas pela 1ª Turma do STJ, tem-se que a apuração da responsabilidade de terceiros (não sucessores), em especial quanto à existência de grupo econômico, deverá ocorrer em IDPJ, instaurado a partir por pedido devidamente fundamentado e particularizado, amparado em prova efetiva, sujeita a contraditório prévio.

Na mesma medida, aumenta para o juiz o dever de instrução no incidente e de fundamentação de suas decisões, que também deverão levar em conta esses novos parâmetros, sem prejuízo, é certo, da possibilidade de redistribuição do ônus da prova, desde que atendidos os requisitos do artigo 373, parágrafo 1º, CPC/2015.


[1] Trecho da decisão da ministra Regina Helena Costa que indeferiu liminarmente os embargos de divergência interpostos pelo particular, em razão da ausência de similitude fática entre o acórdão recorrido (2ª Turma) e o paradigma (1ª Turma).

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