Opinião

E o que seria a discricionariedade transparente do ministro Roberto Barroso?

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26 de fevereiro de 2018, 18h05

Spacca
Quando o professor Barroso escreve, sempre leio. É uma figura elegante e agradável ao vivo e no papel. E possui uma das grandes virtudes dos homens que contribuem para o discurso público: ele é claro, mesmo quando está claramente errado – coisa que Dworkin disse, com justiça, a respeito de Hart[1]. Vou além: todo mundo conhece a minha crítica ao ativismo judicial, mesmo quando o avanço sobre as prerrogativas dos demais atores é para fazer o bem. Não compro a premissa de que cabe ao Poder Judiciário ser, aqui e acolá, iluminista. Mas, se comprasse, seria difícil encontrar outra pessoa, que não o ministro Roberto Barroso, mais qualificada para exercê-lo.

Dito isso, falemos de divergências. Centro-me na crítica que o ministro Roberto Barroso fez não especificamente ao texto de Conrado Hübner, mas ao conservadorismo em matéria constitucional, que acaba me atingindo e interessando por, digamos, arrastamento. Isso. Uma crítica por arrastamento. Atirou em um e não me errou também.

Assim, primeira coisa: o que são critérios discricionários, mas transparentes? Barroso sustenta que o Supremo Tribunal Federal deve escolher os recursos extraordinários que lhe cabe julgar, e sugere que não selecione os que não tiver capacidade de julgar em até um ano. E se o caso não for escolhido? Bem, aí, transita em julgado. Bingo. Quais os critérios para essa seleção? Barroso não os explicita, mas tranquiliza a malta: os critérios serão discricionários, mas transparentes. Suspiro de alívio.

Sempre que alguém fala em discricionariedade judicial, ou que invoca aquela máxima de que “discricionariedade é diferente de arbitrariedade!”, como se isso não fosse uma distinção sem diferença, sou tomado por um profundo tédio. Já escrevi muito – e continuo escrevendo – sobre o debate Hart v Dworkin. Ali, a discricionariedade (em sentido forte) é colocada no seu devido lugar. Discricionariedade existe onde existem escolhas. Mas decidir não é escolher. E quando se trata do Império do Direito, de direitos e deveres, a discricionariedade fica desajeitada.

Ou bem há critérios, ou bem há discricionariedade. Se há critérios, a melhor interpretação possível destes, à luz da integridade do Direito, condiciona a decisão. Se há critérios a serem observados, há decisão — e não escolha. Se há decisão, há controle intersubjetivo. Se há escolha, então não há erro: quem escolhe sempre acerta. Mesmo quando erra – se é que me faço entender.

De que adianta ao cidadão, cuja tutela de direitos está submetida a uma escolha da autoridade, a garantia (garantia?) da transparência? Olha, você foi condenado sem a observância do devido processo legal. Em tese, você pode recorrer ao STF. Mas sabe o que é? Eu não consigo julgar a sua causa em um ano. E há outros casos mais relevantes – convenha, a sua liberdade só importa mesmo a você e a meia dúzia de amigos que você talvez tenha. Então, foi mal, parceiro. Estou sendo sincero. Transparente. Mas escolhi julgar outro caso. Não o seu. Portanto, discricionariedade e transparência são antitéticos. Como posso controlar algo que, em si, depende de um ato discricionário? Garantir transparência em um ato discricionário é colocar buzina em avião. Qual a serventia?

Segundo, falo agora da crítica por arrastamento. Como assim, ideias conservadoras a respeito do papel a ser exercido e do lugar institucional a ser ocupado pelo Poder Judiciário estão “fora de época e de lugar”?

Barroso associa seu iluminismo a decisões célebres da jurisprudência internacional, como a decisão que pôs fim à segregação racial nas escolas públicas dos EUA. Mas calma lá: não dá para confundir conservadorismo com originalismo.

O que Barroso está dizendo é que, para não sermos conservadores, temos que avançar sobre a Constituição. Como se cumprir a Constituição à risca fosse coisa ruim. Como se a legalidade constitucional (e conclamo Elias Diaz) fosse algo retrógado. Se ser conservador é cumprir a Constituição, assumo a posição. Eu e uma parcela de constitucionalistas brasileiros, que temos o mau vezo de ficar falando do texto constitucional. Quando eu era procurador de Justiça, no órgão Especial do Colégio de Procuradores ouvi várias vezes a frase “lá vem o Lenio Streck de novo falando de Constituição”. Portanto, no que isso tem a ver com originalismos ou coisas “conservadoras”? Eis o ponto: Barroso confunde defender o texto constitucional (falo, aqui, de limites semântico-hermenêuticos) com posturas originalistas.

Claro que sabemos por que o ministro Roberto Barroso diz isso. Primeiro, porque o professor Luís Roberto Barroso ainda acha que o Direito se divide entre positivistas (aqueles que defendem a legalidade, como se defender a legalidade fosse igual a positivismo) e pós-positivistas (ele se considera um). Esse pós-positivismo seria algo do tipo “juiz boca da lei morreu” e “agora estamos na era do vanguardismo dos juízes que falam dos valores”. Essa posição equivocada do professor induz o ministro a achar que, no Supremo Tribunal Federal, o bom ministro é aquele quem diz da Constituição aquilo que ele – intérprete de vanguarda – diz que é. Só que isso nada mais é do que passar de uma falsa dicotomia (positivismo exegético-pós-positivismo, reduzindo o positivismo a era pré-Kelsen e pré-Hart)[2] para um outro tipo de positivismo: o fático. Sim, o realismo, pelo qual o Direito é aquilo que o Judiciário diz que é, não deixa de ser uma forma de positivismo. Diríamos que é empirismo na veia.

Consequência: toda vez que para o ministro Roberto Barroso os fatos se apresentarem potentes, soçobra o texto Constitucional. Os “valores” valem mais do que a força normativa do texto constitucional. Quais “valores”? Aqueles que, de forma discricionária, o Judiciário disser que é. Claro: por isso exsurge a questão de vanguarda iluminista. Se o ministro compreende bem o clamor das ruas, ele mesmo fará as correções. Simples assim. Daí a comparação que ele quis fazer com o seu agir e a Corte Warren. Só que há bem claras diferenças. A Constituição americana não é analítica. E se tratava de segregação racial. Por aqui, estamos tratando de liberdades públicas, como a presunção da inocência. E do acesso à Justiça. Portanto, não é bem assim.

O ministro Roberto Barroso refere, a favor de um pretenso iluminismo, não só o caso da segregação norte-americana, como o caso da África do Sul e um de Israel. Só que são constitucionalismos distintos. A pergunta é: essas decisões foram contrárias à Constituição? A da segregação dos EUA não foi contra a Constituição. Foi uma interpretação devida feita pela Corte Warren. Quem a considerou indevida foram os originalistas. Esse é o busílis da confusão entre “conservadorismo” (sic) e originalismo.

Numa palavra final, a fórmula de escolhas discricionária transparentes proposta pelo ministro Roberto Barroso — com a qual provavelmente o professor Luís Roberto Barroso não concordaria — parece com a ideia que circulou na Fifa há algum tempo. Diante da falta de gols, propuseram extinguir a barreira. À época, aproveitei e mandei um fax à Fifa para sugerir que proibissem que os goleiros tivessem mais de um metro e meio. Pronto. Os gols voltariam. E os goleiros baixinhos teriam emprego garantido. A pergunta que fica é: se a Fifa adotasse essa ideia, ainda estaríamos tratando de futebol? Mutatis, mutandis, se o STF adotar a tese da discricionariedade transparente do ministro Roberto Barroso, ainda estaremos tratando de Direito e do acesso à Justiça em uma democracia? Ou estaríamos tratando apenas da institucionalização de algo não democrático: o discricionarismo?

 


[1] Coisa que Hart, antes de Dworkin, dissera a respeito de Arthur Goodhart, seu antecessor como Professor de Jusrisprudence (He was wrong clearly, even when he was clearly wrong).

[2] Sempre lembrando: positivismo não é uma coisa ruim, por assim dizer. Já escrevi muito sobre isso. Por exemplo, vejam o meu texto “E a Professora me disse: você é um positivista”, publicado faz um bom tempo aqui no Conjur e em vários livros.

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