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"Mudanças na legislação não conseguem acompanhar tecnologia, e nem devem"

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1 de abril de 2019, 19h01

A cada novo nicho explorado por novas práticas de mercado, surgem controvérsias causadas pela tecnologia e pelas mudanças de hábito que ela causa. O principal desafio das legislações é se adaptar a essas novas práticas. E, no Brasil, a lei vem se adaptando. Em março deste ano, foi promulgada a Lei Federal de 13640/2018, que reconhece expressamente a legalidade do transporte remunerado privado de passageiros.

Este é um dos pontos abordados pela advogada Fernanda Kayser, do Silveiro Advogados, em entrevista à ConJur.  Fernanda ressalta que, além de pacificar algumas polêmicas sobre a legitimidade do serviço, o texto impôs algumas condições, como a necessidade do seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP).

Antes da lei federal, algumas iniciativas municipais já apontavam a necessidade de uma maior regulamentação dos serviços, como o Decreto 56.981/2016, na cidade de São Paulo, que obrigou aplicativos a fornecerem dados à prefeitura.

A advogada falou sobre os desafios da lei brasileira diante da realidade imposta pela economia compartilhada. 

Leia a entrevista abaixo:

ConJur — Quais os pontos mais urgentes que a legislação brasileira tem que mudar para se adequar à realidade imposta pelas novas tecnologias e aplicativos?
Fernanda Kayser — 
As tecnologias avançam em uma rapidez em que a legislação não consegue, e nem deve avançar. Há um tempo de maturação necessário para entender as mudanças da sociedade, discutir se há necessidade de mudar ou criar novas legislações, e qual a melhor forma de adequar os novos comportamentos. Já o estudo e o debate devem estar constantemente acontecendo. Hoje, ainda faltam entendimentos consolidados a respeito de todos os impactos que a economia compartilhada vem causando.

Acredita-se que, de início, é importante entender a nova alocação de responsabilidades que este fenômeno traz:  até então, na lógica comum, sempre nos deparamos com uma relação binária – empresa com empresa, empresa com consumidor, consumidor com consumidor -, já na economia compartilhada, há três agentes envolvidos: duas pessoas fazendo a transação e a plataforma intermediária (que propicia tal conexão). Há plataformas mais ativas, outras menos ativas – mas o fato é que há de se pensar em uma nova lógica de realocação de responsabilidade adequada com a situação que se apresenta.

Em certo grau, este foi um ponto que se discutiu no Marco Civil da Internet com a responsabilidade dos provedores de conexão e aplicação por conteúdo publicado por terceiros. Atualmente, com diferença de agentes, estamos nos deparando novamente com o papel destes intermediários em relação a outras esferas de responsabilidades.

ConJur — Em quais pontos nós avançamos nesse tema nos últimos anos?
Fernanda Kayser — A legislação brasileira vem se adaptando. Em relação aos aplicativos de transporte remunerado privado de passageiros, em março do ano passado, foi promulgada a Lei Federal 13640/2018, que reconhece expressamente a legalidade deste serviço, e, assim, trouxe um avanço importante ao arcabouço normativo neste sentido.

Ano passado também vimos a primeira regulamentação em relação aos aplicativos de locação por curto prazo (como é o caso do Airbnb): a cidade de Caldas Novas passou legislação impondo algumas obrigações aos anfitriões deste aplicativos, na intenção de sanar externalidades negativas provenientes destas transações.

Já a respeito da economia compartilhada como um todo, atualmente, há uma Comissão Especial que analisa a criação de um Marco Regulatório para o tema, ou seja, já começou a ser debatido como serão as respostas jurídicas aos desafios destes novos tipos de negócios.

ConJur — O Marco Civil foi um avanço? O que falta a ele?
Fernanda Kayser — O Marco Civil foi um avanço para a toda a sociedade em relação à segurança jurídica na internet. Logo após sua promulgação, suscitou várias dúvidas, pois tardou dois anos para o Decreto nº 8771, que viria regulamentar o Marco, ser promulgado em 2016. Hoje, e com o decorrer do tempo, acredita-se que haja ainda alguns pontos frágeis: por exemplo, nas últimas eleições, percebeu-se que o sistema de notice and takedown mediante notificação judicial era um entrave para barrar fake news, que são disseminadas em alta velocidade. Portanto, possivelmente este seja um ponto necessário de revisão e de aprimoramento.

Outro assunto que ficou pendente de maior abordagem no Marco Civil da Internet foi em relação ao tema da privacidade – que acabou sendo o centro de discussões do último ano.

ConJur — O que pensa sobre uma Lei de Dados e uma agência que regule o tema?
Fernanda Kayser — 
A Lei de Dados brasileira, promulgada no último agosto, foi um grande avanço, se mostrando totalmente necessária em relação ao direito à privacidade. Praticamente importou-se o entendimento Europeu a respeito do tema, este que está em pauta em todo o mundo.

O consumidor, certamente, ganhou muito com a nova lei, seus direitos e liberdades fundamentais foram devidamente protegidos com a nova regulamentação.

A agência reguladora que era prevista na Lei, foi vetada pelo Presidente quando sancionou a Lei, alegando que não cabia ao Congresso sua criação, mas ao Poder Executivo. Conforme prometido, mediante medida provisória 869, foi criada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) no final do ano passado, órgão ligado à Presidência da República. A criação deste modo, no entanto, suscita dúvidas em relação a uma fiscalização possivelmente mais “branda” aos órgãos públicos.

ConJur — Apesar de alguns casos onde a Justiça vê relação de emprego de Uber e motoristas, tem prevalecido o entendimento de que se trata de uma relação comercial. Acredita que o Judiciário já está avançando no entendimento desta nova economia?
Fernanda Kayser — Acredito que sim. É possível fazer uma analogia com o caso das revendedoras de cosméticos da marca Avon, em que foi amplamente discutido seu vínculo empregatício com a empresa.

Apesar de haver muita polêmica em relação a este tópico, e, de fato, há muito o que se questionar sobre a dependência com a instituição intermediária, meio de sustento, metas veladas, foi entendido que era uma relação comercial. O emprego como vemos está se modificando profundamente, e espera-se que a Justiça se modifique também para atender as demandas e agilidade de mudanças tecnológicas, mas sempre tendo como limite e centro a dignidade da pessoa humana.

ConJur — Como estabelecer uma regulamentação/legislação que organize estes temas, dando segurança ao cliente e à sociedade, mas de forma que não engesse o serviço?
Fernanda Kayser — 
Este é o grande desafio!  É necessário se atentar a vários fatores: na verdadeira necessidade de ter alguma regulação e, se sim, qual o momento em que ela deve existir e em qual intensidade. É essencial compreender a nova lógica de alocação de responsabilidades, e nunca perder de vista a proteção aos mais vulneráveis.

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