Opinião

É preciso mudar regra de substituição de candidato após primeiro turno

Autor

  • Clay Souza e Teles

    é consultor legislativo do Senado na área de Direito Constitucional Administrativo Eleitoral e Processo Legislativo mestre em Poder Legislativo pelo Centro de Formação Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados (Cefor) bacharel em Direito e em Ciência da Computação pela Universidade de Brasília.

18 de novembro de 2018, 6h30

Felizmente, nos 30 anos da Constituição Cidadã nunca foi preciso utilizar a regra do parágrafo 4º do artigo 77 da Constituição Federal nas eleições para a Presidência da República. O dispositivo trata da substituição de candidato entre o primeiro e o segundo turno do pleito ao determinar que havendo morte, desistência ou impedimento legal de candidato, é convocado o terceiro colocado. Vale lembrar que essa regra é extensível às eleições para os governadores dos estados e do Distrito Federal, bem como para os prefeitos dos municípios com mais de duzentos mil eleitores, por força, respectivamente, dos artigos 28, caput; 32, parágrafo 2º; e 29, inciso II, de nossa Lei Maior.

Trata-se de norma não encontra par na legislação eleitoral para situações congêneres. Havendo substituição antes do primeiro turno, o partido indica o substituto (artigo 13 da Lei 9.504/97). Já a hipótese de cassação de diploma ou perda de mandato da chapa eleita importa a realização de novas eleições (artigo 224, parágrafo 3º, do Código Eleitoral).

No entanto, o maior problema do artigo 77, parágrafo 4º, é sua disfuncionalidade quando o primeiro turno é pouco fragmentado, com apenas um ou dois fortes candidatos. Nessa hipótese, a grande maioria do eleitorado possui identificação com um dos dois projetos de governo finalistas. Sendo o terceiro colocado de corrente político-ideológica muito diversa daquela do substituído, inverte-se a lógica: boa parcela do eleitorado não se identificará com nenhum dos dois candidatos ao segundo turno. Tomemos como exemplo as eleições presidenciais de 2006, quando os dois mais votados – Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, e Geraldo Alckmin, do PSDB – obtiveram, juntos, mais de 90% dos votos válidos, ao passo que a terceira colocada – Heloísa Helena, do PSOL – conquistou apenas 6,85% dos sufrágios na primeira rodada da eleição.

A regra em comento é uma novidade da Constituição de 1988. A primeira Carta a prever expressamente a eleição por maioria absoluta em dois turnos foi a de 1946. Ela dispunha em seu artigo 81, parágrafo 3º, que no caso de renúncia ou morte, concorreria o substituto registrado pelo mesmo partido político ou coligação. As constituições do regime militar, por sua vez, que previam voto direto na eleição para governador, foram omissas quanto à hipótese de falecimento ou impedimento de candidato entre o primeiro e o segundo turno.

No âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, o texto que originou o artigo 77, parágrafo 4º, foi aprovado nas fases iniciais do processo. O anteprojeto do relator da Subcomissão do Poder Executivo, senador José Fogaça, já previa o seguinte: “se houver desistência entre os mais votados, caberá ao candidato ou candidatos com votação subseqüente o direito de disputar o 2º turno”, texto que perdurou até a Comissão de Sistematização, com pequenas alterações. A hipótese de falecimento, atualmente em vigor, foi introduzida já nas etapas finais em Plenário, poucos meses antes da promulgação.

A bem da verdade, a regra posta pelo constituinte de 1988 não é exclusividade nacional. A Federação Russa também convoca o terceiro colocado no caso de ser necessária a substituição de um dos concorrentes ao segundo turno, mas, diferente do que ocorre no Brasil, é dado um prazo mínimo de 14 dias até o segundo turno com os novos candidatos (Lei Federal 19-FZ/2003, artigo 77, item 3).

Todavia, não se pode dizer que a solução brasileira seja a mais utilizada em países com eleições em dois turnos para os respectivos chefes de Estado. O Código Eleitoral Nacional da Argentina, por exemplo, prevê que na hipótese de falecimento entre o primeiro e o segundo turno, constitui-se uma nova eleição (artigo 154). A mesma solução é adotada pela Constituição do Chile (artigo 26, inciso 4º). Já a Constituição da Quinta República Francesa, além da regra adotada pelos mencionados vizinhos sul-americanos de reiniciar o processo eleitoral, prevê adiamento da eleição em caso de falecimento ou impedimento de candidato antes do primeiro turno (artigo 7º). Do mesmo modo, no direito português a morte de qualquer candidato ao cargo de presidente da República enseja reabertura do processo eleitoral, regra que se aplica a qualquer momento da disputa, e não apenas ao período compreendido entre primeiro e segundo turno (Decreto-Lei 319-A/76, artigo 30º, item 1).

As referências acima, se não oferecem uma solução definitiva, apontam para a necessidade de se refletir sobre um caminho para um modelo mais adequado ao Brasil.

Em primeiro lugar, parece temerário reabrir o processo eleitoral no caso de desistência da candidatura – e quiçá o impedimento legal de candidato –. Isso permitiria o candidato, por ato voluntário, tumultuar o processo eleitoral.

Além disso, reiniciar a disputa, nos moldes do que é previsto em outros países,seria impraticável em um país com as dimensões do Brasil, ainda mais contando comos notórios entraves logísticos do país. O registro de candidaturas seria retomado, assim como as dispendiosas campanhas à Presidência da República. A Justiça Eleitoral, por sua vez, precisaria reorganizar, antes do fim do ano, toda a estrutura para um novo primeiro turno das eleições.

Já a regra da Constituição democrática de 1946 pode oferecer um caminho. A substituição por candidato indicado pelo partido ou coligação preserva, na figura da legenda, a vontade popular manifestada no primeiro turno.

Todavia, o resgate da antiga norma requer alguns cuidados. Em primeiro lugar, o aprofundamento nas razões pelas quais ela fora abandonada pelo constituinte de 1988 ainda na fase de subcomissão. Considerando a experiência eleitoral brasileira, também é preciso considerar prazo mínimo antes das eleições para a nova indicação em caso de desistência ou de impedimento legal. A própria lei 9.504/97 havia sido alterada em 2009 porque era bastante comum que candidato considerado inelegível estendesse a campanha ao máximo e, no último instante, fosse substituído por outro praticamente desconhecido do eleitorado.

Também é preciso refletir sobre a hipótese de substituição, na última hora, de candidato para o cargo de maior estatura da República. Seria o caso de eventualmente prorrogar a data marcada para o segundo turno? A fase de registro de candidaturas já terá sido superada, e serão apenas dois candidatos a se apresentarem ao eleitor. Além disso, as urnas eletrônicas já estarão carregadas com dados de dois candidatos. Por outro lado, a Justiça Eleitoral deverá mobilizar esforços para a montagem de todas as seções eleitorais no País em data diversa da inicialmente programada.

A despeito dessas indagações, resta perguntar por quanto tempo nós brasileiros contaremos com a sorte e preservaremos a regra vigente. Nos dois últimos pleitos, antes do primeiro turno, ocorreram eventos de comoção nacional envolvendo presidenciáveis. Em 2014, um dos candidatos efetivamente veio a falecer e precisou ser substituído – nesse caso, aplicou-se a regra prevista na legislação ordinária para substituição pelo partido. No pleito deste ano, por sua vez, o então líder nas pesquisas sobreviveu ao atentado a sua vida cerca de um mês antes da data marcada para as eleições.

Transcorridas as eleições presidenciais, e com tempo suficiente antes do pleito de 2020, este pode ser o momento oportuno para rever a norma do parágrafo 4º do artigo 77. Além de não se incorrer no risco de casuísmos, contrariar-se-á a práxis brasileira de consertar as telhas quebradas durante estação chuvosa. Enquanto isso, batamos na madeira para que o pior não aconteça.

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  • é consultor legislativo do Senado na área de Direito Constitucional, Administrativo, Eleitoral e Processo Legislativo, mestre em Poder Legislativo pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara dos Deputados (Cefor), bacharel em Direito e em Ciência da Computação pela Universidade de Brasília.

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