Opinião

Averbação pré-executória prevista na Lei 13.606/2018 é legítima

Autores

  • Rita Dias Nolasco

    é doutora em Direito pela PUC/SP. Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro) e procuradora da Fazenda Nacional. Diretora da Escola da Advocacia-Geral da União na 3ª Região.

  • Rogério Campos

    é procurador da Fazenda Nacional Coordenador-Geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional (2016/17) com atuação no escritório avançado de consultoria e estratégia da representação judicial da PGFN na 3ª Região - SP/MS.

5 de fevereiro de 2018, 5h42

Pretendemos esclarecer alguns pontos da novidade trazida pela Lei 13.606, publicada no DOU de 10 de janeiro deste ano, com relação a alteração da Lei 10.522/02, que passa a vigorar acrescida dos artigos 20-A, 20-B, 20-C e 20-E.

Inicialmente cumpre reconhecer que qualquer discussão acerca da real ou efetiva aderência da averbação ao ordenamento é absolutamente prematura. Isso porque, decorrência da própria lei que a instituiu, sua aplicação está condicionada à regulamentação da lei, ainda inexistente (artigo 20-E da Lei 10.522, de 2002 [1]).

Efetivamente, a regulamentação é pressuposto essencial à discussão do tema, ao lado da exata compreensão do papel da averbação pré-executória no contexto de outra inovação trazida pela mesma Lei 13.606, de 2018, consubstanciado no ajuizamento seletivo (artigo 20-C da Lei 10.522. de 2002).

O posicionamento das inovações na Lei 10.522, de 2002 não é despropositado: são precedidos das balizas que regem a política institucionalizada da PGFN de redução de litigiosidade, atuação racional, respeito aos precedentes e aos direitos reconhecidos judicialmente aos contribuintes, movimento inaugurado em 2010 com a Portaria PGFN 294, de 2010 e aprimorado na Portaria PGFN 502, de 2016.

Pois bem, a contextualização do instrumento também é fundamental para o debate qualificado. A averbação pré-executória, concebida como peça fundamental à sustentação do novo paradigma de cobrança da Dívida Ativa da União, há que se reconhecer que não é inovação na previsão legal e muito de reatividade é natural em qualquer alteração que envolva a seara tributária.

De início, a possibilidade de "averbação de restrição administrativa, inclusive da indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei" já se encontrava expressa no inciso III do artigo 54 da Lei 13.097/15, e, mesmo ausente o artigo 20-B da Lei 10.522/02, poder-se-ia cogitar da prática do ato, que nada mais é do que mero instrumento de materialização da garantia do crédito tributário de que trata o artigo 185 do Código Tributário Nacional.

Como sabido, a inscrição de crédito em dívida ativa é realizada após sua constituição definitiva no âmbito do processo administrativo que garante previamente ao contribuinte o contraditório e ampla defesa, no caso tributário mediante acesso, se assim o desejar, a órgão de constituição paritária.

Decorrência da inscrição em dívida ativa da União, a Lei Complementar concebe a ineficácia de qualquer transação levada a cabo sem a reserva de bens ou direitos suficientes ao pagamento do débito – artigo 185 e parágrafo único do CTN. O referido artigo 20-B prevê nova notificação administrativa do ato de inscrição em DAU (§§ 1º e 2º).

Questiona-se, portanto, qual direito se estaria a tutelar com a averbação pré-executória e, em contrapartida, qual direito estaria a sofrer suposta violação?

Conforme previsão do novo CPC “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei (artigo 789)”, é inegável que a averbação pré-executória tem por finalidade precípua dar publicidade à terceiros da existência de débitos inscritos em dívida ativa. Tutela-se, assim, a segurança jurídica e a boa-fé objetiva, bem assim, se contextualizado o instituto no novo modelo de cobrança da Dívida Ativa da União, a eficiência e efetividade da prestação jurisdicional, servindo como ferramenta compensadora da limitação ao exercício irrestrito do direito de ação (artigo 20-C da Lei [2]).

A indisponibilidade, mera consequência da averbação, tem nítida e primordial função conservativa, pois impede o devedor de se desfazer do patrimônio, lesando não apenas a Fazenda Nacional, mas terceiros e quartos que podem se ver inseridos em cadeia de alienação sucessiva que ruirá no momento em que reconhecida a ineficácia, cuja causa não se podia exigir naquela altura da cadeia de aquisições. Evita-se, assim, a fraude, exige-se a conformação do devedor ao dever de mitigar os prejuízos (duty to mitigate the loss).

Senão sob a tutela ao abuso de direito, ou na suposta "liberdade" de praticar fraude ou ato cuja lei atribui ineficácia, não se concebe defesa da incompatibilidade da averbação pré-executória com a Constituição Federal, demandando bastante esforço argumentativo e socorro a princípios abstratos a tergiversação do real interesse na disputa: evitar a pratica de ato reputado como fraudulento por Lei Complementar.

Insiste-se: referida indisponibilidade protegerá eventuais terceiros adquirentes de bens, impedindo a alienação de bens que se tornaria ineficaz diante do reconhecimento da fraude à execução fiscal. A fraude será evitada e, mais grave, desconstituição de cadeia sucessiva (AgInt no REsp 1.598.756/SC, AgRg no REsp 135.539/SP, REsp 1.712.495/RS, EDcl no REsp 1.403.114/RS)

Não se pretende reduzir a segurança jurídica, ao contrário, o instituto presta justa homenagem à segurança jurídica e estabilidade das transações sujeitas a registro. Não há ato de expropriação do bem, mantida penhora e leilão como atos privativos do processo de execução fiscal.

A medida não é indiscriminada, tampouco será adotada na hipótese de pagamento, parcelamento ou qualquer causa suspensiva da exigibilidade, limitando-se aos bens penhoráveis e sujeitos à registro. A regulamentação deixará claro os critérios para adoção da medida.

Não há incompatibilidade com o artigo 185-A do CTN, medida que tem escopo distinto, sendo certo que o STJ, por duas vezes, em precedentes qualificados (artigo 927 do CPC), quais sejam, o Recurso Especial 1.272.827/PE e Recurso Especial 1.184.765/PA, já rechaçou a tentativa de atribuir ao privilégio previsto em Lei Complementar o papel de âncora de avanços importantes no que tange à evolução dos mecanismos voltados à efetividade da cobrança, judicial ou administrativa.

Nesse particular, como se vê, em grande parte, estamos diante de mera renovação da tentativa de se “colocar o credor privado em situação melhor que o credor público, principalmente no que diz respeito à cobrança do crédito tributário, que deriva do dever fundamental de pagar tributos (artigos 145 e seguintes da Constituição Federal de 1988)” – Resp 1.184.765/PA.

Ressalta-se, uma vez mais, que averbação pré-executória está inserida no contexto do ajuizamento seletivo tendo em vista que, de acordo com o artigo 20-C o ajuizamento da execução fiscal ficará condicionado a demonstração de potencialidade mínima de satisfação do crédito fazendário. Trata-se de um novo modelo que tornará a cobrança do crédito tributário mais efetiva, demandando a previsão de instrumentos que assegurem o interesse público, a eficiência e a efetividade da tutela jurisdicional, agora sujeita ao prévio esgotamento de diligências administrativas e localização de bens penhoráveis.

Não se diga, ademais, que a medida supostamente draconiana não guarda aderência com a Constituição Federal, jamais concebida. Há na legislação modelos ainda mais invasivos e abrangentes de indisponibilidade decorrente de atos extrajudiciais, passando todos ao largo da discussão de constitucionalidade, podendo-se citar: artigo 36 da Leis 6.024, de 1974; artigo 23, § 4º , III e artigo 24-A da Lei 9.656, de 1998; Lei 6.435, de 1977 (superada pela LC 109/01); artigo 59 da Lei Complementar 109, de 2001 e; § 2º do Artigo 44 da Lei 8.443, de 1992.

Vê-se, portanto, que desde a década de 70 a indisponibilidade, enquanto instrumento fundamental para atribuir organicidade e efetividade a modelo de atuação extrajudicial, é fartamente admitida pelo ordenamento. Questiona-se: os supostos interesses republicanos que movem a prematura cruzada contra a averbação pré-executória estavam ausentes naquelas hipóteses?

O novo modelo de cobrança da dívida ativa, concebido pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) vai além de suas medidas embrionárias, como a Portaria PGFN 396 de 20 de abril de 2016 que previu o Regime Diferenciado de Cobrança de Créditos. Esse novo modelo, agora amadurecido, está alinhado com as boas práticas preconizadas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), visando gerar maior eficiência na recuperação do crédito tributário.

Nesse particular, da adesão do Brasil à OCDE (acession process), há que se reconhecer que são exigidas diversas adequações para alinhamento às melhores práticas regulatórias internacionais compatíveis com os desafios da economia mundial no século 21. A averbação pré-executória, tornando os bens indisponíveis pela Administração Tributária, está de acordo com as recomendações feitas para garantia do pagamento de dívidas tributárias.

Não existe forma milagrosa para aumentar a efetividade da cobrança de débitos tributários a não ser fortalecendo a fase administrativa com mecanismos ágeis para evitar fraudes e dilapidação patrimonial, respeitando o devido processo legal na esfera administrativa, e utilizando a execução fiscal como última forma de cobrança.


[1] “Art. 20-E. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editará atos complementares para o fiel cumprimento do disposto nos arts. 20-B, 20-C e 20-D desta Lei.”

[2] “Art. 20-C. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá condicionar o ajuizamento de execuções fiscais à verificação de indícios de bens, direitos ou atividade econômica dos devedores ou corresponsáveis, desde que úteis à satisfação integral ou parcial dos débitos a serem executados.”

 

Autores

  • é doutora em Direito pela PUC/SP. Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro) e procuradora da Fazenda Nacional.

  • é procurador da Fazenda Nacional, Coordenador-Geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional (2016/17), com atuação no escritório avançado de consultoria e estratégia da representação judicial da PGFN na 3ª Região - SP/MS.

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