Ideias do Milênio

"Crescimento econômico geralmente facilita tudo, até a política"

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12 de fevereiro de 2018, 14h15

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Entrevista concedida pelo cientista político Ian Bremmer ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinaturaGloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (3h30 e 7h30), às sextas (12h30) e aos sábados (5h30).

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O que vai acontecer no mundo em 2018? Nos últimos 10 anos, nunca foi tão alto o risco de uma grande crise internacional quanto agora. Quem diz isso é o cientista político Ian Bremmer, que a gente vai ouvir neste Milênio. O Ian é uma espécie de “geninho”, ele fundou uma consultoria chamada Grupo Eurasia, em inglês Eurasia Group, quando ele tinha 20 e poucos anos. Ele sacou que, além do risco para a economia, as empresas, os governos, precisam calcular qual é o risco geopolítico, o risco de crises internacionais. E ele se especializou nisso, e hoje ele tem escritórios no mundo inteiro, emprega milhares de cientistas políticos, inclusive no Brasil, para calcular qual é esse risco em cada país e no mundo. E no início de cada ano ele publica um relatório avaliando quais são os principais riscos. E é sobre isso que a gente vai conversar.

Jorge Pontual — Vamos começar falando de Trump. Quando falamos dos riscos para 2017, não sabíamos o que iria acontecer. Era imprevisível.
Ian Bremmer —
Tínhamos uma ideia.

Jorge Pontual — Após um ano de Trump, o que acha que o governo Trump significa em termos geopolíticos para o mundo?
Ian Bremmer —
Nós tínhamos uma ideia bem precisa. O maior risco para 2017 era a América independente. O maior risco que prevemos foi que a política 'America First' causaria muitos danos à estabilidade internacional e afastaria muitos países dos EUA. Isso aconteceu nos últimos 12 meses, e a grande diferença entre 2017 e 2018 é que em 2017 houve uma reação contra Trump, mas não necessariamente em direção a alguma coisa. Em 2018, temos um líder chinês preparado para tomar a dianteira e dizer: 'Nós somos um novo modelo'. Xi Jinping, o líder mais forte da China desde Mao, teve muito sucesso no 19º Congresso do Partido, consolidou seu poder, a China está maior, cresceu 7% em 2017, e ele está abordando os outros países e dizendo: 'Não gosta dos EUA?'. África: 'Trump chamou vocês de países de merda?'. Paquistão: 'Trump vai cortar sua ajuda?'. Coreia do Sul: 'Trump quer explodir sua península? Venham para nós'. E isso tem um impacto muito significativo na ordem mundial. Se me perguntar o que Trump fez em nível global em seu 1º ano, sua principal realização foi fornecer uma base enorme para os chineses operarem.

Jorge Pontual — Trump tornou o mundo mais perigoso, mais instável?
Ian Bremmer —
O mundo tem ficado mais perigoso e instável, esse mundo do G0, de recessão geopolítica, e o presidente Trump acelerou esse processo e também exacerbou os desafios. Se você analisar a falta de experiência de Trump, sua intemperança, sua incoerência em vários assuntos globais, ele tornou erros de cálculo mais prováveis. Então a possibilidade de um confronto EUA x Irã por causa do acordo nuclear é maior graças a Trump. A possibilidade de um erro de cálculo que leve à guerra com a Coreia do Norte é maior. A possibilidade, caso haja um ataque terrorista ou cibernético interno ou externo contra os EUA, de os americanos não se unirem, mas se dividirem, é muito maior, e Trump tem algo a ver com isso, então existe um efeito Trump nos EUA e no mundo, mas claramente Trump é mais um sintoma de grande parte da crescente polarização política que temos visto tanto aqui como no mundo nas últimas décadas.

Jorge Pontual — Mas, para os aliados americanos, o isolacionismo de Trump, seu unilateralismo…
Ian Bremmer —
Sim, unilateralismo.

Jorge Pontual — … significa de fato uma falta de liderança? A liderança americana realmente diminuiu?
Ian Bremmer —
Não para todos os aliados. Os israelenses e os sauditas estão satisfeitos, a relação entre EUA e Japão não está tão boa quanto se pensa, mas está bem estável… Mas, para a maioria dos aliados americanos, que já estavam preocupados com a redução do apoio dos EUA, o governo Trump realmente prejudicou essas relações. Isso aconteceu aqui perto, com o Canadá e com o México, no front comercial, em questões como o Nafta, o muro, segurança e o sentimento antilatino e antimexicano por parte de Trump. Isso sem dúvida aconteceu na África. Ele é indiferente aos africanos, a política de imigração, a política de segurança… Isso também acontece com os países europeus. Muitos deles acreditam que os EUA devem defender instituições coletivas, valores coletivos, direitos humanos. Principalmente os alemães e os franceses olham para Trump e veem alguém com quem não querem colaborar. Trump cancelou a visita ao Reino Unido quando ela passou de visita de Estado para visita de trabalho, em parte porque prejudicaria Theresa May, que já é impopular, ainda mais. Ele é muito impopular lá. Eu disse na cúpula da Apec em Danang, no Vietnã, há alguns meses, e lá Trump foi muito menos relevante do que Xi Jinping. Pouca gente deu atenção a ele. Mas em outras partes do mundo, além de ser menos relevante, ele se opõe ativamente. Se Trump tivesse sido eleito há 20 anos, isso não teria feito tanta diferença, mas Trump presidente num mundo G0, com os chineses mais fortes, a Europa se desintegrando e com o Brexit acontecendo, é um fator profundamente desestabilizador.

Jorge Pontual — Explique o que você quer dizer com G0.
Ian Bremmer —
Temos o G7 e o G20, que são instituições importantes nas quais as maiores economias do mundo se reúnem. Eles ainda existem, mas acho que vivemos num mundo sem liderança, seja dos EUA ou de outros países, em nível global. Portanto não é G7 nem G20, é G0.

Jorge Pontual — Você diz na introdução que, se tivéssemos que escolher um ano para uma crise grave e inesperada, o equivalente geopolítico a 2008 parece ser 2018, não só por causa de Trump.
Ian Bremmer —
Não, mas Trump faz parte disso. Acho que eu não teria escrito isso se não fosse por Trump. Eu estaria mais preocupado, acharia que as instituições estão se enfraquecendo, que lideranças não existem, mas quando olhamos a Coreia do Norte e nos damos conta de que há um ano as chances de guerra eram de 1% e hoje são 10% ou 20%… Quando o acordo nuclear com o Irã saiu, achamos que teríamos pelo menos 10 anos de sossego, mas agora não podemos mais dizer isso. Superamos o primeiro ano de Trump, e a economia americana vai muito bem, mas a influência americana no mundo se deteriorou muito. Isso é claro em todas as estatísticas, mas pelo menos não houve nenhuma grande crise geopolítica. O que eu acho é que não podemos esperar que continue assim. Não teremos essa sorte. Assim como na eleição Hillary Clinton poderia ter ganhado, o Brexit poderia ter perdido, Macron e Merkel se elegeram, mas não se tem sorte toda vez. Em termos geopolíticos também não.

Jorge Pontual — Depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA foram a potência hegemônica que organizou e liderou as relações internacionais. Na época da Guerra Fria, tinha a rivalidade da União Soviética. Desde o fim da União Soviética, foi simplesmente a única potência hegemônica. Agora, com o governo Trump, os EUA estão recuando dessa posição. E o espaço vazio está sendo ocupado pela China. Os EUA patrocinaram depois da guerra o Plano Marshall para reconstrução da Europa e do Japão. Foi um grande investimento que os americanos fizeram no resto do mundo. Hoje em dia é exatamente o contrário do que Donald Trump quer fazer, e os chineses também estão ocupando esse espaço. O que quer dizer com “A China adora um vácuo”?
Ian Bremmer —
Já falamos disso, então não sei se quer que eu repita.

Jorge Pontual — Quero. Claro que é por causa do recuo dos EUA, mas o que mais a China está fazendo para preencher esse vácuo?
Ian Bremmer —
O plano da Nova Rota da Seda está consumindo sete vezes mais do que foi gasto no Plano Marshall. O detalhe é que esse plano não é dos EUA, mas os chineses não excluíram ninguém. Eles querem manter a flexibilidade para se beneficiar ao máximo. Quando se tem um governo chinês disposto a assinar cheques gordos em troca de lealdade e alinhamento político, padrões econômicos mais inclinados para a China, mais compensações comerciais… Durante o Plano Marshall, os americanos tinham uma estratégia. Estávamos reconstruindo o mundo, inclusive países que derrotamos na Segunda Guerra, para que ficassem parecidos conosco, negociassem conosco e apoiassem nossas regras, nossos padrões, que beneficiariam o mundo, mas a nós também! Esse era o motivo. Em 2018, ninguém… Os brasileiros não podem dizer dos EUA: 'Os americanos têm uma estratégia, têm valores'. Os americanos estão muito mais divididos e isolados do que isso. Já os chineses têm uma estratégia, os chineses têm um plano, têm dinheiro por trás e estão gastando. Se você perguntasse à maioria dos países se preferem os EUA ou a China como líder, eles escolheriam os EUA.

Jorge Pontual — Para uma democracia emergente, como o Brasil, o que significa que o modelo que vai prevalecer seja o chinês?
Ian Bremmer —
Significa que o apoio global a coisas como direitos humanos e Estado de Direito diminuirá, significa que as empresas ocidentais competirão num mundo não tão globalizado, mais fragmentado. Quando as empresas chinesas são criadas, o governo tem uma classificação, segundo a qual empresas de nível 1 constroem produtos, de nível 2 constroem marcas — mais lealdade e alinhamento —, empresas de nível 3 constroem padrões. Padrões que todas têm de seguir e se alinhar a eles.

Jorge Pontual — Eram os EUA que impunham esses padrões.
Ian Bremmer —
Exatamente. Então, para os brasileiros, se agora são os chineses que estão criando padrões que definem a quantidade de comércio global que será conduzida, muitas empresas e cidadãos brasileiros terão de pensar em como se alinharão a isso, como trabalharão com isso. E é muito diferente do velho Consenso de Washington dos anos 1970 e 1980.

Jorge Pontual — Este ano você incluiu um capítulo sobre acidentes. Que acidentes?
Ian Bremmer —
Todas as coisas que podem dar errado quando erramos nos cálculos. Devemos reconhecer que até mesmo em assuntos de segurança nacional Trump lembra Hillary Clinton. Em comércio ele é protecionista, mas em segurança nacional ele continua apoiando a Otan, ainda está comprometido com o Afeganistão, está enviando tropas, quer atacar a Síria por causa das armas químicas e tal, mas Trump não tem experiência em política externa nem em segurança nacional e não quer aprender, ler, ouvir. E comete erros. Cortou a ajuda a paquistaneses e palestinos, mandou os sauditas atacarem o Qatar e disse que odeia o acordo com o Irã. Disse: 'Fogo e fúria. Vou atacar os norte-coreanos. É melhor eles abrirem os olhos'. Esse tipo de coisa tem potencial para criar acidentes. O temor aumenta, seja quando os havaianos acharam que mísseis atingiriam as ilhas em 38 minutos, ou quando os norte-coreanos testaram uma arma que teria sido abatida pelos EUA. Esse tipo de coisa.

Jornal das Dez (13/1/2018): Quem estava dormindo foi acordado, quem estava acordado foi surpreendido por um alarme alto e estridente. Mais assustador que o alarme foi a mensagem que apareceu nas telas dos telefones: “Ameaça de míssil balístico em direção ao Havaí. Procure por abrigo imediatamente. Isto não é uma simulação”. Demorou 38 minutos até que os celulares tocassem de novo com a correção. A nova mensagem avisava que não havia míssil nenhum, que tinha sido um alarme falso.

Ian Bremmer — Se existe confiança e pessoas preparadas em posições de liderança, geralmente é possível controlá-las.

Jorge Pontual — Outro risco é o enfraquecimento das instituições.
Ian Bremmer —
É a primeira vez que incluo esse risco em 20 anos do relatório. Eu escrevi um livro em 2006 chamado “A Curva J”, no qual eu falava da relação entre a abertura de um país e sua estabilidade. A ideia era muito simples: alguns países são estáveis porque são fechados, como a Coreia do Norte. Caso se abram para o mundo, se desestabilizam rapidamente. Mas os países mais estáveis do mundo, na outra ponta da curva, são os países desenvolvidos: EUA, Japão e Canadá. Esses países são estáveis porque são abertos. Entre os dois extremos há um mergulho, mas países estáveis por serem abertos são os mais estáveis do mundo. O que estamos vendo em 2018 é que alguns dos países mais estáveis do mundo, EUA e Europa, estão começando a testemunhar a perda de legitimidade de suas instituições. O Estado de Direito está erodindo. A qualidade de suas burocracias — o moral no Departamento de Estado, na CIA, no Departamento de Justiça — está se deteriorando. Funcionários estão saindo e ninguém quer substituí-los. A imprensa livre está se politizando, se polarizando. As pessoas não acreditam nela. Muita gente acha que as eleições são manipuladas. Jovens nos EUA e na Europa dizem que não precisam mais de democracia, que ela não importa, não ajuda. Então eu acho que, pela primeira vez, é preciso dizer: 'Esses países ainda são muito estáveis, mas não tanto quanto já foram. As instituições ainda são fortes, mas não tão fortes quanto já foram'. Você pode ter o melhor píer de madeira do mundo avançando em direção ao oceano, mas se há ondas batendo nele durante anos e anos e você não faz a manutenção, por cima ele parece ótimo, mas, por baixo, a madeira está apodrecendo.

Jorge Pontual — Como isso pode coincidir com uma época de prosperidade? Desde antes da crise de 2008, a economia nunca esteve tão boa: a economia global está crescendo… Então por quê?
Ian Bremmer —
A resposta é muito simples: é porque a economia e a política são cíclicas, mas os ciclos não são coincidentes. Se estivéssemos em 2009, você me perguntaria: 'Ian, a economia está indo tão mal, como a política global pode estar tão alinhada? Como é que todos os países do mundo parecem estar trabalhando mais próximos, em muito mais harmonia do que antes?'. E um dos motivos era que estávamos numa parte boa do ciclo geopolítico. Todos reconheceram que havia um problema econômico e que precisavam trabalhar juntos para superá-lo. Hoje, o ciclo econômico parece melhor. Não estamos em recessão, saímos dela, temos um crescimento forte nos EUA, um bom crescimento na China, ótimo na Índia, a Europa saiu da recessão, o Reino Unido nem tanto, os mercados emergentes estão bem, exceto o Brasil, mas em termos gerais estão muito bem. Mas a geopolítica, após décadas de uma liderança americana comparativamente forte, com a Guerra Fria e os soviéticos, desde o colapso da URSS, 25 anos se passaram sem aparecer ninguém. Agora está desmoronando. Eis o problema, e é terrível dizer isso, mas acho que podemos argumentar em 2018 que a China precisa menos de reformas políticas estruturais do que os EUA. Esse argumento é defensável. Ambos os pontos de vista são defensáveis, mas, se dissesse isso há cinco anos, seria chamado de louco. 'Claro que a China precisa de reforma política! Os EUA são os EUA!' .Você olha os EUA hoje, com a crise das armas, a crise dos opioides, com a eleição de Trump, Bernie Sanders deveria ter sido o candidato do lado democrata, o papel do dinheiro na política, um processo eleitoral de dois anos, dois bilhões de dólares gastos e nada aprovado, a aprovação pública do Congresso, o estado da imprensa… Continuo feliz nos EUA, não me entenda mal, mas este país precisa profundamente de reformas políticas estruturais, e ninguém fala nisso. Não há um único político em Washington, do partido que for, dizendo que precisamos mais de reforma política do que a China. Ninguém diz. Isso é mau. Quando há esse nível de falta de autorreflexão, de falta de consciência, num país tão poderoso, isso é péssimo.

Jorge Pontual — Teremos eleições presidenciais no Brasil, é um ano crucial, histórico.
Ian Bremmer —
Mas vocês já tiveram quatro ou cinco anos históricos. Em alguns aspectos, as eleições brasileiras são apenas o passo seguinte nesse processo de encarar todos esses desafios imensos que existem porque a política e o empresariado eram próximos demais, de uma forma que não era digna de uma democracia. A boa notícia é que o sentimento antissistema no Brasil não existe porque as pessoas não querem o livre comércio, nem porque não querem fronteiras abertas, mas porque elas estão iradas com a corrupção, certo? Isso é uma boa notícia. Então é possível que seja eleito um presidente que faça coisas construtivas para o Brasil a longo prazo, mas o problema é que a classe política brasileira inteira perdeu a legitimidade.

Jorge Pontual — Uma última pergunta para uma resposta curta: para não terminarmos com uma previsão negativa, qual será o ponto positivo deste ano?
Ian Bremmer —
O ponto positivo é que, apesar de tudo que eu disse, a economia está indo muito bem. Ela está sendo conduzida por grandes avanços em eficiência tecnológica. Os EUA têm baixo desemprego e crescimento de mais de 3%. Em quase todo o mundo o FMI está revisando para cima a expectativa de crescimento para 2018. Crescimento geralmente facilita tudo, até a política.

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