Opinião

ADCs, a ministra Cármen e o paradoxo do discricionarismo — a solução sistêmica

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11 de junho de 2018, 11h15

Como sabemos, há três ADCs para serem pautadas pela presidente do STF, ministra Cármen Lúcia (43, 44 e 54). Uma delas, a mais recente (54), tem pedido de liminar pendente, passados quase 60 dias, tendo o ministro Marco Aurélio pedido a inclusão de pauta já no dia 19 de abril. Tudo depende da senhora presidente. Veja-se o perigo e o malefício do poder discricionário. Escrevo contra o poder discricionário há mais de 25 anos, com a mesma ênfase que o espanhol Tomás-Ramón Fernandez, para quem o juiz não tem discricionariedade nem na hora de selecionar a norma aplicável nem a de fixar seu concreto alcance e tampouco para eleger a versão dos fatos. Imagine-se o que diria o velho jurista espanhol acerca do poder discricionário de incluir processos em pauta tratando de direitos fundamentais.

Fiquei pensando: existe um modo de barrar (limitar) esse poder discricionário que dispõe o/a presidente do STF? Estaríamos em face de uma aporia — um dilema sem saída? Mas, na democracia, o Direito é compatível com aporias? Afinal, o Direito não deve funcionar no código lícito-ilícito? Portanto, deve ou não deve haver um remédio contra poderes ilimitados? Bom, hermeneuticamente a resposta é simples. Basta ler a Constituição e compreender que o regimento interno do STF é incompatível com o Estado Democrático de Direito. Isto é, o poder discricionário para escolher pauta somente é constitucional se houver um modo de recorrer ao Plenário. Caso contrário, há uma autofagia no sistema.

Rios de tinta e milhares de caracteres já foram teclados sobre as ADCs 43 e 44. Face à falta de inclusão em pauta do mérito dessas duas ações, foi impetrada uma nova, a 54, para, contingencialmente, instar um pronunciamento da suprema corte acerca da necessidade de dizer não apenas qual a efetiva posição sobre a presunção da inocência, mas também para dirimir a controvérsia sobre os dois votos (ministros Barroso e Fux) que, embora minoritários, balizam a tese “decisão de segundo grau prende por si”, a qual provocou, somente em São Paulo, a prisão de mais de 13 mil pessoas depois da virada jurisprudencial. Daí a minha pergunta, para além da hermenêutica com a qual trabalho: de que modo alguma outra matriz teórica poderia explicar essa aporia do regimento interno do STF?

Vamos lá, então. Farei uma apropriação “livre e hermenêutica” — se me permitem a tentativa de demonstrar a possibilidade deste problema vir a ter uma resposta adequada ao Estado Democrático de Direito — da teoria dos sistemas ou de parte dela[1]. O Direito compõe um subsistema do sistema social, para usar uma linguagem própria do sociólogo que revolucionou a relação Direito-sociedade: Niklas Luhmann. O sistema tem a função de dar imunidade ao operador, operando como uma blindagem. Ou seja, uma decisão importante não pode depender apenas de um agente, devendo ser resultado de um sistema de tomada de decisões, que tem nos colegiados e na própria estrutura do Direito o modo de proceder essa imunização. Digamos, assim, que a visão sistêmica é antissolipsista.

Uma análise sistêmica serve também — na minha leitura sobre os tipos ideais de dominação — para reduzir o risco de um retorno a um modo de dominação carismático (weberianamente falando), em que as relações se davam ex parte principis e não ex parte princípio, modo de dominação legal racional típico da modernidade. Isto é: o modelo carismático é pré-moderno, ao avesso do modelo ex parte princípio, no qual eu obedeço porque existe um princípio, uma lei, uma Constituição (uma estrutura, portanto) que limita as ordens do “príncipe” (você pode substituir por juiz ou tribunal).

Uma análise sistêmica busca, assim, brecar-interromper a tendência expansiva autodestrutiva ínsita ao poder normativo de mando. Ele não é absoluto ou infinito. Quanto mais o poder de mando aumenta, mais ele se expande, correndo o risco de criar um paradoxo: se alguém manda e somente ele mesmo decide acerca dos limites desse poder, inexoravelmente esse poder criará uma aporia, algo como consta na preocupação de Hans Albert e o seu Trilema de Münschausen: a exigência da necessidade de uma parada artificial na cadeia de fundamento, para evitar que se pergunte, infinitamente, pelo fundamento de validade.

Mutatis mutandis, é o que acontece com o Supremo Tribunal Federal com seu poder de dizer por último o que é o Direito. Isso é ínsito às democracias contemporâneas. Alguém vai ter de dizer por último o sentido da lei (há exceções no plano dos diálogos institucionais, valendo ler Jerome Waldron). No entanto, há, infelizmente, situações que não dependem da “estrutura STF”, mas, sim, do exclusivo poder discricionário da Presidência do tribunal (algo que nos remete ao modo de dominação carismático), nas hipóteses em que este detém poder sem limitações e irrecorrível acerca de um ato que deva ser tomado.

Ora, se a ação declaratória de constitucionalidade tem a função de (r)estabelecer a estabilidade do sistema face às incertezas provocadas no plano da aplicação de uma lei, o código lícito-ilícito do Direito deve dar a resposta imediata, evitando a irritação do subsistema Direito, com o perigo da expansão nos demais subsistemas. Mas, se essa resposta, positiva ou negativa, depende de um ato personalíssimo que não é tomado no tempo devido, a irritação sistêmica tende a aumentar. É como se o funcionamento de uma usina nuclear que fornece energia para uma cidade dependesse apenas de uma pessoa, e não de uma estrutura. Neste caso, a falta de imunização contra o personalismo pode fazer com que a cidade corra o constante risco de vazamentos e até mesmo de sua destruição, porque dependerá de um ato ex parte príncipis.

Como fazer para que, no subsistema Direito, seja possível reclamar da reclamação (ou seja, reclamar contra o príncipe) se o próprio Direito (regimento interno e Lei 9.868) não possui o mecanismo de acesso? Paradoxalmente, para retomar o código lícito-ilícito, se uma ADC (pode ser qualquer writ) não é colocada em pauta porque esta depende de um poder discricionário — no caso, mais do que discricionário, ilimitado — e o Direito não contém o mecanismo para fazer valer a inclusão em pauta (que é condição de possibilidade do julgamento das ADCs), resta uma parada, não artificial, para romper o impasse. Essa parada, embora corra o risco de tautologia, pode representar um input de demanda do subsistema político e moral em relação ao subsistema jurídico. Como se dá essa parada? Com o ingresso de uma ADPF contra a negativa material de colocar ADC em pauta.

É isso. Uma ADPF contra a negativa de julgamento de ADCs. O próprio preceito que dá direito a discutir a (in)constitucionalidade de uma lei é, também ele, um preceito fundamental. Além dessa violação intrínseca, está-se diante da violação de outros preceitos fundamentais, como o devido processo legal, o princípio republicano, a igualdade (afinal, nesse ínterim, outras ações que não tratam de direitos fundamentais — como uma que envolve Direito Tributário-Bancário — foram pautadas, e a ADC 54, não), o acesso à Justiça, o direito ao prazo razoável no julgamento de direito fundamental e quiçá ainda mais outros preceitos. Logo, arriscaria a dizer que estamos diante de uma “meta-condição de sentido sistêmico”, como único modo de contornar/solucionar uma aporia representada pelo fato de não existir mecanismos, internos à estrutura, que obriguem uma autoridade a realizar um ato de ofício. Uma ADPF terá a função de reduzir a indeterminação que está gerando essa falta de colocação em pauta das ADCs, as quais, julgadas, terão a função de reduzir a complexidade do subsistema jurídico, com reflexos nos demais subsistemas.

Paradoxalmente (o uso da palavra não é gratuito), simples (ou complexo) assim.


[1] Registro: a Unisinos é um programa de pós-graduação nota 6 pelo terceiro quatriênio seguido, nota essa a mais alta da pós-graduação brasileira (junto com outros sete programas). Têm duas linhas-matrizes mestras: hermenêutica (com a qual trabalho desde a fundação do programa, em 1997) e a teoria dos sistemas, que é a outra linha trabalhada pelo professor Leonel Severo Rocha — a quem rendo minhas homenagens. As pesquisas desenvolvidas na Unisinos vêm ocupando dia a dia importantes espaços na pesquisa brasileira. Daí a minha pergunta, para além da hermenêutica: de que modo essa segunda matriz explicaria essa aporia do regimento interno do STF? Este texto busca trilhar esse espinhoso caminho.

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