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Lei sobre vingança pornográfica é mais um aceno para Direito Penal simbólico

Autor

  • Pablo Domingues Ferreira de Castro

    é advogado criminalista doutorando pelo IDP (DF) mestre pela UFBA especialista pelo IBCCRIM pós-graduado pela UFBA professor de cursos de pós-graduação e coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.

22 de fevereiro de 2018, 17h30

Encontra-se para deliberação do plenário do Senado Federal o Projeto de Lei da Câmara 18 de 2017 – Projeto de Rose Leonel, que acabou alcunhado de criminalização da “vingança pornográfica”. Como tudo no Direito Penal, o tema é polêmico e atrai os olhares até dos mais desatentos. Mas, cabe, de logo, uma advertência: “Nem tudo que reluz é ouro”, já dizia o poeta Augusto Branco.

Segundo sua ementa, o projeto “inclui a comunicação no rol de direitos assegurados à mulher pela Lei Maria da Penha, bem como reconhece que a violação da sua intimidade consiste em uma das formas de violência doméstica e familiar; tipifica a exposição pública da intimidade sexual; e altera a Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e o Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).”

Basicamente, o Projeto de Lei traz três pontos de modificações na legislação brasileira: 1) que inclui a expressão “comunicação” no rol dos direitos previstos no artigo 3º da Lei Maria da Penha; 2) reconhece que a violação da sua intimidade consiste em uma das formas de violência doméstica e familiar, acrescentando o inciso VI ao art. 7º da Lei Maria da Penha; 3) tipifica a exposição pública da intimidade sexual, alterando o Código Penal para inserir um “novo” tipo (artigo 140-A), mais um dentre os crimes cuja persecução penal se dá através da ação privada.

Novamente, o Direito Penal se ocupando com áreas que não lhe são próprias e o legislador querendo imprimir ao cidadão uma sensação, falseada, de que o caos social será controlado, pois faz-se de determinada conduta algo reprovado ética ou moralmente que “agora é crime!”. Afigura-se um Direito Penal meramente “simbólico” (sobre este tema confira-se HIRECHE e FIGUEIREDO, 2015[1])

Primeira crítica: A inutilidade de uma expressão que nada agrega. Acrescer uma expressão “comunicação” no rol de direitos previstos na Lei Maria da Penha, com as licenças devidas, não incrementa nenhum eficientismo na aplicação da lei. Afinal, é de se indagar: se não houvesse essa expressão literalmente estampada no rol de direitos assegurados, a mulher não o poderia reivindicá-los? Ou melhor: Somente agora, que o vernáculo está taxativamente escrito na legislação, é que farão com que as mulheres sejam melhor protegidas contra violências domésticas ou de qualquer outra espécie? Lamentavelmente, a inserção da expressão nada mais é que dizer o óbvio. Todos esses direitos previstos nesta lei somente são assegurados porque há comunicação e nisso não há qualquer novidade.

Segunda crítica: a repetição do que já existia. A “violação da intimidade da mulher, entendida como a divulgação, por meio da internet ou outro meio de propagação de informações, de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, sem seu expresso consentimento” já é protegida pela legislação e, ao contrário do que se possam pensar, isto não reflete a criação de um novo crime, pois dado o seu descumprimento não decorre uma pena a ser aplicada. E nem seria necessário.

É que o próprio art. 7º da Lei Maria da Penha já prevê como formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: a violência física (que se entende como integridade ou saúde corporal); violência psicológica (que qualifica-se pelo dano emocional, diminuição de autoestima, constrangimento, humilhação, ridicularização; só para citar alguns); violência sexual (inclusive qualquer ação que limite o exercício desse direito); violência patrimonial e violência moral (entendidas aquelas que configurem calúnia, difamação ou injúria).

Portanto, ao que parece este novel inciso VI, que será inserido na sobredita lei, disse muito da mesma coisa: repetiu, com outros dizeres, o que a legislação previa, notadamente porque todas essas modalidades de violação e/ou agressão através de divulgação, seja pela internet ou outro meio, perpassam, necessariamente, pela ofensa psicológica ou moral da mulher, já previstas na própria lei.

Ou irá se negar que divulgar um vídeo íntimo, sem autorização da mulher, não lhe acarreta um assaque psíquico, constrangimento, humilhação, etc.? É mera repetição.

Terceira crítica: Um Direito Penal de mero simbolismo. Cria-se um tipo novo de “exposição pública da intimidade sexual” de modo completamente açodado e desnecessário. Diz-se isso porque as condutas previstas nesse recém gestado possível tipo penal há algum tempo vêm sendo entendidas pela doutrina e jurisprudência como injúria ou difamação.

Apenas à guisa de exemplo, tome-se o julgado abaixo pinçado:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. DIFAMAÇÃO E INJÚRIA. PRELIMINARES DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ E CERCEAMENTO DE DEFESA. REJEIÇÃO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DAS EXECUÇÕES. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PEREMPÇÃO. INVIABILIDADE. 1. O princípio da identidade física do juiz não é absoluto, razão pela qual, comprovado que o magistrado que presidiu a instrução criminal estava designado para exercício em outro juízo, não há nenhuma nulidade, motivo pelo qual se rejeita a preliminar de nulidade da sentença. 2. Se a ausência de oitiva de uma das testemunhas não foi arguida na fase processual adequada, opera-se a preclusão, não subsistindo a alegação de cerceamento de defesa. 3. Inviável o pedido de absolvição dos crimes de difamação e injúria quando a materialidade e a autoria encontram-se comprovadas pelo depoimento da ofendida, corroborado pelos demais elementos probatórios, sobretudo as declarações de sua genitora e das testemunhas, que confirmam que o apelante ofendeu-lhe a honra objetiva e subjetiva ao encaminhar e-mail com fotos e vídeos íntimos para terceiros. 4. O pedido de concessão da gratuidade da Justiça deve ser dirigido ao Juízo da Execução, o qual é competente para verificar a condição de hipossuficiência do condenado. 5. O prazo para a apresentação de contrarrazões de apelação é impróprio, razão pela qual não há falar em perempção da ação penal privada se a querelante ofertou-as mais de trinta dias após fazer carga dos autos para esse fim. 6. Apelação conhecida, preliminares rejeitadas e, no mérito, desprovida. (TJ-DF – APR: 20130111515407, Relator: JOÃO BATISTA TEIXEIRA, Data de Julgamento: 03/03/2016, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 07/03/2016 . Pág.: 230)

Destarte, não seria necessário se criar mais um tipo penal para se incluir mais uma nova conduta no rol dos crimes contra honra, que a doutrina já vem anunciando estar com os dias de vida contados (confira-se MARQUES e RIELLI)[2].

Aliás, muito embora não se possa afirmar que são leis que tutelem o mesmo bem jurídico (o “novo” tipo de injúria tutelará a honra), não se pode deixar de retratar que a Lei n.º 12.737 de 2012 (conhecida como Lei Carolina Dieckmann, que tutela a liberdade individual), e que inseriu o artigo 154-A no Código Penal, trouxe alterações no ordenamento jurídico penal, justamente para tornar punível o ato de quem “invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”.

Significa dizer, que o Direito Penal, não há muito tempo, cuidou de criminalizar conduta muito similar ao que agora se quer evitar: que alguém divulgue indevidamente conteúdo de terceiros, o que, por óbvio, abrange fotos íntimas e correlatos.

Todas essas circunstâncias, a bem da verdade, apontam para o que a doutrina, há considerável tempo, denominou de “Expansionismo do Direito Penal”. Cria-se para a sociedade uma ideia irreal de que com esses mecanismos legais estarão todos e, aqui especialmente as mulheres, mais protegidos. É um argumento de pura retórica jurídica e que jamais diminuirá e quiçá imporá limites definitivos à criminalidade.

Convida-se à leitura, para que se fique ainda mais claro, o que a Doutrina norte-americana denominou de Overcriminalization e aqui são valiosas as lições de Jesús-María Silva Sánchez[3]:

“Não é minha intenção levar a cabo nestas páginas uma análise de debate norte-americano sobre a Overcriminalization. Mas sim demonstrar, ainda que de forma sumária, a significativa coincidência de perspectivas que se produzem com relação ao meu particular enfoque do problema da Expansão. Com efeito, se constata, desde logo, que a Overcriminalization se caracteriza por um frenesi de novos delitos, incrementos de pena e diminuição de garantias. Como o próprio Husak indica, a Overcriminalization compreende dois fenômenos distintos: por um lado, o Overpunishment, entendido como incremento de penas de delitos pertencentes ao núcleo do Direito Penal; e, por outro, a Overcriminalization em sentido estrito, como se designa a extensão do Direito Penal a fatos que se considera que não deveriam ser nele integrados.”

Mais uma vez, busca-se o caminho inverso: elaboram-se novas normas incriminadoras; aumentam-se as penas; elevam-se o status de determinados delitos ao de “crimes hediondos”, como se punir fosse remediar a abrandar os males da sociedade, cuja origem é de cunho sociocultural. A criminalidade só aumenta. É preciso se fazer a pergunta correta para se ter a resposta adequada: Por que não tratar a sociedade, com educação, cultura, oportunidade de emprego, saúde pública, etc. ao invés de, simbolicamente, criarem-se “novos crimes”?. É que novas leis fazem crer que alguma providência está sendo tomada, ainda que de nenhum ou pouco resultado efetivo. O Brasil, como sempre, na contramão da evolução.


 


[1] HIRECHE, Gamil Föppel El; FIGUEIREDO, Rudá Santos. Feminicídio é medida simbólica com várias inconstitucionalidades. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mar-23/feminicidio-medida-simbolica-varias-inconstitucionalidades.

[2] MARQUES, Camila; RIELLI, Mariana. Denúncia à CIDH reacende discussão sobre crimes contra a honra. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mai-03/denuncia-cidh-reacende-discussao-crimes-honra

[3] SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva Sánchez. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3ª edição. Revista dos Tribunais: p. 220/221. São Paulo: 2013

Autores

  • é advogado e professor, pós-graduado pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Portugal. Mestrando em Direito Público, na linha de pesquisa de Direito Penal, pela Universidade Federal da Bahia, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito e membro do IBCCRIM.

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