Diário de Classe

Decisões judiciais contra legem não deveriam ser nenhuma surpresa

Autor

  • Rafael Giorgio Dalla Barba

    é advogado doutorando em Filosofia do Direito pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos).

12 de maio de 2018, 8h00

Há ambiguidade no título dessa coluna. E ela é proposital. Uma decisão judicial contra legem não deveria ser surpresa porque os juízes devem buscar ao máximo se afastar de suas preferências pessoais, morais, políticas etc., e ao mesmo tempo dar previsibilidade às partes, cumprindo a promessa do art. 926, caput do Código de Processo Civil.

Sim, é verdade. Mas uma decisão judicial contra legem também não deveria ser surpresa por outro motivo: é um fenômeno bastante antigo e recorrente na prática jurídica, mormente se tomarmos a história recente do Supremo Tribunal Federal como parâmetro.

No último dia 4 de abril, a comunidade jurídica acompanhou o julgamento do HC 152.752, em que o STF, seguindo a orientação de sua mais recente jurisprudência e ao mesmo tempo contrariando a literalidade do art. 5º, LVII da Constituição Federal, decidiu um dos casos mais importantes de sua história.

Importantes juristas do país[1] manifestaram suas opiniões sobre o caso, criticando a consolidação do entendimento que restringe o princípio da presunção de inocência em detrimento da literalidade do dispositivo constitucional. Cabe agora indagar se esse tipo de decisão ocorreu de forma isolada e excepcional — reforçando a narrativa de que haveria motivações políticas no julgamento — e/ou se é uma prática constante e habitual no ambiente jurídico.

Em primeiro lugar, é preciso registrar que no antigo Império Romano os juristas já haviam diagnosticado esse fenômeno. Eles faziam uma tríplice distinção entre os modos de decisão judicial: decisão conforme a lei (adjudication secundum legem), decisão além da lei (praeter legem) e contra a lei (contra legem)[2] porque sabiam da possibilidade de uma norma não prever todas as hipóteses de incidência de antemão.

Muitas vezes, no entanto, não era a ausência de previsão legal que trazia problemas aos juízes, mas a própria disposição do texto jurídico. Ou seja, não se tratava de “problemas no texto”, mas “o próprio texto era um problema”.

Embora tenham sido os primeiros a identificá-la, essa peculiaridade não foi exclusividade dos romanos. Na clássica metodologia jurídica alemã a ideia de decisões contra legem volta a aparecer, popularizada principalmente pelas influentes doutrinas que se contrapuseram ao formalismo interpretativo daquelas épocas. Refiro-me em especial à Jurisprudência dos Interesses — cujo expoente é Philipp Heck — e ao Movimento do Direito Livre, na figura de Hermann Kantorowicz[3].

Na obra de Heck, embora não haja justificação da decisão judicial contra legem, há referência ao “importante papel do contra legem judicare sobre a diversidade de conceitos compreendidos na palavra ‘lei’”[4]. Mais radical ainda, Kantorowicz chega a dizer que as lacunas do Direito são colmatadas não pelos métodos de interpretação tradicionais, mas pela vontade irrefreável de atingir o resultado desejado e já previamente determinado[5]. Uma espécie de presságio refinado do popularmente famoso jargão jurídico “decido para depois achar um fundamento”[6].

Da segunda metade do século XX para cá, a questão gira em torno do exaustivamente discutido art. 20 (3) da Lei Fundamental da Alemanha que, ao referir a vinculação dos Poderes Executivo e Judiciário à “lei” e ao “Direito”, viabiliza as mais diversas reflexões sobre a temática dos limites das interpretações. A Constituição evidentemente não estabeleceu uma equivalência entre os dois conceitos, mas a definição desses conceitos certamente define a esfera de legitimidade dos tribunais em casos controversos[7].

No Brasil, poucas expressões sintetizariam melhor o panorama geral do que o título do romance de Erich M. Remark, Nada de novo no front (Im Westen Nichts Neues)[8], pois a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal só confirma a velha preocupação doutrinária. O reconhecimento da união estável de casal homoafetivo contrário ao art. 226, § 3º da CF (ADI 4.277 e ADPF 132), a criação de proibição do financiamento eleitoral por pessoa jurídica (ADPF 4.650) e a derrogação do crime do aborto de feto com até três meses de vida (HC nº. 124.306/RS)[9] são alguns exemplos recentes que exibem claramente esse fenômeno.

No primeiro caso, a interpretação do STF confrontou não apenas a literalidade do texto constitucional como a própria intenção do constituinte e suas opções políticas[10]. Nos demais casos, confirmou que o vínculo entre conceito e objeto, indispensável à inteligibilidade linguística, não tem sido fator determinante para a interpretação (e construção) do Direito. Ou seja, a discussão sobre os limites do poder jurisdicional não se refere a problemas semânticos, mas à justificação da explícita reavaliação das opções políticas do legislador[11].

“Mas há um número muito maior de decisões secundum do que contra legem na jurisprudência do STF!”. Provavelmente. Só que esse tipo de crítica confunde quantidade com qualidade: a existência de decisões contra legem é um fator que por si só merece atenção da comunidade jurídica; elas são, como dizia Herbert L. A. Hart, o “pão de cada dia das faculdades de Direito”[12]. Um hard case precisa ser enfrentado e discutido independentemente da quantidade de easy cases do entorno.

É um erro pensar que o problema estaria superado pelo argumento de que “no apanhado geral, o saldo é positivo”. Isso sem falar que são exatamente essas decisões que geram o maior impacto social e político, despertando a curiosidade do público geral e aproximando a comunicação entre Direito e outras áreas do conhecimento.

A existência de decisões judiciais contra legem não deveria causar espanto. Elas são o combustível e o centro de gravitação em torno do qual giram as Ciências Jurídicas. A ideia comum de que quando os juízes deixam de seguir a “letra da lei” estão apenas fazendo uma “interpretação mais abrangente” deixa ainda mais clara a naturalidade com a qual esse tema vinha sendo tratado. Agora que essa questão atingiu seu ponto mais sensível – a prisão de um ex-presidente da República –, na verdade nada se fez de muito diferente do que já se fazia antes. Voltando a Remark: Im Westen nichts Neues.

P.S.: Quero agradecer aos amigos William Galle Dietrich e Gilberto Morbach pela leitura e pelos comentários sobre o texto antes da publicação.

[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-05/especialistas-analisam-decisao-stf-aceita-prisao-antecipada. Acesso em 19.abr.2018.
[2] A distinção aparece no tópico D.1.1.7.1 do Corpus Juris Civilis. No entanto, a fonte permanece duvidosa no que concerne à função do Praetor. Ver POSCHER, Ralf. The hermeneutical character of legal construction. In: GLANERT; Simone; GIRARD, Fabien. (ed.) Law's Hermeneutics: other investigations. November 28, 2015. London: Routledge, 2016. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2696486. Acesso em 15.abr.2018.
[3] Para introdução ao tema, ver MIOZZO, Pablo Castro. Interpretação jurídica e criação judicial do Direito: de Savigny a Friedrich Müller. Curitiba: Juruá, 2014. p. 151-173.
[4] HECK, Philipp. Gesetzesauslegung und Interessenjurisprudenz. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1914. p. 161.
[5] “O dever é vontade, ainda que um tipo colorido de vontade (…). Os conflitos entre vontade e dever são conflitos de vontades ambivalentes. Um dever que não é pensado como uma vontade de alguém, de um indivíduo ou de uma personalidade geral, de si próprio ou de outra pessoa, mas como norma "objetiva" é uma ideia inexequível e vazia”. KANTOROWICZ, Hermann. Der Kampf um die Rechtswissenschaft. Heidelberg: Carl Winter's Universitätsbuchhandlung, 1906. p. 34. (tradução livre)
[6] Sobre arbitrariedade decisória, ver STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. Passim.
[7] Ver NEUNER, Jörg. Die Rechtsfindung contra legem. 2. ed. Munique: CH Beck, 2005. p. 6-10. Para o autor, “a decisão contra legem ocorre quando a finalidade da disposição normativa emitida pelo legislador histórico é desprezada, considerando que essa se compatibiliza com o possível sentido do texto ou quando possa ser implementada por analogia ou restrição” Id. Ibid. p. 132. (tradução livre)
[8] Versão em português: REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. Trad. de Helen Rumjanek. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2004.
[9] Para uma crítica da decisão, ver DALLA BARBA, Rafael Giorgio; STRECK, Lenio Luiz. Aborto – a recepção equivocada da ponderação alexyana pelo STF. Consultor Jurídico, São Paulo, 11 dez. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-dez-11/aborto-recepcao-equivocada-ponderacao-alexyana-stf. Acesso em 04.abr. 2018.
[10] BRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento B). Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/redacao.pdf. Acesso em 4.mai. 2018. p. 209.
[11] Importante estudo sobre a argumentação contra legem na Teoria da Argumentação Jurídica do jusfilósofo alemão Robert Alexy, ver BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Argumentação contra legem: a teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos mais difíceis. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Passim.
[12] HART, Herbert L. A. Positivism and the Separation of Law and Morals. Harvard Law Review, 71:593-629. p. 615.

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