É preciso desfazer imagem eficientista do juiz como agente regulador
13 de janeiro de 2018, 7h00

No plano do Direito do Estado, nada impede que se atribua o dever de eficiência às organizações administrativas, legislativas e jurisdicionais. No Brasil, porém, a CF/1988 se cinge às administrativas (artigo 37, caput). Isso não significa que organizações legislativas e jurisdicionais estejam fadadas à ineficiência: pode a lei imputar-lhes o aludido dever. No caso das organizações jurisdicionais, por exemplo, pode a lei imputar-lhes os deveres de aproveitamento [= julgamento do maior número de feitos com o mínimo de recursos humanos e materiais] e de rendimento [= alcance das metas de julgamento fixadas por órgãos de planejamento estratégico]. Decerto isso exigiria um novo juiz (o managerial judge), com vocações e capacitações incomuns. Surgiriam em consequência, ao menos, três necessidades institucionais para o Judiciário: concursos de magistratura capazes de detectar lideranças gerenciais; cursos regulares e obrigatórios de formação e aperfeiçoamento para a capacitação de juízes em liderança motivacional, técnicas de reunião etc.; estruturação de um staff assessorial, sob a supervisão do juiz, para a redação de minutas decisórias e a pesquisa de doutrina e jurisprudência.
No entanto, da eficiência dos órgãos jurisdicionais não se pode derivar uma "eficiência do processo". A eficiência é imputável sempre à organização, não ao procedimento que a controla. Logo, a rigor, "eficiência processual" é non sense. Ainda que assim não seja, se se tomar eficiência como "capacidade de consecução de metas, objetivos ou finalidades", o processo (o "devido processo legal") será tanto mais eficiente quanto mais contiver o arbítrio do Estado-juiz; no final das contas, essa é a sua missão constitucional como garantia de liberdade. Por isso, eficiência jurisdicional não implica maleabilidade procedimental per officium iudicis. Eficiência é tema de direito jurisdicional (que regula o poder), não de direito processual (que regula a respectiva garantia). Isso significa que, a pretexto de otimizar a sua produção decisória, o juiz não pode imprimir unilateralmente supressões ou modificações ao procedimento previsto em lei. Somente as partes podem fazê-lo mediante negócio processual (CPC, artigo 190), visto que a elas serve o processo e, portanto, o procedimento que o corporifica. Flexibilização procedimental pelo juiz caracteriza usurpação de competência legislativa: cabe ao juiz apenas seguir o procedimento definido in abstrato na lei, não criar in concreto procedimentos a seu talante.
Procedimento é produto de fábrica legislativa, não manufatura de artesanato judicial. Compete ao legislador definir o proceder do juiz e das partes, não ao juiz definir, apesar das partes, o proceder dele e delas. O iudicare e o procedere se regem pela lei e só por ela. O contrajurisdicional não pode ser regulado pelo jurisdicional, sob pena de se tornar pró-jurisdicional. Na verdade, é regulado pelo legislativo, de onde emana the general will of the people. O poder emana do povo, não dos juízes. O povo, por meio dos seus representantes eleitos democraticamente, regula a contrajurisdicionalidade. Isso mostra que a flexibilização procedimental ex officio é, em última análise, um atentado à própria democracia. Por essa razão, é desacertado o Enunciado 35 da Enfam ("Além das situações em que a flexibilização do procedimento é autorizada pelo artigo 139, VI, do CPC/2015, pode o juiz, de ofício, preservada a previsibilidade do rito, adaptá-lo às especificidades da causa, observadas as garantias fundamentais do processo").
Como se não bastasse, desestruturando-se o arranjo procedimental, pode-se prejudicar a função contrajurisdicional do processo. A força da macrogarantia constitucional processual depende da correta arrumação das microgarantias infraconstitucionais procedimentais. O vigor do constituído depende de uma disposição ótima entre os constituintes. Daí o risco de que, flexibilizando o procedimento, o juiz enfraqueça in causa sua a garantia contra ele instituída. Permitir que o juiz interfira no procedimento é permitir que o limitado afrouxe o limitante. É fazer o poder jurisdicional um pouco mais incontrastável (e um pouco menos republicano, pois).
Inúmeras garantias individuais têm sido ultimamente "ressignificadas" [rectius: mutiladas] à luz do princípio da eficiência. É preciso barrar essa onda neo-autoritária, porém. Cânones de eficiência estatal não restringem garantias individuais; decididamente, são garantias individuais que restringem cânones de eficiência estatal. São as instituições de garantia que "ressignificam" as instituições de poder, não o contrário. É o procedimento que limita os arroubos da eficiência jurisdicional, não a eficiência jurisdicional que otimiza o procedimento como se fosse ele um lego desmontável no formato A e remontável no formato B. Imperativos de aproveitamento e rendimento no serviço público não justificam a debilitação dos cidadãos. Assim sendo, a eficiência da empresa jurisdicional não se pode fazer às custas da integridade procedimental, que escuda os jurisdicionados. Flexibilização procedimental oficiosa é sinônimo de lesão procedimental e, por conseguinte, de afronta à garantia individual contrajurisdicional primeira, que é o processo (o devido processo legal a que alude o artigo 5º, LIV, da CF). Que se logre a eficiência jurisdicional mediante, por exemplo, planejamento estratégico, governança judiciária, fixação e monitoração de metas de produtividade, capacitação gerencial de magistrados, implantação de boas práticas cartorárias, gestão computacional de feitos, calendarizações negociadas, despachos inteligentes, especialização de varas e turmas julgadoras. Contudo, que os juízes respeitem o procedimento arquitetado constitucionalmente na lei, salvo se as partes consentirem com a flexibilização. Isso porque, para as partes, o procedimento é plástico; para o juiz, rígido. Afinal, o processo é coisa para as partes (como quer o garantismo processual); não "das" partes (como quer uma teoria anárquico-esportiva do processo); tampouco "do" ou "para" o juiz (como quer o instrumentalismo processual).
É necessário desfazer a imagem eficientista do juiz como "agente regulador". As partes não atuam sob diretrizes fixadas pelo juiz. O procedimento não se regra por dupla normatividade, uma composta de leis [marco regulatório originário], outra de resoluções judiciais criativas [marco regulatório derivado]. Enfim, o procedimento não se arma segundo a lei [sub legem] e também à margem dela [præter legem]. Não é ejetado da dupla matriz legislativo-jurisdicional. Não há "devido processo legal+jurisdicional", mas apenas "devido processo legal". Só a lei disciplina o procedimento. Logo, o juiz não cria marcos regulatórios, mas garante às partes os já fixados em lei. Nesse sentido, o juiz não é um agente regulador, mas garantidor: garante a realização do procedimento legal nas diferentes ocorrências contingentes. Nada mais do que isso.
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