Opinião

Ideia de uma carreira única na polícia judiciária é utopia

Autor

  • Erick da Rocha Spiegel Sallum

    é delegado da Polícia Civil (DF) ex-agente da Polícia Federal pós-graduado em Direito Constitucional Direito Processual Penal e Direito Penal e diretor da Divisão de Repressão a Roubo e Furtos de Veículos.

16 de junho de 2018, 6h23

A segurança pública é temática que tem dominado o noticiário jornalístico da atualidade. A incapacidade de formulação de políticas públicas efetivas nessa área e os consequentes alarmantes índices de criminalidade têm trazido ao debate a necessidade de reformulação do modelo brasileiro. Entre as milagrosas sugestões de “melhoria” tem-se a ideia da implantação da carreira única no âmbito da polícia judiciária. Essa formulação se baseia num modelo onde a carreira policial possuiria entrada única com posteriores progressões aos níveis mais altos, sem que haja, contudo, especializações em cargos distintos. Alegam seus defensores que se trataria de um modelo inclusive adotado pelo FBI e, portanto, razão suficiente para ser considerado um paradigma a ser copiado.

O tema é complexo, pois envolve interesses que vão bem além da suposta busca de eficiência. Nesse sentido, a própria discussão do tema por um subscritor que faz parte do atual sistema gera, por si só, olhares de desconfiança. Afinal, quais garantias o leitor tem sobre a imparcialidade de quaisquer dos pontos de vista?

Sendo assim, para além de quem fala, é importante que o leitor analise a coerência lógica dos argumentos lançados, buscando aferir a sua verdade. Antes que as pedras venham de todos os lados, é bom também destacar que a pretensão aqui, portanto, não é a defesa corporativista deste ou daquele posicionamento, mas, sim, uma tentativa de exploração de hipóteses com vistas ao aprofundamento desse debate sem qualquer pretensão de exaurimento.

Feita essa pequena digressão e retornando o foco ao tema, é necessário registrar que a teoria geral da administração há muito estabelece a estratificação funcional como fundamental à eficiência do fluxo de trabalho. Vale dizer: onde todos fazem tudo, em verdade, ninguém faz nada. Assim, a modelagem organizacional em níveis verticais e horizontais é parte essencial da otimização dos recursos e ganho de efetividade. E isto se sabe muito antes de Taylor e Fayol[1]. Afinal, as organizações militares desde a idade antiga já adotavam esse modelo, cientes de que é o melhor gerador de resultados.

A administração pública segue essa concepção e busca se organizar em níveis hierárquicos. Em nome da legalidade estrita, essa organização é estruturada a partir da criação de cargos, que são estruturados em carreiras, recebendo atribuições fixadas em lei.

De qualquer sorte, não se pode negar, por lealdade argumentativa, que, por definição, “chefe” é uma criatura chata, e disso não se tem qualquer dúvida. Contudo, como mencionado, trata-se de um mal necessário. Pelo menos, na administração pública, a chefia é disponível igualitariamente a todos, por meio de concurso público. No lugar do socialismo, temos a meritocracia. A cada um segundo o seu esforço.

Nada impede, contudo, que existam boçais esforçados e, por consequência, acabem galgando postos de comando, o que, há de se reconhecer, é um inconveniente embutido nesse modelo. Todavia, é o preço que se paga pela impessoalidade. O concurso público é o único instrumento capaz de selecionar de maneira isonômica e imparcial, contudo, como dito, possui efeitos colaterais.

Dessa forma, na Polícia Civil, o cargo dirigente fixado por lei é o delegado. No mesmo sentido, na Polícia Militar são os oficiais, no Judiciário são os magistrados, no Ministério Público são os promotores, na Defensoria Pública são os defensores etc.

Percebe-se, portanto, que a atribuição da chefia a um determinado cargo não é exclusividade da Polícia Civil. Em verdade, como explicitado, é um modelo organizacional amplamente adotado em outros órgãos. Nesse sentido, absolutamente todos os argumentos que supostamente fundamentam a adoção da carreira única na Polícia Civil servem também para embasar uma eventual alteração em todas as demais carreiras públicas. Não seria melhor um indivíduo entrar como analista judiciário e ir sendo promovido até a carreira de magistrado? Não faria mais sentido haver apenas um concurso para o Ministério Público e, a partir dessa carreira única, haver uma progressão interna até atingir-se o nível mais alto de promotor? E nas polícias militares, nada mais justo do que se ingressar como praça para somente após anos de experiência chegar-se ao comando, ou não? Afinal, se é considerado absurdo uma pessoa ser aprovada num concurso e passar a comandar agentes de polícia com mais experiência, por que essa mesma lógica não vale para todas as carreiras em que o poder obtido após a nomeação é ainda maior?

Não se pode negar, todavia, que essa estruturação hierarquizada gera efeitos indesejados, entre eles conflitos de poder, de atribuições e, principalmente, de caráter salarial. Todavia, a solução dessas divergências não se encontra numa mágica unificação de carreiras.

Isso porque deve se ter em mente que, embora teoricamente a unificação das carreiras possa gerar a diminuição de algumas divergência, ao final, gerarão outros tão intensos quanto os atuais.

Como dito, a “chefia” é inexoravelmente necessária à organização administrativa de qualquer corporação. Logo, mesmo numa eventual unificação de carreiras, haverá necessidade de estabelecimento de “chefias”, assim como divisão de tarefas e, a partir daí, os mesmos conflitos hoje existentes surgirão.

Há ainda que se considerar outro efeito colateral da pretendida carreira única. Especialmente na polícia judiciária, em decorrência da necessidade de especialização jurídica para o desempenho de algumas funções, uma eventual carreira única formalmente estabelecida acabará gerando uma estratificação informal composta dos bacharéis em Direito. E aqui vale uma análise mais detida sobre isso.

Embora parcela das vozes do debate defenda a desnecessidade de conhecimento jurídico para o desempenho da função policial, a verdade inafastável é bem o contrário. A polícia judiciária, além de desenvolver a função investigativa, atua como porta de entrada do sistema judicial ao formalizar as ocorrências e prisões em flagrante trazidas aos plantões policiais. Falar que é possível atuar de maneira adequada num plantão policial sem profundo conhecimento jurídico é o mesmo que falar que um leigo em medicina teria condições de lidar com o plantão de trauma em um hospital público no Brasil.

O fato objetivo é que a complexidade do sistema legal brasileiro demanda em determinadas funções policiais um avançado conhecimento jurídico. Não há como negar isso. A gama de análises que devem ser feitas e as consequências da tomada de decisão durante a atuação da polícia judiciária, principalmente no atendimento de plantão, são imensas e impactam diretamente no status libertatis dos cidadãos. Mesmo após a implantação do sistema das audiências de custódia, a Polícia Civil ainda funciona como a primeira garantidora da Justiça. Afinal, todos os dias, mais notadamente nas madrugadas dos finais de semana e feriados, é a Polícia Civil a primeira aferidora da legalidade do cerceamento da liberdade de terceiros.

Essa aferição demanda profundo conhecimento jurídico. A deliberação acerca da tipificação criminal adequada, a verificação da (in)existência de situação flagrancial, a escolha do procedimento correto para a formalização da ocorrência, a checagem da (in)legalidade das circunstâncias da prisão, das “provas” produzidas, do uso de algemas, (des)necessidade de apreensão de bens, (in)concessão de fiança, prerrogativas e imunidades de determinadas pessoas, concurso entre crimes, cumulação de penas, além de uma série de outras questões, demandam do policial profundo conhecimento não só da legislação, mas da jurisprudência. Embora o Brasil siga o modelo da civil law, há um notório fortalecimento dos precedentes judiciais, impondo, portanto, a necessidade de um acompanhamento atualizado dos entendimentos dos tribunais superiores.

Além disso, é importante destacar que o Brasil adotou o modelo de investigação preliminar policial. Sendo assim, a Polícia Civil possui protagonismo na condução da investigação, fato que demanda cautela redobrada da sua atuação. Num estado excessivamente garantista[2], qualquer ação fora dos limites legais poderá gerar nulidades e eventualmente a impossibilidade de condenação por erros cometidos ainda na fase investigatória.

Nesse sentido, havendo necessidade de conhecimento jurídico para o desenvolvimento proveitoso das funções de polícia judiciária, a carreira única geraria uma fossilização da instituição. Ou todos os policiais seriam obrigados a serem bacharéis em Direito, fato que engessaria a cultura institucional pela falta de outras formações acadêmicas; ou haveria uma separação interna informal, atribuindo aos policiais bacharéis em Direito funções específicas em decorrência dessa especialização e, mais uma vez, criando divisões internas.

No mesmo sentido, a falta de um concurso público específico para bacharéis em Direito, há longo prazo, afastaria os candidatos mais atualizados nesse ramo do conhecimento, pois eles passariam a buscar outros concursos. Após algum tempo, se observaria um enfraquecimento geral da instituição pela desqualificação na prestação de determinadas funções.

Justamente por todas essas peculiaridades também não se acha adequada a comparação com outras instituições, como a Polícia Rodoviária Federal. Lá, há uma carreira única, mas suas funções não demandam especialização acadêmica em determinado área de conhecimento.

A ideia da carreira única é uma utopia e, portanto, não suporta uma transposição ao mundo real. Assim como o socialismo, fundamenta-se em uma concepção romântica e bem-intencionada, mas que inexoravelmente se desnatura no confronto com a realidade ao não considerar uma série de variáveis de cunho pragmático. De fato, o socialismo fracassou por partir da premissa que todos devem ser iguais, quando, em verdade, o que devem ser iguais são as oportunidades, de forma que o sistema permita a cada um a satisfação de sua individualidade até o limite da sua disposição ao sacrifício.

A percepção do concurso público como instrumento legitimador da “chefia” é uma visão libertadora, pois responsabiliza cada indivíduo pelas consequências de suas ações, estabelecendo um regime de mérito e respeitabilidade (iuris tantum) do cargo que ocupam. Se sou o que me fiz ser, não tenho legitimidade para questionar o que os outros são, quando poderia, se me esforçasse, estar no mesmo local.

Reconhece-se, em certa medida, que a igualdade de oportunidades pelo concurso público é um reducionismo que obviamente não retrata a complexidade do tema, mas serve, sim, para revelar que, por trás de alguns pseudoargumentos, o que se tem é, em verdade, puro recalque, e aí só psicanálise, nem carreira única tampouco Lexotan resolvem.

O que se tenta demonstrar é que um pós-doutor em física nuclear que espontaneamente prestou concurso e ocupa o cargo de escrivão não possui legitimidade para responsabilizar a administração por se achar subaproveitado. A responsabilidade por essas eventuais frustrações não pode ser terceirizada. Afinal, a culpa pela suposta má alocação desse indivíduo no serviço público é exclusivamente sua. E isso é bom que se tenha claro.

Em todo esse contexto, entretanto, é necessário também que não se distorçam as linhas gerais de pensamento ora expostas. Logo, não se pode confundir hierarquização funcional com sistema moderno de vassalagem. A especialização de uma organização em cargos, a eventual hierarquia entre eles e os decorrentes consectários lógicos (comando, fiscalização, avocação, delegação, disciplina) são prerrogativas à bem do interesse público, e não trincheiras ao arbítrio de pseudocastas.

Ainda nessa seara, destaca-se que a instrumentalização voluntarista da normatização disciplinar com o propósito único de intimidação configura um desvirtuamento do princípio da autoridade.

Se determinada carreira possui por requisito a escolaridade superior, é importante que haja espaço para manifestação da carga crítica que cada um desses indivíduos possui. O ambiente dialógico é muito mais profícuo à construção de uma cultura organizacional estimulante. Assim, encontram-se equivocados aqueles que entendem ser necessário, para comandar, a pasteurização das vozes dissonantes e a transformação dos outros cargos em uma massa acrítica de oompa-loompas.

Por final, aos que pensam que o FBI segue o modelo da carreira única[3], sugere-se uma mera visita ao site dessa instituição. Em verdade, o FBI é composto de mais de 10 carreiras. A especialização das funções naquela agência policial e a divisão de tarefas são bem superiores às de órgãos assemelhados no Brasil.

Se o objetivo é buscar modelos para benchmarking, não é necessário ir tão longe, basta olhar para a iniciativa privada. Lá, há muito a ensinar ao funcionalismo público. Em nenhuma empresa no planeta existe carreira única. As corporações modernas são estratificadas em níveis de especialização extremos. Sem ruídos corporativistas, sedimentada na fria e objetiva produção de resultados, cada trabalhador em sua esfera de atribuições encontra-se subordinado a diversos graus de gerência em uma estrutura, muitas vezes, mais hierarquizada do que nos meios militares. No deserto da eficiência e eficácia, não há espaço para lamúrias, somente resultados.


[1] Considerados expoentes da administração clássica. No clássico Motion-Time Study, Taylor demonstrava a necessidade de racionalização dos procedimentos na fábrica para ganho de resultados.
[2] No sentido de um hipergarantismo focado exclusivamente nos direitos do réu, esquecendo-se dos direitos da sociedade, fato que a doutrina tem denominado garantismo hiperbólico monocular.
[3] http://adpf.org.br/adpf/admin/painelcontrole/materia/materia_portal.wsp?tmp.edt.materia_codigo=7546&wi.redirect=52OAVPNNNLA8LQ7DM5L0#.WwWFcEgvy70

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