Opinião

Fim do foro por prerrogativa será suicídio do Judiciário

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10 de fevereiro de 2018, 9h20

De todas as definições que têm sido feitas no decorrer da história do Direito a mais óbvia e consensual é a de que ele é um “sistema de normas”, um “ordenamento jurídico”. A ela me reporto, pesaroso, todas as vezes que, no Brasil, por verificar-se que determinado instituto jurídico não está funcionando a contento, a sociedade, as corporações e grupos de pressão, as instituições do Estado e os operadores do Direito em geral decidem mexer nesse instituto sem a devida atenção a que ele faz parte do decantado “sistema”.

É o caso, recentemente, do movimento que se vem fazendo no sentido de abolir o instituto do privilégio de foro por prerrogativa de função, mecanismo canhestro que se desenvolveu à sombra do fisiologismo crônico e passou a ser execrado pela sociedade em decorrência do Macartismo anticorrupção.

O instituto, tal qual se acha posto, paralisou o Supremo Tribunal Federal, que está sendo convertido em tribunal penal, impedido de atuar em sua verdadeira finalidade institucional de “guardião da constituição”. Numerosos temas que já foram declarados pelo Plenário como de repercussão geral permanecem sem julgamento, em virtude do entupimento das pautas com as ações penais originárias e seus desdobramentos, em que são interessados os detentores do “foro privilegiado”.

Numerosos outros temas para os quais foi requerida a repercussão geral permanecem sem apreciação. Numerosos processos onde se discute a constitucionalidade de leis e atos normativos permanecem também aguardando julgamento, alguns deles com liminares outorgadas por um único ministro, que bloqueiam seus efeitos por um período tão longo que acabam tornando-os inexequíveis na prática. A evidência, portanto, é que a prerrogativa de foro inviabilizou o funcionamento do Supremo como tribunal constitucional e, por esse motivo, precisa ser modificado.

No entanto, o que se vê são movimentos descoordenados que, ao que tudo indica, terminarão por gerar mais um rompimento do sistema de normas, de modo a tornar a solução proposta ainda mais nocivo do que o instituto atual.

Não se pode suprimir o foro privilegiado sem alterar, reorganizando-o, todo o sistema de competências jurisdicionais, sob pena de não apenas o STF, mas toda a estrutura do Estado brasileiro, se ver paralisada pelo voluntarismo judiciário. Exemplos recentes dão conta da gravidade desse problema: um juiz de Niterói suspendendo a eficácia de um ato privativo do Presidente da República, uma liminar de uma só ministra do STF, prolatada no período de recesso forense, suspendendo a vigência do decreto de indulto, ato historicamente reservado ao Chefe de Estado (não de governo, mas de Estado), um juiz de Brasília determinando atos de cumprimento de pena imposta por Tribunal Regional Federal (instância superior) que, expressamente, negou a execução provisória. Tudo isso apenas no período de um mês. E, observe-se, ainda estão em vigor as regras constitucionais relativas às prerrogativas competenciais às funções públicas superiores.

A questão, portanto, não é o foro privilegiado, mas o próprio cerne do sistema judicial brasileiro. O sistema judicial norte americano é complexo, muito mais do que o brasileiro, possui leis processuais diferentes nos diversos Estados, métodos diferenciados de preenchimento dos cargos de juízes e promotores, por eleição, cooptação e concurso, advogados habilitados de modo diferente de Estado a Estado e até leis penais com crimes e penas inteiramente diversificados no seio da Federação.

No Brasil os códigos de leis têm vigência nacional, os juízes, promotores, procuradores e delegados de polícia são todos selecionados por concursos públicos, assim como 80% das vagas de desembargadores, e existe um Tribunal – o STJ – encarregado de promover a uniformização do entendimento de todos os Tribunais estaduais e federais a respeito das leis, tudo o que, teoricamente, deveria significar maior segurança jurídica e uniformidade do entendimento.

Mas não é isso o que acontece.

Qual a razão pela qual o sistema norte americano confere às suas decisões – justas ou injustas – segurança jurídica, e o brasileiro não? São os operadores de lá melhores que os nossos, a tal ponto de conseguirem administrar um sistema normalmente mais propenso ao desequilíbrio?

Não. A razão está na própria estrutura do sistema.

Nos Estados Unidos e no Brasil, conforme relatam praticamente todos os comentaristas, vigora a garantia constitucional do devido processo legal, inscrito aqui lapidarmente na Constituição, no art. 5º, inciso LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"; e lá na 14ª Emenda, Primeira Seção: "no state shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any state deprive any person of life, liberty, or property without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws".

A redação é, aparentemente, similar. Pelo menos é isso o que registram os manuais, inclusive aqueles redigidos por alguns ministros do STF. Na verdade, porém, a cópia foi parcial e, por esse motivo, causou a babel jurisprudencial em que hoje vivemos no País, com decisões conflitantes em cada juízo, câmara, turma ou tribunal.

Faltou copiar, em nossa Constituição, aquilo que é talvez o mais importante da cláusula do devido processo legal, a garantia da equal protection of the laws. Em virtude dessa omissão continua vigendo o princípio do "livre convencimento judicial" que, embora não esteja registrado expressamente no texto constitucional, deflui da tradição secular.

Por força do "livre convencimento", o juiz decide sempre com base em sua própria consciência e segundo o convencimento que, livremente, obtiver do exame da causa, sem estar vinculado a qualquer decisão anterior, de qualquer juízo ou tribunal do País, exceto o caso da Súmula Vinculante, adotada pelo voto de, no mínimo, dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, ou das decisões tomadas pelo mesmo tribunal nas ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de leis e atos normativos.[1]

É essa anomalia, inexplicável no regime democrático, que faz com que cada juiz adote a sua própria interpretação das leis, e distribua justiça segundo ela, podendo inclusive interpretar a lei ou a Constituição de modo diverso para aplicação em causas inteiramente similares, sem que isso seja considerado ilegítimo, mas apenas creditado ao “livre convencimento”.[2] É ela, com apoio inclusive na lei processual, que permite a todo e qualquer juiz, com fundamento apenas na “verossimilhança” e no seu próprio conceito de “ameaça de dano”, editar medidas cautelares com efeito imediato, muito mais funestas que as medidas provisórias do Presidente da República, dado que não possuem prazo de validade estabelecido.

Os fundadores do regime republicano moderno, ao estruturar o seu sistema judicial, atentaram para a lição de Montesquieu, Segundo a qual “até a virtude precisa de limites” e, por isso, definiram o que passou a ser denominado o princípio do “stare decisis”. A 14ª Emenda, aprovada em junho de 1886, ao ser interpretada pela Suprema Corte dos Estados Unidos (Kentucky Finance Corporation v. Paramount Auto Exchange Corporation – Supreme Court of the United States, 1923 – juiz van Devanter), resultou no princípio, hoje emblemático de qualquer sistema judiciário, do "stare decisis et non quieta movere", ou seja, da vinculatoriedade dos precedentes judiciais sobre decisões futuras de grau correspondente ou inferior.

Nenhum juiz ou tribunal norte-americano pode, sob pena de configurar abuso de autoridade, decidir contrariamente ao entendimento já manifestado, em caso semelhante (in the same situation), pela Suprema Corte ou por qualquer tribunal de grau superior ao seu e, quando se tratar de grau semelhante, ainda assim a questão terá de ser, necessariamente, submetida a superior instância para uniformização

Isso é o que torna o sistema norte americano um verdadeiro sistema de aplicação das leis, em vez do brasileiro, no qual cada juiz tem o direito de aplicar o seu próprio conceito de justiça.

A legitimidade do Poder Judiciário não repousa, como a do legislativo e do executivo, sobre sua origem popular e representativa, já que o recrutamento dos juízes se dá através da presunção do conhecimento jurídico, aferido em concursos públicos ou no "notório saber" dos membros dos tribunais superiores. Por esse motivo é necessário ter em mente os princípios e valores que tornam legítima a intervenção dos juízes na solução dos conflitos públicos e privados.

Ao contrário dos demais poderes, justifica-se a atuação do judiciário porque ela "reside na exclusiva sujeição dos juízes às leis emanadas da vontade popular, e se expressa nas decisões judiciais, enquanto elas sirvam de suporte às aspirações da comunidade que são refletidas pelo ordenamento constitucional e legal".[3]

Daí porque, ao mesmo tempo, o poder e o limite do judiciário estão no respeito às garantias processuais e formais de sua atuação. Mas não pode existir essa vinculação às leis e à constituição quando a interpretação de uma e de outra estão abertas à influência de valores morais e políticos professados por cada juiz em particular.

Nesse sentido, uma decisão judicial tomada sem respeito à lei e ao processo (no sentido de "devido processo legal") é uma decisão ilegítima, tanto quanto uma decisão que fira frontalmente os dispositivos da Constituição. Diferentemente dos deputados e senadores, cuja atuação não está presa a nenhuma exigência formal, e que são legitimados para atuar durante o período do seu mandato, exclusivamente com as limitações constantes do texto constitucional, os juízes se legitimam a cada processo, a cada decisão que proferem, na medida em que esse processo foi corretamente instruído e essa decisão foi legalmente prolatada. Se uma decisão difere de outra, anterior, referente ao mesmo objeto, ela não pode ser entendida como correta aplicação das leis.

Ora, se cada juiz puder decidir exclusivamente segundo o seu particular conceito de justiça, segundo o seu universo ético ou político, inexistirá um verdadeiro e próprio sistema e, como consequência, estará comprometida, conceitualmente, a sua legitimidade que, insiste-se, deriva sempre da obediência ao ordenamento constitucional e legal. Selecionados, juízes e membros do Ministério Público, entre jovens brilhantes e idealistas, ou entre detentores já de notório saber jurídico, nem por isso estão eles infensos à máxima de Montesquieu e, por mais virtuosos que sejam, precisam de limites.

Quanto aos primeiros, aliás, vale a clássica observação de Epicteto: “todo grande poder é perigoso para um debutante”. Para os segundos pode vir a ser aplicada a de Boris Pasternak: “os detentores de poder ficam tão ansiosos por estabelecer o mito da sua infalibilidade, que se esforçam ao máximo para ignorar a verdade.”

Quando os juízes são senhores de um particular conceito de justiça, e não se obrigam a respeitar os conceitos já estabelecidos sob a forma de um sistema, ficam autorizados a obedecer, do alto de seu pedestal, aquilo que lhes for ditado, em cada caso, pelos conceitos morais, éticos, religiosos ou políticos cristalizados durante a sua formação pessoal e, em vez de aplicar a lei, fazem a sua própria justiça.


[1] Até nisso já se viu o desrespeito frontal à Súmula Vinculante 11, no caso da transferência de Sergio Cabral para Curitiba.

[2] O Ministro Luiz Roberto Barroso possui uma teoria sobre interpretação constitucional, vinculada apenas aos seus princípios éticos, que em nada contribui para a sua estabilidade.

[3] José Manuel Bandrés, Poder judicial y constitución, Barcelona (Bosch), 1987, pág. 11.


[i] Doutor em Direito pela Universidade de Barcelona – Professor de Direito Constitucional

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