Diário de classe

Legislação brasileira concede licença
para Judiciário legislar

Autor

  • Júlio César Rossi

    é advogado da União pós-doutorando em Direito pela Unisinos doutor em Direito pela PUC-SP e membro da ABDPro e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

30 de junho de 2018, 8h02

Não é de hoje que o Parlamento brasileiro adotou a técnica de legislar por meio de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, atribuindo ao Poder Judiciário a tarefa de “preencher os conteúdos e consequências lógicas a partir do caso concreto[1]. Isso é bom ou ruim?

Bem, acreditamos que seja péssimo, pois a vontade de poder é cada vez maior. A “Supremocracia” e a “STJcracia” impera em nosso pais. Não há Direito que não seja “dado” por essas Cortes[2].

Basta notarmos a inexistência de casos concretos a serem julgados; há, em verdade, – talvez fruto de uma mutação constitucional à brasileira dos artigos 102, III, e 105, III, da Constituição Federal, ultimamente, o diploma mais surrado que conhecemos – teses, números, “precedentes”, paradigmas, súmulas e, todo o direito, está acoplado a esses exemplares da cultura jurídica nacional!

Portanto, satisfaz por autossuficiência, ver o “número” e “colar” na hipótese em análise! Bingo! Tudo está resolvido! A Panini – editora do álbum da Copa da Rússia – seria a maior “aplicadora do direito”, junto com os tribunais de cúpula hoje em atividade no Brasil.

A lei de introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657/1942) acoplada ao nosso código (Lei 3.071/1916), fruto do movimento iluminista francês (1.804), mesmo sob outro contexto histórico foi transformada na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lei 12.376/2010), cuja única disposição foi alterar o “nome da lei”[3].

A nosso ver essa lei de introdução é totalmente dispensável, não atende sequer às necessidades básicas do positivismo exegético. Vejam: o Brasil possui uma Constituição dirigente, principiológica[4] e dotada de força normativa, analítica, que praticamente regula todas as espécies de conflitos normativos, expõe diretrizes, estabelece conceitos – entre outros o de coisa julgada, ato jurídico perfeito, direito adquirido e tantos outros –, notadamente no seu núcleo fundamental (artigo 5º e seus 78 incisos).

Não basta para conter o voluntarismo, utilitarismo e o consequencialismo? Não obstante isso ela existe e, para supressa de alguns, foi alterada: surgem novos comandos a partir da Lei 13.655/2018.

Entre os diversos dispositivos inseridos na vetusta LICC, que se “modernizou” e virou LINDB, agora temos os artigos 20 e 21, contidos na LINDB 2.0, cujo cerne além de traduzir a ideia de licença para o Poder Judiciário legislar também permitiu isso no âmbito administrativo e controlador (Tribunal de Contas).

Eis os dispositivos legais que serão objeto de nossa análise:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas (grifamos).

Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos (grifamos).

A Constituição Federal de 1988 – portanto há 30 anos – diz com todas as letras que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.

O artigo 20, caput, em sua primeira parte diz o óbvio, data maxima venia, “não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos”.

Ora, ao julgador não cabe qualquer pronunciamento em abstrato, muito menos em valores, pior ainda se esses valores forem os “seus”, aqueles nos quais acredita ou pelos quais pretende fazer justiça. Ao julgador se confere o dever de julgar conforme as leis e não conforme a sua vontade, moral ou valores! Elementar isso!

Mesmo em épocas sombrias em que o CPC determina que julguemos com base em casos pilotos ou padrões (teses antecipadas), desprezando a concretude posta no e para o caso, há de termos a mínima atenção às particularidades em conflito… se isso for desprezível, voltemos ao Big Bang!

Mas o que causa espanto no dispositivo é o seu parágrafo primeiro que diz com todas as letras que, na motivação – preferimos fundamentação –, o julgador deverá demonstrar a necessidade e a adequação de sua decisão (medida imposta) ou indicar, em caso de nulidade do ato lato sensu (qualquer que seja), possíveis alternativas.

O que seria no bojo de uma decisão judicial que invalida um ato – contrato, ajuste, processo ou norma administrativa – o órgão julgador indicar “possíveis alternativas”?

Pensamos que isso seja uma flagrante licença para, diante da hipótese em discussão, o Poder Judiciário substituir-se ao ato anulado, projetando uma solução não prevista, legislativa ou administrativamente, como direito posto.

Que diabos seria o julgador indicar alternativas…

Mais que qualquer espécie de consequencialismo, isso beira a própria usurpação das competências dos Poderes da República claramente estabelecidas no artigo 2º da Constituição Federal, pois nem mesmo de forma atípica caberá ao Poder Judiciário – salvo, e muito bem salvo, a hipótese de controle abstrato de fiscalização da constitucionalidade cujo órgão do Poder Judiciário é única e exclusivamente o STF – indicar ou prescrever alternativas jurídicas para a querela inexistente até então no plano legislativo, seja ela uma “medida alternativa”, seja a substitutiva da “invalidade”.

Não é novidade a ideia de “adequação”, “necessidade” e “proporcionalidade” em textos normativos brasileiros, repristinando uma ideia absolutamente equivocada da teoria da ponderação de Robert Alexy, usualmente preconizada por setores da doutrina e no STF e STJ. Nossa ponderação nem de longe é a idealizada pelo jurista alemão.

No Brasil, além da deturpação na compreensão-aplicação da teoria, a qual, diga-se de passagem, prevê a ponderação de princípios constitucionais expressos em colisão, nós ainda estabelecemos – como no artigo 489, § 2º, do CPC – uma técnica anti-fundamentação, um álibi ao arbítrio, ao permitir a ponderação de regras, o que é inimaginável por Alexy.

Já no que toca ao artigo 21 da LINDB, não obstante a justificativa dada pelos autores do anteprojeto[5], o dispositivo instiga o ativismo em sua versão mais nefasta ao direito, ou seja, o arbítrio calcado fora de qualquer parâmetro prévio legislativo ou mesmo em texto normativo próprio da atividade exercida precipuamente pelo Poder Executivo.

Ora, como controlar uma decisão que, fruto de uma ponderação capenga, indica, após a pronuncia de invalidade de um ato (lato sensu), “de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”. Mais que isso: a decisão tem a obrigatoriedade de “quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime”.

Mas o ato “ultrapassado” de fundamentar as decisões judiciais, nosso conhecido e ao mesmo tempo ignorado, o velho de guerra, artigo 93, IX, da CF, por certo pautado no direito posto e no ordenamento vigente, já não determina – detalhe: em todos os casos; jamais em hipóteses discricionárias incontroláveis de e “quando for o caso” – que ao decidir o julgador deve exaustivamente expor as razões pelas quais o pronunciamento deve ser tal e qual?

Isso é uma decorrência inexorável do Estado Democrático de Direito que não pode e em nenhuma hipótese poderá ser flexibilizada!

Pronunciada a invalidade ou nulidade de um ato em geral, pode o julgador sponte propria indicar, de acordo como seu convencimento, outro efeito jurídico que não decorrente logica e necessariamente do ordenamento?

Se isso for possível estaremos convocando os julgadores a legislar! Não pode haver consequencialismo decisório, pois no Estado Constitucional e Democrático não há nada acima ou além do Direito posto, negando-se, por óbvio, que alguma autoridade, seja ela administrativa ou judicial, diga qualquer coisa sobre o Direito.

Com essa ânsia legislativa de “não legislar”, de uma séria de leis e dispositivos de conteúdo “aberto”, com amplos poderes ao julgador, tanto na esfera administrativa, mas sobretudo na judicial, calcada na teoria da ponderação tropicalizadamente deturpada, a pergunta final é: quem controlará tudo isso? Os mesmos que estimulam esse ativismo ou os que dele se aproveitam?

 

 


[1] Essa técnica legislativa é encontrada basicamente em todos os países que possuem algum tipo de legislação, por menor que seja. É muito claro que o Poder encarregado de produzir a legislação não pode antecipadamente prever todas as hipóteses aplicação, motivo pelo qual há essa produção de normas de textura aberta.

[2] Há uma razão para isso. É incontroverso a afirmação de que a ninguém se pode atribuir a função de prever todas as hipóteses de aplicação do direito. No entanto, a fórmula explosiva pela qual estamos ministrando nosso direito contribui em muito para o ativismo judicial brasileiro. Ora, se de um lado o legislador deixou de prescrever texto pormenorizados e casuísticos (fruto de nossa experiência cultural) e de outro lado, conferiu licença ao agigantamento do Poder Judiciário, tido como último bastião da lei lato sensu, disso resulta essa falta de controle que se instalou no seio do gênero ativismo, cuja espécie a cada dia fica mais evidente: o arbítrio judicial.

Portanto, a exclusividade na produção da legislação de conteúdo e resultado abertos aliado ao fortalecimento dos poderes judiciais, sem limites legais ou controles/constrangimentos realizados pela doutrina, realçam o papel dessas cortes superiores no Brasil, inclusive, dando a elas a tarefa de vincular (pela autoridade hierárquica sobre os demais órgãos) seus pronunciamentos por meio de “teses numéricas”, inclusive, despidas do necessário suporte concreto, passando a falsa ideia de que podemos lidar com teses sem a existência de casos.

[3] Art. 2o A ementa do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942, passa a vigorar com a seguinte redação: “Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro”.

[4] Aqui uma advertência: principiológica não significa que possamos criar princípios ao bem prazer do interprete e sem qualquer liame com regras jurídicas postas no ordenamento. Não confundamos, portanto, princípios constitucionais expressos com panprincipiologismo de ocasião. Não resistimos em registrar o mais novo exemplar essa estirpe. Com vocês, o “princípio da identidade do teor material de todos os arquivos anexados”. Fantástico não!

[5] “(…) exige o exercício responsável da função judicante do agente estatal. Invalidar atos, contratos, processos configura atividade altamente relevante, que importa em consequências imediatas a bens e direitos alheios. Decisões irresponsáveis que desconsiderem situações juridicamente constituídas e possíveis consequências aos envolvidos são incompatíveis com o Direito. É justamente por isso que o projeto busca garantir que o julgador (nas esferas administrativa, controladora e judicial), ao invalidar atos, contratos, processos e demais instrumentos, indique, de modo expresso, as consequências jurídicas e administrativas decorrentes de sua decisão” (https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/parecer-juristas-rebatem-criticas-1.pdf. Acesso 25/5/2018).

Autores

  • é advogado da União, pós-doutorando em Direito pela Unisinos, doutor em Direito pela PUC-SP e membro da ABDPro e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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