Opinião

Tribunais do país põem direito de defesa em desconforto

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8 de março de 2018, 17h54

O ministro Luís Roberto Barroso, advogado de origem, e dos bons, quer saber como a defesa do presidente Temer descobriu a existência de procedimento sigiloso tramitando na suprema corte, violando-se, portanto, despacho posto nos autos.

Os defensores informaram que a numeração daquele instrumental se encontrava no site do Supremo, não havendo, portanto, extravagância alguma em petitório dirigido ao tribunal. Parece que foi isso. Aliás, se assim foi, a anomalia se completou, pois a insurgência jurisdicional contra a hipótese de violação de segredo também precisaria atingir a imprensa, sempre intrometida, comunizando-se a informação.

São contradições levando aos intérpretes uma relevante perplexidade. Enfim, uma disputa pública, iniciada na suprema corte, visando pormenores de acidente a ser fechado a sete chaves.

Providências cautelares, no atual estágio do processo penal brasileiro, têm tramitação coxeante. A expressão tem, na cabeça do cronista, ligação com texto de Mia Couto, escritor moçambicano que será, logo, logo, forte candidato ao Nobel de Literatura. Há um personagem, num dos romances, afirmando, mais ou menos: “Manco não porque coxeio, mas por cautela…”.

Anos atrás — muito atrás —, a polícia judiciária realizava tarefas com plenitude de independência. Há, hoje, interferência múltipla do Ministério Público, sem contas à jurisdição. Chegou-se a isso aos poucos porque, metido o país em forte onda corruptora, o Ministério Público avantajou interferência, favorecido, inclusive, por plúrima cooperação e permissividade do Poder Judiciário. Dentro de tal contexto, e até em razão de degeneração de pressupostos constitucionais, eminentíssimos promotores de Justiça se organizaram privilegiadamente, instaurando, originalmente, procedimentos penais extravagantes fantasiados de inquérito civis públicos e, mais tarde, os denominados “PICs”, assumindo então, abertamente, a capacitação de investigações de natureza criminal.

O texto é apenas descritivo, sem dose qualquer de indignação, pois criminalistas experientes sabem que vantagem e desvantagem no exercício da arte são materializadas em função de maior ou menor agressividade dos partícipes pertencentes a diversos segmentos, acompanhados por mutações legislativas oportunistas vincadas em fenômenos exponenciais na vida política das comunidades. Assim, a interferência em comunicações telefônicas ou ambientais passou a fazer parte, às vezes, do anedotário forense, tão rotineira ficou ou tão disseminada a crença na espionagem estatal.

Deu-se, fundada em repetição de grampeamentos, uns conhecidos depois, outros mantidos engavetados, uma ambivalência: de um lado, o Ministério Público, cama e mesa dos setores do Poder Judiciário, participando ativamente de instrumentação de investigações anteriores à instauração da ação penal, comungando com a polícia ou não, em paridade nem sempre harmônica. De outra parte, os investigados, uns previamente encarcerados e enfraquecidos em razão da sedutora oportunidade da delação, outros em liberdade, mas não cientes das cautelares impactantes a lhes revolverem camas, gavetas e roupas íntimas dos casais. Tais medidas agressivas, evidentemente, eram unilaterais, sendo conhecidas dos investigadores e preparadas também por estes, mantenedores e conscientes, é certo, do segredo das empreitadas. Tais empreendimentos, segundo consta, tiveram, eventualmente, a instrumentação de mecanismos eletrônicos pertencentes ao próprio Ministério Público aqui e ali, dispensando-se, portanto, a cooperação das chamadas “provedoras”.

Repita-se: o texto não contém censura ou reclamação maior. Há sempre, entre acusação e defesa, conflito inerente à espécie. Dentro do princípio de hipotética legalidade, existe um combate acirrado, exceção feita às confissões recompensadas quando o delator, réu confesso, muda de lado e passa a auxiliar a acusação. Tudo faz parte da eterna luta entre bem e mal, não se conseguindo, de vez em quando, saber qual das partes está obrando contra a lei. De qualquer forma, a acusação sempre sabe muito mais que a defesa, porque coparticipa das providências cautelares, guarda ou exibe documentação oportunisticamente e trabalha usualmente em gabinete posto ao lado das próprias acomodações reservadas aos juízes.

Relembre-se que nos tribunais, sem exceção da Suprema Corte, os acusadores públicos tomam assento à direita dos pretores, vantagem essa essencialmente convidativa a diálogo mais restrito. Não se diga, no particular, que os eminentíssimos membros da instituição têm conhecimento antecipado dos votos dos eminentíssimos magistrados. Nem se atreva o intérprete e acentuar que a posição de cada julgador é antecipadamente comunicada a todos, numa espécie de conferência prévia, de forma a que o julgamento, ressalvadas as exceções, já venha concretizado antes mesmo da sessão. Aliás, os diários oficiais, ou um ou outro, têm intimado as partes a dizerem, no juízo criminal, se não se opõem ao julgamento virtual, um eufemismo por certo, porque se parte do princípio no sentido de que a oposição exige manifestação objetiva. Ali, o silêncio, ou a desatenção, significa concordância com a decisão domesticada, ou seja, fora do Plenário.

Deixem-se de lado divagações maiores. Basta acentuar, no vigente estágio da aplicação prática do Código de Processo Penal, que as nulidades, mesmo vertentes e graves, têm muito difícil reconhecimento. A Justiça Penal endureceu muito, desequilibrando-se o contraditório, não só porque a cidadania reivindica majoritariamente o uso da chibata, mas porque, conforme se verifica, a criminalidade habitual patrimonial, ou de outro estilo, chegou a ser quase uma epidemia.

Iniciou-se o texto com manifestação do ministro Barroso querendo informações sobre violação de um segredo cujo contorno maior havia sido desvestido na própria publicação oficial. Depois, passou-se a acentuar a distonia entre aquilo que o Ministério Público vem a saber e a ineficácia da defesa em bordejar tal conhecimento. Adiante, relembrou-se a batalha entre a Ordem dos Advogados do Brasil e detratores das prerrogativas, visando, os representantes de um milhão de profissionais, a preservação dos pressupostos assegurados à plenitude da contradição. A certa altura, relembrou-se a figura do advogado Sepúlveda Pertence, enobrecida sob todos os aspectos, antes ministro da suprema corte, falando em pé, becado, aos 80 anos de idade, fazendo-o no Superior Tribunal de Justiça, não se sabendo se lhe havia sido ou não assegurado assento atinente à dignidade e maturidade do interveniente. Por fim, há pequena menção ao fato de o atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Claudio Lamachia, ter identificado publicamente quem seria seu sucessor.

Não se pense, aqui, que o cronista perdeu de vista o denominado “ponto nodal” da questão, consistente, desde o início, no desnivelamento entre acusação e defesa, hoje, no processo penal brasileiro. Em síntese, falou-se no aviltamento das prerrogativas da advocacia. Encerre-se com um comentário ácido, cáustico, mordente até: o cultíssimo presidente do Conselho Federal da OAB, pontífice numa corporação congregando milhares e milhares de advogados, não consegue, na suprema corte, o cumprimento de lei expressa, em plena vigência, garantidora do direito de o advogado falar sentado enquanto sustentando oralmente. A proibição é tácita, mas extremamente prática: a tribuna não tem cadeira para tal comportamento. Assim, eminentíssimo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sai daqui um repto aberto. Faça, nos estertores do mandato, o suficiente à satisfação da prerrogativa básica enunciada. O advogado Sepúlveda Pertence falou em pé, sem reclamar. Tem 80 anos. Mesmo aos 23, teria direito a assento. Nessa medida, não parece entusiasmante a transmissão do cargo de presidente da OAB a sucessor previamente escolhido. O Brasil tem grandes problemas a ser enfrentados, é claro, mas a suprema corte precisa cumprir a lei. Enquanto o Estatuto da Ordem for violentado abertamente, qualquer dos problemas ditos maiores da nação brasileira restará no vazio. Aquele assento inexistente no Supremo Tribunal Federal e em outros tribunais do país é o símbolo maior do desconforto em que se põe o direito de defesa.

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