O que têm em comum os Einsatzgruppen, os X-Men e O Alienista?
4 de novembro de 2018, 6h32
Se os financistas judeus provocarem nova guerra contra a Alemanha, sua raça será aniquilada.”
Juden frei.”
Atacamos os soviéticos antes que eles atacassem a Alemanha; matamos os judeus adultos porque todo mundo sabia que os judeus eram aliados dos soviéticos; e, como queríamos também segurança para o Reich no longo prazo, eliminamos as crianças para que elas não vingassem seus pais quando crescessem.”
Matávamos primeiro os pais, para que eles não vissem os filhos morrerem. As crianças maiores não davam trabalho, porque já entendiam as coisas [e simplesmente aceitavam morrer]. O problema eram os menores, que engatinhavam até os pais mortos.”
Do documentário Einsatzgruppen – the nazi death squads, de 2009, extraíram-se as citações acima. A primeira delas é trecho de discurso de Adolf Hitler. Para concretizá-lo, foram criados os Einsatzgruppen: corpos militares destinados a exterminar os potenciais opositores do regime nazista na Europa oriental e União Soviética.
A segunda citação foi uma espécie de selo conferido por relatórios dos Einsatzgruppen aos países em que havia sido atingida a meta de extermínio total. A obtenção de tal selo foi muito rápida. Letônia, Ucrânia, Romênia, Hungria (a perseguição aos judeus húngaros é retratada no filme significativamente denominado Sonnenschein – o despertar de um século) — países com grandes populações judaicas — apressaram-se a fazer pogroms e a executar, aos milhares, homens, mulheres e crianças, inclusive bebês.
A terceira citação é de um general alemão genocida condenado à morte em Nuremberg. A última, de um fuzileiro ucraniano a serviço dos Einsatzgruppen, que, como a maioria daqueles assassinos, ficou impune. Segundo o documentário, de 3 mil identificados, apenas 22 foram processados; houve 14 condenações à morte, das quais quatro foram executadas, e as demais, comutadas em prisões perpétuas. Em 1958, todos foram postos em liberdade, porque a política norte-americana achou inconveniente que os alemães ocidentais olhassem para aquelas prisões como atos de vingança. Um dos genocidas condenados à morte cumpriu apenas cerca de seis anos de prisão. Então, os assassinos nazistas puderam viver livres, leves e soltos na Alemanha Ocidental, grande parte trabalhando na polícia, sua ocupação de antes da guerra.
“Não procure os mutantes, procure os humanos!”
Com essa frase dita a Jason em X-Men 2, Mística, seguindo ordens de Magneto, determinou que o Professor Xavier, com o auxílio da máquina Cerebro, focasse seu pensamento nos humanos. É que se o Professor Xavier, usando aquela máquina amplificadora de seus poderes telepáticos, focasse em algum grupo, mutantes ou humanos, tal grupo pereceria (significativo, não? Lembra uma força política atacando “inimigos” por meio de tecnologias como redes sociais; lembra também políticas de ódio contra “os outros” — os diferentes, os opositores, os dissidentes — transformados no inimigo a ser destruído).
Mas falemos um pouco mais de um dos principais personagens da trama: uma criança em um campo de concentração cujos pais são, lá, assassinados. Quem é essa criança? O futuro Magneto. O mutante que tem em si o suprassumo do ódio produzido no século XX. Ele também tem o notável poder de controlar uma das bases da civilização do mesmo século: os metais… com que se fazem as armas, os computadores e quase tudo. É uma espécie de mito representativo da essência daquele triste século.
Outro personagem central é o já mencionado Professor Xavier, o mestre do pensamento que não deveria focar em determinado grupo de pessoas usando a Cerebro machine porque isso as destruiria. Quando o fez, agiu com a mais completa obediência cega que se pode imaginar (lembrando as alegações dos nazistas em Nuremberg), vez que seus pensamentos foram controlados por um outro mutante, Jason, primeiramente a mando de seu pai, o genocida de mutantes Stryker, e, depois, a mando do genocida de humanos Magneto (como que a representar uma competição de genocidas, a exemplo da que ocorreu entre Hitler e Stalin). Na obediência de Xavier, mais uma representação do século passado: a ciência obedecendo à política a ponto de criar sóis na Terra, um dos quais gerou a Rosa de Hiroshima, de que não devemos jamais esquecer.
A mente manipulada pode manipular outras e causar os mais graves crimes contra determinados grupos de pessoas. A tecnologia pode levar à amplificação da manipulação do pensamento e do ódio para a destruição de grupos tidos como inimigos. Foi o que Stryker pretendeu fazer com os mutantes e o que Magneto quis fazer aos humanos. Foi o que os nazistas fizeram aos judeus.
“Aquela Bastilha da razão humana!”
Bendita frase ambígua! Nela talvez se resuma o conto O Alienista, de 1882, embora mil ideias possam ocorrer a quem o leia: Machado de Assis está criticando o conceito de loucura? a segregação de “loucos”? a classificação “loucos x normais”? a Revolução Francesa? o nascimento, os vaivéns e a morte da atual civilização, ou dos seus defensores iluministas? A lista de possibilidades interpretativas vai longe… mas não por acaso.
Talvez para além das aparentes interpretações fáceis, por assim dizer, Machado em O Alienista vislumbrou que o culto à razão, tão caro ao Iluminismo, ao Positivismo e ao Marxismo, acabaria não dando em coisa muito boa nos anos vindouros. O mais impressionante é ele ter imaginado isso muito antes da 2ª Guerra Mundial e do naufrágio da Revolução Russa no porto stalinista (o poderoso pensador que foi Lenin não conseguiu evitar que a tradição política tártara conduzisse os russos a substituírem o czarismo feudal por um czarismo “comunista”, entronando no Kremlin um genocida cujo codinome — Stalin — significa, em russo, homem de aço).
Mas, cuidado! Não se espere um Machado de Assis simplista. Não é que o apego à razão, por si, leve ao mal.
O que parece ser o Leitmotiv de O Alienista é o perigo da associação do discurso da razão com o poder político. Foi o que ocorreu com o apoio da Câmara de Itaguaí ao Dr. Simão Bacamarte e sua proposta de encarcerar os “loucos”.
Vale dizer: quando um grupo político intitula-se portador “da verdade” e “dono da razão”, é tentador e fácil atribuir aos opositores os gentis adjetivos de irracionais, burros e loucos, inimigos da razão e da verdade, que não merecem ficar livres e viver.
Essa aliança do discurso da razão com a política resultando em opressão talvez tenha se iniciado paradoxalmente como uma espécie de efeito colateral (não desejado) da proposta iluminista de unir razão e política com o objetivo de utilizar a primeira como um meio de construir uma sociedade livre, igualitária e fraterna. No devir histórico, essa aliança começou a mostrar-se bastante problemática, como o percebeu Machado de Assis.
Outro problema associado ao culto à razão e que não passou despercebido à ironia machadiana é utilizá-la em detrimento do sentimento, como o fez Simão Bacamarte ao escolher sua esposa por considerações racionais em vez de sentimentais, crendo que ela tinha condições físicas de lhe dar prole numerosa; mas, adveio o contrário, e ela não lhe deu filho algum. Aqui, a arte de Machado já insinua o que pode ser a maior dificuldade prática do genocida: como fazer com que seus partidários ou subordinados passem por cima dos sentimentos para, em nome de uma ideia, perpetrarem desumanidades. Sabe-se que esse problema foi um dos motivos da criação do método de extermínio em câmaras de gás, vez que os demais métodos chegavam a ser insuportáveis até mesmo a membros dos Einsatzgruppen encarregados de pô-los em prática.
Outra fragilidade da pretensa aliança entre política e razão é que ela pode chancelar as mais disparatadas ideias, conferindo-lhes o status oficial de “única verdade”, causando os mais perniciosos resultados. Nessa toada, a Câmara de Itaguaí autorizou ora o encarceramento dos ditos loucos, ora dos “normais”. No último capítulo, “Plus ultra”, a razão levada ao extremo, com o beneplácito do poder político, acarretou a autoprisão e morte do próprio alienista Simão Bacamarte (lembrando os versos de Noel Rosa no samba Positivismo: “E também faleceu, por ter pescoço/O infeliz autor da Guilhotina em Paris”).
A riqueza de significados do conto machadiano atravessa e representa muitos fatos históricos que são a expressão daquela contradição do discurso da razão como instrumento para a felicidade resultando em um instrumento para a infelicidade.
Abordadas cada uma das obras de arte mencionadas na pergunta título deste pequeno texto, pode-se passar a uma tentativa de síntese-resposta.
“A verdade”, filha da razão, é uma frágil vítima da política, como o demonstrou a comutação das penas dos condenados em Nuremberg e o estilo de manipulação da verdade por regimes totalitários como o stalinismo e o nazismo, tão bem representado por George Orwell em Nineteen Eighty-Four: o Ministério da Verdade da Oceania era encarregado de criar “a verdade” de acordo com os interesses do Partido, para isso alterando até mesmo a história testemunhada pelas pessoas viventes. Será que isso lembra a recente tese de que não houve ditadura militar no Brasil pós 1964, ou que a corrupção e insegurança no Brasil começaram em 2003?
A manipulação do pensamento para fins políticos não respeita sequer o cristianismo. “Conhecereis a verdade e ela vos libertará” é trecho do Evangelho de João transformado em mote da campanha do candidato vencedor da disputa presidencial brasileira em 2018. O significado desse texto bíblico não foi poupado, como era de se esperar, uma vez que política e verdade nunca foram muito amigas — como o mostrou Pilatos para toda a eternidade, fato lembrado por Noel no mesmo samba Positivismo: a verdade a que se refere o Evangelho é o próprio Cristo e seus ensinamentos e não mensagens de ódio em tudo contrárias ao cristianismo, ou determinadas ideias humanas sobre fatos políticos, tais como a falácia que vê no presente ou em 1964 “ameaça comunista” no Brasil.
Outro grande escritor, contemporâneo de Machado, Charles Dickens, em Hard Times, representou o culto moderno à razão a ponto de sobrepor-se aos sentimentos, destruindo a humanidade das pessoas atingidas; no caso, dos próprios filhos do “dono da razão” (Que dirá dos inimigos políticos, como o demonstrou o zelo burocrático dos nazistas na realização do Holocausto?).
Tempos difíceis. Grandes escritores sabem mesmo escolher os nomes de suas representações da realidade em forma bela (arte). Que título seria melhor para a atual época em que o imperador do mundo foi eleito com discursos de ódio, sob suspeita de ajuda do atual czar russo, e em que a periferia com complexo de colônia se apressa a imitar a extrema direita americana e europeia?
As obras artísticas aqui mencionadas representam os efeitos perversos da apropriação “da verdade” por grupos políticos que se julgam donos da razão. Mostram a cara dos totalitarismos ao estilo do século XX, os quais, numa volta da roda da História, estão exibindo novamente os dentes nas ruas e nos governos. Mas estamos prevenidos: a humanidade já viu esse filme; e já leu esse livro.
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