Opinião

Respeito ao sistema acusatório não puro legitima as decisões e a democracia

Autor

1 de abril de 2019, 6h26

Na última década, no Brasil, sucessivas operações deflagradas para reprimir práticas de atos lesivos ao patrimônio público, além de terem revelado uma grave crise ética, política e moral, induziram a sociedade a refletir sobre a importância da regularidade de atuação das instituições públicas na vida do cidadão, gerando um sentimento de descrédito que desencadeou em uma crise de instabilidade institucional.

Recentemente, agravando esse panorama, o Supremo Tribunal Federal, ao instaurar diretamente o Inquérito n° 4781, foi rotulado de órgão inquisitorial, por ter suscitado confusão entre a competência para autorizar investigação – que decorre da ritualística processual de apuração de crimes praticados por agentes detentores de foro por prerrogativa de função e que não confere ao magistrado o poder próprio de investigação – com a própria função investigativa, cujo desempenho não pode estar concentrado no mesmo órgão que julga, sob pena de ofensa ao sistema acusatório não puro, adotado pela CRFB/88, embora o julgador não seja um ator inerte na fase persecutória, eis que a ele é conferido o poder de conceder habeas corpus de ofício e decretar prisão preventiva.

No sistema inquisitorial, corolário do princípio inquisitivo, há concentração das funções de investigar, acusar, defender e julgar na figura de uma mesma pessoa. O pano de fundo de tal sistema é a necessidade de cumprir os interesses da coletividade, ainda que para tanto tenham que ser mitigados direitos e garantias individuais, como se o acusado fosse mero objeto do processo, e não sujeito de direitos.

A propósito, esse assunto teve espaço próprio na discussão da constitucionalidade da PEC 37, quando se debateu acerca de o Ministério Público empreender investigações no âmbito criminal, ponderando argumentos sobre competência implícita de um órgão quando a Constituição outorgou – de forma explícita – a outro; desequilíbrio na paridade de armas; se a CRFB/88 dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências e instaurar inquéritos policiais (art. 129, VIII); e, ainda, se a atividade investigatória é exclusiva da Polícia Judiciária (CF, art. 144, §1º, IV, c/c art. 144, §4º);

É verdade que, mesmo após a Lei n. 11.690/2008, o Estatuto Processual Penal continuou a sofrer influência do sistema inquisitorial, o que fez surgir discussões acerca da constitucionalidade do artigo 156, inciso I, não obstante, frise-se, tenha sido o sistema acusatório não ortodoxo acolhido pela Bíblia Política brasileira de 1988, sendo a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova exatamente o que diferencia os sistemas entre si.

Assim, não se faz necessário alargado esforço de lógica para se chegar à conclusão de que o sistema inquisitório puro não guarda compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio vigente.

Ao alçar o princípio do devido processo legal ao status de direito fundamental, alocando-o no artigo 5º, inciso LIV da Lei Maior da República, almejou o Constituinte que o exercício do poder estatal se desse por meio de um processo justo e adequado, não limitado ao aspecto processual, procedimental.

Intercambiando essa discussão com outro debate que figura na ordem do dia, cabe reflexão se apenas os julgamentos pelo Poder Judiciário estão adstritos à obediência ao sistema acusatório não puro, ou se também devem se submeter à irrestrita observância desse sistema todos os julgamentos que podem refletir na esfera de direitos subjetivos de terceiros, a exemplo dos julgamentos dos Tribunais de Contas.

É que o fato de inexistir um código de processo de controle externo no Brasil tem levado os Tribunais de Contas a funcionarem de forma assimétrica, alguns dos quais em inobservância às normas e garantias processuais das partes, na contramão da lógica do sistema acusatório não puro e do que preconiza o art. 96, inciso I, “a”, da CRFB/88, aplicável aos Tribunais de Contas por força do art. 73.

Se a boa gestão pública e a probidade na gestão dos recursos públicos são consideradas direitos fundamentais, por análogas razões, a responsabilização dos agentes que gerem recursos públicos também deve se pautar nos estritos moldes do devido processo legal, a ser plenamente observado pelos Tribunais de Contas, que, embora não integrem o Poder Judiciário, têm competência para fiscalizar e julgar contas públicas, impor sanções e instrumentalizar ações de improbidade ou ações criminais intentadas por outros órgãos. Somente assim restará viabilizada a proteção aos direitos e garantias fundamentais, na medida em que essas sanções podem atingir direitos da personalidade e afetar, por exemplo, a liberdade do exercício profissional, estatuído no artigo 5º da CRFB/88, núcleo de proteção da dignidade da pessoa humana.

Ressalte-se que a competência dos Tribunais de Contas brasileiros para responsabilizar diretamente, sem a necessidade de participação de outro órgão, emerge da sua estrutura constitucional e funcional interna, integrada pelas funções de auditoria, ministerial e judicante, que, mormente por estarem concentradas em um só órgão, precisam funcionar estritamente dentro dos parâmetros de regularidade, pilar de sustentação de validade do exercício dos poderes jurisdicional e sancionador desses órgãos de privilegiada estatura constitucional.

Em outras palavras, diferentemente do Poder Judiciário, cuja função típica e exclusiva é a de julgar – o que explica a estruturação orgânica em formato de secretarias auxiliares – os Tribunais de Contas concentram as funções de investigar, acusar e julgar, essenciais ao processo de controle externo, razão pela qual o Constituinte foi taxativo quanto à necessidade de quadro próprio de pessoal para o desempenho das competências finalísticas de controle externo estatuídas no artigo 71 da CRFB/88, num formato que visa garantir a observância do sistema acusatório não puro, pautado na independência plena das três funções processuais.

Dessa forma, a legitimação da função de controle não depende tão somente da colegialidade das decisões em si, mas sim da observância dos imperativos legais e constitucionais que parametrizam seu desempenho durante toda a marcha processual, dentre os quais o respeito ao devido processo legal, que têm como consectário lógico a imparcialidade de atuação dos atores processuais que integram as funções de investigar, acusar e julgar.

Foi para viabilizar essa imparcialidade na atuação que o Constituinte consignou, no artigo 73, a necessidade de existência de quadro próprio de pessoal, e preestabeleceu que as Cortes de Contas exercem, no que couber, as atribuições previstas no artigo 96, que versa exatamente sobre a organização e o funcionamento dos Tribunais Judiciários, impondo observância às normas de processo e das garantias processuais das partes.

De fato, a compreensão do sentido e alcance do artigo 73 depende de uma interpretação sistêmica, a começar pelo uso do termo “integrado”, cujo sentido é de combinação de partes ou etapas que funcionam de forma completa, do que se extrai que os nove ministros e o quadro próprio de pessoal integram o Tribunal de Contas da União, composição conjunta, embora independente no plano processual, de modo a permitir a regularidade no desempenho da função de controle externo.

Essa imposição de existência de quadro próprio de pessoal, expressão utilizada pelo Texto Constitucional exclusivamente para os Tribunais de Contas, revela que o Constituinte quis garantir aparato orgânico-funcional que não sofresse interferência, interna ou externa, evitando que agentes sem vínculo institucional próprio e sem competência legal viessem a realizar as atividades exclusivas do Estado de inspeções e auditorias, competências conferidas pela CRFB/88 em juízo de privatividade aos Tribunais de Contas.

Não fosse essa a exegese consentânea com a lógica processual, teria o texto do artigo 73 adotado o mesmo termo usado para os Tribunais do Judiciário, limitando-se a afirmar que o Tribunal de Contas da União seria “composto” por nove Ministros, teria sede no Distrito Federal, jurisdição em todo o território nacional, e exerceria, no que coubesse, as atribuições previstas no art. 96, que já dispõe sobre a organização e funcionamento do Poder Judiciário. Não teria, portanto, optado pelo termo “integrado” e sido silente quanto ao uso da expressão “quadro próprio de pessoal”, seguindo o princípio de hermenêutica jurídica, segundo o qual o texto legal não traz palavras inúteis.

Outrossim, para além da necessidade de separação das funções de investigar, acusar e julgar, a imparcialidade do julgador também é definida a partir da iniciativa e gestão da prova, à semelhança do processo penal, razão por que a gestão probatória não pode ficar nas mãos do julgador, sob pena de inequívoco comprometimento da sua imparcialidade.

Diante disso, a participação dos julgadores de contas na seleção das fiscalizações – inspeções e auditorias –, na elaboração dos trabalhos de conteúdo probatório e na gestão da prova colocam em risco a imparcialidade que deve pautar toda a instrução probatória, podendo constituir ofensa ao devido processo legal e desrespeito ao sistema acusatório não puro, o que, assim como no processo judicial, não lhe coloca na condição de um ator processual inerte.

Esse é o entendimento de Aury Lopes Júnior[1], que, ao considerar a posição do juiz, no âmbito do processo penal, o ponto nevrálgico, manifesta:

Ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz-espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto; o rito inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante do interesse punitivo e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação.

Não se pode olvidar, que, no âmbito do processo de controle externo, os processos de fiscalização – denúncias, representações e auditorias especiais – são deflagrados a partir de provocação, ao contrário das auditorias ordinárias, cujo marco processual independe de provocação, já que os Tribunais de Contas agem de ofício, diferentemente do Poder Judiciário, porém, independentemente dessa iniciativa processual, é a possibilidade do desencadeamento de uma sanção que impõe a observância das garantias decorrentes do Direito Processual Punitivo, dentre as quais a distribuição do ônus da prova.

É que, além da possibilidade de projeção dos efeitos das decisões sancionadoras na esfera de direitos subjetivos de terceiros, incluir o processo controlador externo como ramo do direito processual punitivo também decorre dos atributos dos atos praticados por gestores públicos, no âmbito da função administrativa/executiva, como a presunção de legitimidade dos atos administrativos, e presunção do estado jurídico de inocência.

Fábio Medina Osório[2] afirma que “o princípio da culpabilidade, que constitui um dos pilares do devido processo legal punitivo, merece ser observado desde os primórdios da investigação, como condição de eficácia processual”. O autor pontua que a Constituição Federal agasalha direitos humanos e os transforma em direitos fundamentais, materializando-os em princípios como devido processo legal, culpabilidade e individualização, outorgando garantias constitucionais aos acusados em geral, em processos submetidos, inclusive, às garantias do Direito Administrativo Sancionador, incluindo a imparcialidade, que deve ser observada ao longo de toda a instrução, e não apenas na fase de julgamento.

Vê-se, portanto, que a necessidade de distanciamento e de ausência de interferência entre as funções deve-se à estrutura constitucional e de funcionamento dos Tribunais de Contas, que concentram, num só órgão, as funções de investigação, apuração, julgamento e revisão do julgado, diferente do sistema que rege o funcionamento do processo judicial, a exemplo do processo penal – que muito se assemelha ao processo de controle externo, embora com ele não se confunda – cujas funções de investigar, acusar e julgar são desempenhadas por órgãos e poderes distintos, Polícia judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário, numa configuração bem definida, que viabiliza independência entre as funções processuais, com vistas a garantir a imparcialidade de atuação dos agentes públicos que intermedeiam as funções dos órgãos e poderes aos quais se encontram vinculados, seguindo o sistema acusatório não puro, adotado pela CRFB/88.

Assim, para o alcance da segurança jurídica e do devido processo legal é imprescindível a observância do disposto no caput do artigo 71 da CRFB/88, que, ao dispor que ao “Tribunal de Contas compete”, quis que a colegialidade decisória se desse por meio de um processo de controle externo, ainda que no bojo de “ajustamentos de gestão”, garantindo a devida motivação e não deixando margem para dúvidas sobre a imparcialidade dos agentes que agem em nome dos órgãos de controle, em todas as fases processuais, nos exatos moldes disciplinados no artigo 1º, §3º, inciso I da Lei Orgânica do TCU, tudo com vistas a minimizar a probabilidade de ocorrências de prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos atores processuais, o que geraria o direito à compensação a que alude o artigo 27 da LINDB, vindo a ensejar a responsabilidade objetiva do estado e, consequentemente, a subjetiva dos agentes públicos que derem causa ao dano, por dolo ou culpa, com base no artigo 37, §6º da CF c/c 28 da LINDB.


[1] LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 184.

[2] OSÓRIO, Fábio Medina. O Princípio da Culpabilidade e a Improbidade Administrativa na Lei 8.429/92. In: OLIVEIRA; Alexandre Albagli; FARIAS, Cristiano Chaves de; GHIGNONE; Luciano Taques (org.). Estudos sobre Improbidade Administrativa. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 160.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!