Tribuna da Defensoria

Novo CPC ainda permite concessão de tutela de urgência em ações revisionais

Autor

  • Wesley Sodré Alves de Oliveira

    é defensor público no Bahia com atuação cível e consumerista especialista em Direito Civil e Processo Civil foi membro titular da Senacon como representante da DPCon Bahia e professor de Direito Civil e Processo Civil.

20 de março de 2018, 12h34

Dia comum de exercício defensorial. Eis que a instituição é intimada do indeferimento de tutela provisória de urgência pleiteada em ação revisional sob a seguinte fundamentação:

(…) Em que pese a constatação da plausibilidade do direito invocado consubstanciada na cobrança de taxa de juros muito acima da taxa média divulgada pelo Banco Central para operações similares, há normativo processual que determina a continuidade do pagamento das parcelas no tempo e modo contratados em ações desta natureza. Assim sendo, indefiro o pedido de tutela de urgência na forma requerida.(…)

Passei a refletir. Será mesmo que a redação trazida pelo novo CPC, especialmente o artigo 330, parágrafos 2º e 3º teria fulminado a possibilidade de deferimento de tutela de urgência em ações revisionais? Teria, então, o legislador instituído limitador jurisdicional em seara revisional, tal qual o fez em favor da Fazenda Pública (Lei 9494/97)?

Parece que não foi essa a pretensão legislativa. Antes, contudo, de indicar as razões dessa conclusão, importa situar o leitor acerca do caso concreto submetido à apreciação judicial.

Dona “Maria” (nome fictício), carente, percebia LOAS – Benefício Assistencial de Prestação Continuada – em razão da deficiência, no valor de R$937,00, dos quais R$ 543,46 (quinhentos e quarenta e três reais e quarenta e seis reais) eram repassados à financeira, isso é, 58% da sua renda mensal como pagamento mensal do empréstimo realizado.

A financeira justificava a legalidade do desconto porque teria celebrado “empréstimo com desconto em conta corrente” e “não consignado”, o que, a seu ver, permitira (ao arrepio da recentíssima súmula 603, STJ)[1], a retenção naquele patamar. Senão bastasse, sob o manto da autonomia da vontade e da inexistência de limitador legal ao sistema financeiro, aplicou juros remuneratórios no patamar de 22%a.m (isso mesmo, ao mês!) quando a média de mercado para a operação permeava 2,09%a.m, alegações atestadas por laudo contábil a partir de indicadores extraídos do Banco Central.

Diante disso, a assistida sucumbia com apenas R$ 393,60 mensais, a despeito de já satisfeita a totalidade da obrigação (se considerado os juros médios).

A plausibilidade jurídica do pedido, assim, parecia manifesta (tanto que reconhecida expressamente na decisão). Todavia, a tutela de urgência foi indeferida pelo óbice “normativo processual” .

Volto a indagar: Teria sido essa a intenção do legislador processual civil? Penso que não.

A previsão legal de que o pagamento do incontroverso deva se dar no tempo e no modo pactuados (artigo 330 parágrafo 3, CPC), por si só, não furta do magistrado a possibilidade de realizar a ponderação a partir das especificidades do caso concreto.

Em linhas gerais, a aplicação da lei deve considerar tanto a norma in abstrato quanto às nuances da situação fática para, assim, trazer uma resposta prudente, ponderada e justa.

Reconhecer a probabilidade do direito e indeferir a proteção judicial sob o argumento de vedação em tese parece, com o devido respeito ao julgador, ferir a premissa da autonomia do exercício da judicatura, conquista garantida e fomentada a partir do neoconstitucionalismo.[2]

Noutro aspecto, a fixação legal de que a parcela incontroversa tenha de ser paga “no tempo e modo contratados” não é novidade do novo CPC. Prova disso é que o artigo 50 parágrafo 1º da Lei 10.931/2004[3] (Lei de Incorporação Imobiliária) contém texto similar:

Artigo 50, parágrafo 1º O valor incontroverso deverá continuar sendo pago no tempo e modo contratados.

Ocorre que tal norma foi precisa ao possibilitar nos seus parágrafos a dispensa das parcelas em caso de relevante razão de direito e de risco de dano irreparável.

Artigo 50. parágrafo 4o O juiz poderá dispensar o depósito de que trata o parágrafo 2o em caso de relevante razão de direito e risco de dano irreparável ao autor, por decisão fundamentada na qual serão detalhadas as razões jurídicas e fáticas da ilegitimidade da cobrança no caso concreto.

A nosso ver, a textual dispensa prevista em lei especial elucida, em verdade, princípio geral, qual seja: de que qualquer vedação in abstrato pode ser judicialmente afastada a partir das especificidades do caso concreto em qualquer modalidade contratual. É dizer, o juiz jamais poderá ter suprimida sua capacidade de ponderação, sob pena de se retroceder à escola da exegese (1804 – Código Napoleônico)[4]

Nessa ordem de ideais, o STF teve a oportunidade de reconhecer que até mesmo a declaração de constitucionalidade da norma não importa pressuposto lógico e irrestrito de aplicação do texto quando as especificidades apontarem caminho diverso.

Uma dessas decisões foi tratada na ADC-4, onde o STF, a despeito de reconhecer a constitucionalidade da vedação de liminares em face do poder público, reconheceu que “a decisão proferida pela Corte na ADC 4-MC/DF, Rel. Min. Sidney Sanches, não veda toda e qualquer antecipação de tutela contra a Fazenda Pública”.[5]

O STF, inclusive, chegou a editar súmula quanto à possibilidade de ponderação (SÚMULA 729 – “A decisão na Ação Direta de Constitucionalidade 4 não se aplica à antecipação de tutela em causa de natureza previdenciária”)

Os Tribunais igualmente reconheceram que a vedação in abstrato pode ser afastada a partir de valores ponderados no caso concreto, tais como a tutela de saúde, medicamentos e outras demandas urgentes. Vejamos:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO EPROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. FAZENDA PÚBLICA. EXCEÇÃO ÀS HIPÓTESES DO ARTIGO 1º DA LEI 9.494/97. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA TUTELA ANTECIPADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. I- A antecipação de tutela em face da Fazenda Pública pode ser concedida nas situações que não se encontrem inseridas nas hipóteses impeditivas da Lei 9.494/97. Precedentes. II- Agravo Regimental a que se nega provimento. (STJ – AgRg no Ag: 1185319 RJ 2009/0083415-0, Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), Data de Julgamento: 25/10/2011, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/11/2011)

REEXAME OBRIGATÓRIO E APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE E FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL – PRELIMINARES REJEITADAS – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PELO ESTADO – OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL – ARTIGO 196 DA CF – TUTELA ANTECIPADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – LEI N. 9494 /97 – POSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO – (…) O artigo 196 da Constituição Federal prescreve que é dever de o Estado garantir o acesso universal e igualitário das pessoas à saúde, estando este dever constitucional acima de qualquer lei, portaria ou outro ato normativo, porquanto o que se visa garantir é o direito primordial à vida.(..) TJ-MS – Apelação APL 08196798620138120001 MS 0819679-86.2013.8.12.0001 (TJ-MS) Data de publicação: 10/03/2016

Parece-nos que o entendimento também é aplicável às ações revisionais a fim de se evitar injustiças e danos quiçá irreversíveis.

Temos, assim, que o novo CPC não inovou ou impossibilitou o juízo observar as nuances do caso concreto para, assim, permitir a concessão da tutela provisória de urgência, inclusive em seara revisional, caso presentes a plausibilidade jurídica do pedido e o risco ao resultado útil do processo.


[1] Súmula 603: É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual.

[2] Fenômeno advindo com a CF/88, que reafirmou o princípio da dignidade da pessoa humana, o código civil passou a ser interpretado à luz da constituição, fenômeno denominado constitucionalização do direito civil, razão pela qual a interpretação literal da lei cada vez mais cede espaço tanto para a interpretação sistemática como para a analogia, partindo do pressuposto de que o contrato tem de cumprir com a sua função social.

[3] Lei de incorporação imobiliária

[4] Empirismo Exegético – A ciência jurídica (…)que a função específica do jurista era ater-se com rigor absoluto ao texto legal e revelar seu sentido. (…) por isso o estudo do direito deveria reduzir-se a mera exegese dos códigos. https://www.passeidireto.com/arquivo/6181687/empirismo-exegetico, acesso em 28/02/2018.

[5]Rcl 8335 AgR, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgamento em 19.8.2014, DJe de 29.8.2014)

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    é defensor público no Bahia com atuação cível e consumerista, especialista em Direito Civil e Processo Civil, foi membro titular da Senacon como representante da DPCon Bahia e professor de Direito Civil e Processo Civil.

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