Observatório Constitucional

Serve a reclamação constitucional para modificar precedentes?

Autores

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

  • Alcebíades Galvão César Filho

    é bacharel em Direito pela Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público.

10 de fevereiro de 2018, 7h05

Diante do notório anseio da comunidade jurídica de se conferir estabilidade e integridade à jurisprudência, tem-se criticado a possibilidade de utilização da reclamação constitucional como meio adequado para a alteração de precedentes, em especial no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Como se sabe, o instituto da reclamação constitucional, conforme dispõe a Constituição Federal (artigos 102, inciso I, alínea “l”, e 103) e o Regimento Interno do STF (artigo 9º, inciso I, alínea “c”), tem por finalidade a preservação da competência do Supremo Tribunal Federal ou a garantia da autoridade de suas decisões, bem como o enfrentamento a ato administrativo ou decisão judicial que contrarie ou aplique equivocadamente súmula vinculante. Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, foi ainda acrescentada, às finalidades já citadas, a possibilidade de utilização da reclamação com vistas a garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de recursos extraordinário ou especial repetitivos, desde que tenham sido esgotadas as instâncias ordinárias (artigo 988).

Para além da discussão sobre o cabimento da reclamação, tem se questionado o próprio escopo do instituto, no âmbito do nosso sistema de controle de constitucionalidade. Poderia o Supremo Tribunal Federal utilizar a reclamação como veículo de superação de seus precedentes?

Certamente, essa possibilidade cria algum estranhamento. Afinal, estaríamos diante de situação em que o tribunal reconhece o cabimento da medida (ou seja, hipótese de afronta à decisão da corte), mas conclui que a decisão reclamada não mereceria ser cassada, cabendo, ao revés, readequar o entendimento da decisão paradigma do tribunal.

Não obstante esse estranhamento inicial, é necessário destacar que o Supremo Tribunal Federal, em alguns casos pontuais, tem acenado para essa possibilidade, utilizando-se do instituto da reclamação como mecanismo de aprimoramento de sua jurisprudência, como se vê, por exemplo, no acórdão proferido na Reclamação 4.3741, na decisão prolatada na Reclamação 25.2362 e no voto vencido apresentado na Reclamação 21.4093.

Na Rcl 4.374, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) atacava decisão proferida pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Pernambuco, que havia concedido ao interessado o benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal. Alegava a autarquia que teria havido violação ao entendimento firmado pelo STF na ADI 1.232/DF, ocasião em que se reconheceu a constitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei 8.742/1993, a qual estabelece critérios para concessão do referido benefício assistencial.

O STF, em sessão do Pleno e por maioria, julgou improcedente a reclamação, seguindo o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, que identificou omissão inconstitucional no artigo 20, parágrafo 3º, da Lei 8.742/1993 (o dispositivo, na dicção do relator, passou por um “processo de inconstitucionalização”), porque a regulação legal não serviria mais para propiciar uma efetiva tutela do direito fundamental à dignidade humana. Ainda conforme o voto do relator, a reinterpretação da decisão originalmente proferida em sede do controle concentrado é viável, inclusive por meio da reclamação, ao tempo que reconhece também a possibilidade de o tribunal vir a superar sua própria decisão. Ressalvou, no entanto, que se trata de uma excepcionalidade a ser verificada somente “no caso de significativa mudança das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes”.

Ao concluir pela improcedência da reclamação, o relator propôs a revisão da decisão proferida anteriormente na ADI 1.232, a fim de declarar a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93 (LOAS), sem pronúncia da nulidade, mantendo-se sua vigência até o dia 31/12/2014, sendo tal proposição acolhida pelo Plenário.

Por sua vez, na Rcl. 25.236, a reclamante buscava superar o entendimento fixado no tema 134 da repercussão geral (“Direito a honorários advocatícios quando a Defensoria Pública estadual representa vencedor em demanda ajuizada contra o estado ao qual é vinculada”), cujo paradigma foi julgado em 6/11/2008, anteriormente portanto às alterações impostas pelas emendas constitucionais 74/2013 e 80/2014, por meio das quais foi concedida autonomia administrativa e orçamentária às Defensorias Públicas.

Em sua decisão monocrática, que deferiu o pedido liminar para dar seguimento ao recurso extraordinário interposto na origem, o relator, ministro Roberto Barroso, enfatizou a necessidade de revisão da jurisprudência da corte, dado que, após o julgamento do RE 592.730, em 6/11/2008, o papel institucional da Defensoria Pública e sua autonomia funcional, administrativa e orçamentária foram reforçados pelas referidas emendas constitucionais. Entendeu ainda ser viável a revisão da jurisprudência do tribunal por meio de reclamação, fazendo expressa referência ao precedente relativo à Rcl. 4.374.

Em parecer que ofertou no processo, de seu turno, a Procuradoria-Geral da República, apesar de opinar pelo não conhecimento da reclamação no caso particular, considerou que “é concebível que o Supremo Tribunal reconsidere posição antiga” por meio de reclamação. Os autos se encontram conclusos ao relator.

Na Rcl 21.409, o ministro Edson Fachin, relator, fazendo especial referência à Reclamação 4.374, registrou que, “desde então, por diversas vezes, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar reclamações, redefiniu o alcance e o sentido de suas próprias decisões apontadas como parâmetros da reclamação”. Esse entendimento não prosperou, contudo, tendo a 1ª Turma, por maioria, julgado a reclamação improcedente.

Em artigo doutrinário, Rodrigo Becker e Victor Trigueiro4 nos apresentam uma crítica a essa leitura. Para eles, a utilização da reclamação constitucional, com o escopo de modificar um precedente, implicaria desvirtuar o objetivo precípuo do instituto, de garantir a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. É dizer, ao se admitir a alteração de um precedente por meio da reclamação, estar-se-ia diante do contrário do que seria o esperado, dado que a reclamação acabaria por servir de instrumento para o reexame da decisão paradigma em vez de servir para a revisão da decisão reclamada.

Seria mesmo uma heresia admitir qualquer espécie de aprimoramento da jurisprudência do STF por meio da reclamação?

Temos destacado que, no âmbito do controle de constitucionalidade e do exercício da jurisdição constitucional, não se deve pensar a respeito dos efeitos das decisões apenas sob o prisma do veículo processual utilizado, pois é fundamental considerar ainda a autoridade da qual emana a decisão. Para ilustrar: faria sentido emprestar a um julgamento do Plenário do Supremo sobre a constitucionalidade da prisão definitiva antes do trânsito em julgado da ação penal, em sede de Habeas Corpus, densidade normativa inferior a uma mesma decisão que fosse realizada em sede de ADPF?

A resposta a essa indagação não é óbvia nem fácil. Mas entendemos que, partindo da constatação de que há uma aproximação dos modelos de controle difuso e concentrado de constitucionalidade5 e de fortalecimento do papel institucional do Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional6, impõe-se conceber que as decisões firmadas pelo STF precisam ser assumidas como verdadeiros precedentes, que devem orientar a interpretação da Constituição por todos os órgãos do Poder Judiciário7. Nesse particular, não caberia negar força de precedente a uma decisão do STF simplesmente porque ela foi proferida em sede de Habeas Corpus ou rejeitar a sua legitimidade porque modificou orientação anterior por meio de uma reclamação. É preciso levar em conta que muitas vezes a via recursal do controle difuso constitui a única oportunidade para o tribunal reapreciar sua própria jurisprudência.

Há um aspecto, contudo, que não pode ser negligenciado, que dá razão às preocupações externadas por todos aqueles que veem com reservas a ampliação do escopo da reclamação constitucional: a do devido processo legal constitucional.

O devido processo legal constitucional, na dicção do próprio Supremo Tribunal Federal, deve ser lido como garantia que incorpora não apenas o critério formal de observância de regras e procedimentos, mas também se configura como uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equilibrada, justa, leal e sempre envolvida pela boa-fé de todos os sujeitos do processo (partes processuais e juiz)8. Como destacou recentemente André Rufino do Vale, nesse espaço, o fair trial é “condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos jurisdicionais e administrativos”9.

A observância do devido processo legal constitucional exige que os precedentes sejam fixados pelo colegiado habilitado para tanto, com quórum próprio, concedendo-se às partes e à sociedade a oportunidade de exercer o contraditório material, entendido como a possibilidade de influenciar no convencimento do órgão julgador, com vistas a evitar decisões surpresa, regra contemplada no Código de Processo Civil de 2015 (artigo 10), que confere vitalidade ao princípio constitucional da segurança jurídica.

A primeira dificuldade que surge, nesse cenário, para admitir a possibilidade de utilizar a reclamação como via de superação de precedentes, está na competência do órgão julgador. Isso porque, hoje, a competência originária para seu julgamento, no STF, não é mais do Plenário, mas, sim, de suas turmas, por força das alterações introduzidas pela Emenda Regimental 49, de 3.6.2014.

Desse modo, parece-nos questionável admitir que no julgamento de uma reclamação, por um órgão fracionário, ocorra a revisão de um precedente estabelecido pelo Plenário da corte, especialmente diante de casos nos quais, por meio da reclamação, busca-se declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo cuja constitucionalidade houver sido anteriormente declarada pelo tribunal. Em tais hipóteses, caberia à turma, segundo o disposto no artigo 11 do Regimento Interno do STF (artigos 11 e 22), afetar o processo ao julgamento do Plenário, para que a questão de inconstitucionalidade, não obstante já decidida pela corte, fosse reexaminada.

Além disso, não se pode olvidar que os precedentes fortes fixados pelo Supremo Tribunal Federal (que são aqueles qualificados pela sua eficácia erga omnes e efeito vinculante) são moldados dentro de um contraditório qualificado. De fato, no controle concentrado, ocorre a manifestação da Advocacia-Geral da União defendendo a constitucionalidade da norma impugnada, exige-se o parecer da Procuradoria-Geral da República, bem como há a possibilidade de participação de amici curiae. E, mesmo no controle difuso, observa-se certa objetivação no julgamento dos recursos extraordinários, no regime da repercussão geral, com a possibilidade de converter o entendimento do tribunal em súmula vinculante.

Significa dizer, assim, que a força normativa de uma decisão, em HC ou ADPF, tem relação direta com o órgão julgador, o quórum de julgamento e a observância do contraditório especial que qualifica o controle de constitucionalidade concentrado.

Desse modo, no que se refere à possibilidade de superação de precedentes por meio de reclamação, parece-nos que, conquanto não haja impossibilidade absoluta de o Supremo Tribunal Federal utilizar a reclamação constitucional como veículo de revisão de sua jurisprudência, inclusive para superar precedentes, é indispensável que seja observado o devido processo legal constitucional.


1 STF, Rcl 4.374, rel. min. Gilmar Mendes, Plenário, DJ 18/4/2013.
2 STF, MC na Rcl 25.236, rel. min. Roberto Barroso, decisão monocrática, DJ 28/10/2016.
3 STF, Rcl 21.409, rel. p acordão min. Roberto Barroso, 1ª Turma, DJ 23/2/2016.
4 BECKER, Rodrigo; TRIGUEIRO, Victor. Reclamação Constitucional para superação de precedentes. Site: Jota. Publicado em 8/12/2016. Disponível em: https://jota.info/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/reclamacao-constitucional-para-superacao-de-precedentes-08122016>.
5 SEGADO, Francisco Fernándes. El recurso de amparo en España como via de generación conflictual entre el Tribunal Supremo y el Tribunal Constitucional. In: SEGADO, Francisco Fernández. La Justicia Constitucional: una visión de derecho comparado. Tomo I (Los sistemas de Justicia Constitucional, las ‘dissentig opinions’ el control de las omisiones legislativas, el control de ‘comunitariedad’). Madrid: Dykinson-Constitucional, 2009. Pp. 218-219.
6 QUINTAS, Fábio Lima. A nova dogmática do recurso extraordinário: o advento da repercussão geral e o ocaso do prequestionamento. In: Revista de Direito Público. Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, v. 5, nº 22, jul-ago/2008. pp. 7-23.
7 QUINTAS, Fábio Lima. Mandado de injunção no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 100-103.
8 No julgamento do RE 131.963 (rel. min. Gilmar Mendes, DJ 30/6/2006), a corte assentou que “o princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. A máxima do fair trial é uma das faces do princípio do devido processo legal positivado na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição, voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e lealdade dos sujeitos que dele participam […]”. Na legislação processual, merece destaque, ainda, o disposto nos artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil de 2015.
9 VALE, André Rufino. Democracia brasileira depende do fair play eleitoral em 2018. Site: ConJur – "Observatório Constitucional". Publicado em 3/2/2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-03/observatorio-constitucional-democracia-brasileira-depende-fair-play-eleitoral-2018?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook#sdfootnote8sym>.

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