Opinião

Uso de "conceitos jurídicos indeterminados" na nova LINDB

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6 de dezembro de 2018, 5h53

Este ensaio tem como objetivo examinar alterações introduzidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, efetivada pela Lei 13.655, de 25 de abril de 2018. A LINDB, como já é designado, com intimidade, o Decreto Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, já foi intitulada como a “Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro”, veiculando normas gerais, preordenadas à disciplina da aplicação do direito em geral.

Novos dispositivos foram introduzidos, pela Lei 13.655/18, os artigos 20 a 30, à LINDB, sendo nosso objetivo por aqui, o de examinar o art. 20 e seu parágrafo único, cujo teor transcreve-se para facilitar a compreensão:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

Conforme é consabido, a tipologia administrativa, frente à enormidade de situações que se apresentam ao administrador, frequentemente se utiliza, em termos de previsão legislativa ou normativa, de conceitos jurídicos indeterminados[1], deixando sua concretização posterior à conta do agente público, observação que se aplica até mesmo ao campo das infrações administrativas. Objetiva o dispositivo da LINDB impedir, por exemplo, o uso de conceitos jurídicos indeterminados para fundamentar as decisões administrativas?

Para responder à indagação, o primeiro passo reside na dissipação da névoa que paira sobre a expressão “decisão embasada em valores jurídicos abstratos” utilizada pelo legislador.

A adjetivação dos “valores jurídicos como abstratos”, pressupõe a existência de “valores jurídicos concretos”, como pressupõe também que as “decisões”, tanto da gestão ativa administrativa, como na controladora (administrativa ou judicial), não se embasem em valores jurídicos abstratos, sem a consideração das consequências práticas das decisões.

Pois bem, considerando que os tais valores jurídicos podem embasar, positiva ou negativamente, decisões administrativas, submetidas à função de controle, evidencia-se que esses valores nada mais são, que o próprio objeto da função administrativa, ou seja: configuram o interesse público a ser concretizado, conforme a previsão normativa, determinante da atuação do agente público, o que vale dizer, que configuram a própria ordem jurídica, cujo cumprimento inexoravelmente cabe ao agente público.

Os comandos constitucionais e legais que impõem o agir do gestor público, em variadas circunstâncias se traduzem muita vez em comandos dotados de conceitos indeterminados, cuja concretização deve ser realizada tanto no exercício da gestão pública, como também na atividade de controle. É evidente que estará vedada a utilização de expressões vagas para fundamentar decisões, eis que o artigo 20 somente lhes veda o uso, sem a consideração das consequências práticas das decisões, o que significa que o intérprete deverá obrigatoriamente trazer o conceito indeterminado, para a zona de certeza, positiva ou negativa, declinando as específicas consequências práticas da decisão a ser adotada.

Um exemplo para ilustrar a questão. Suponha-se a contratação por inexigibilidade de licitação, de serviços de advocacia, nos termos do artigo 25, inciso II, combinado com o artigo 13, inciso VI, da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. O artigo 25, inciso II prevê a inexigibilidade de licitação, para a contratação dos serviços técnicos enumerados no artigo 13, de natureza singular, e além disso, com profissionais ou empresas de notória especialização.

Quanto à notória especialização, o § 1º do artigo 25 da Lei 8.666/93 objetiva o conceito, declinando aspectos práticos e específicos, pelos quais, com tranquilidade, pode-se aferir se dado profissional, ou empresa, são dotados ou não, de notória especialização. Não se verifica na prática, tirante os exageros aqui e acolá, maiores discussões quanto ao cumprimento desse quesito da legislação.

Tocante ao conceito de serviços de “natureza singular”, enumerados no artigo 13 da Lei 8.666/93, todavia, a situação é distinta. Ao exame das situações concretas, tanto a doutrina quanto a jurisprudência utilizam-se de conceitos indeterminados, que culminam por conduzir a qualificação jurídica da “singularidade” a um subjetivismo completo do controlador (porque igualmente colhida de conceitos indeterminados), sem a análise da situação concreta passada pelo administrador — e o que é pior, qualificando o ato volitivo (do agente) da contratação, como ação movida por dolo genérico, com a condenação do gestor público às mais duras penas da lei de improbidade administrativa.

Com efeito, costuma-se designar a natureza do serviço como singular, quando este seja dotado de caráter excepcional, não corriqueiro, extraordinário, sem atentar-se para o fato de que inexiste um conceito unívoco e uniformizado da natureza singular de um serviço, vez que o seu caráter de excepcionalidade é relativo, sendo certo de que o que é excepcional, inusitado, extraordinário, para certas entidades ou órgãos públicos, pode se verificar como trivial, corriqueiro, comum, para outras.

Em verdade, o conceito de “natureza singular de um objeto” somente pode ser aferido relativamente ao contratante dos serviços. Um objeto reveste-se de singularidade, quando a entidade contratante não possua, condições, por seus próprios meios, para a sua efetivação, com o mesmo grau e exigência de qualidade.

Assim, é impróprio dizer-se que tal ou qual serviço jurídico era de natureza simples, a partir de um conceito apriorístico, um mero jogo de palavras, e por essa razão não ostentava condições objetivas para que tivesse lugar a contratação direta.

Tolere-se repetir, mas a indagação a ser efetivada diante da necessidade administrativa reduz-se exclusivamente à condição da entidade contratante, de realizar, por seus próprios meios, o serviço almejado, com o mesmo grau de confiança, qualidade e certeza.

Destarte, o novo artigo 20 da LINDB está a impedir que a decisão da administração ativa — e igualmente a da controladora (administrativa ou judicial), diante de regra veiculada mediante conceitos indeterminados, seja concretizada com a replicação da utilização de conceitos indeterminados, não se podendo ipso facto, no caso do exemplo utilizado, precisar a expressão indeterminada utilizada pela lei: “serviços técnicos de natureza singular”, com outra indeterminação de conceito: serviços de caráter excepcional, serviços incomuns, serviços extraordinários.

Em outras palavras, o artigo 20 da LINDB veda a decisão embasada em valores abstratos, sem a consideração das consequências práticas da decisão seja levada em conta, ou seja: veda o dispositivo a solução com base em valores abstratos, mediante o uso de outros valores abstratos.[2]

O parágrafo único do mesmo dispositivo corrobora com essa interpretação, uma vez que exige que a motivação torne expressa, em variadas situações restritivas de direitos, a adequação da medida imposta, ou da invalidação de diversos dispositivos — atos, contratos, ajustes, processo, norma, tudo isso em homenagem ao princípio constitucional e legal da proporcionalidade (artigo 5º, LV da Constituição e artigo 2º, caput da Lei 9.784/99).

Além da adequação expressamente exigida e anunciada, a motivação haverá de ter presente a demonstração da necessidade, inclusive em face de possíveis alternativas de melhora tingimento da finalidade pública subjacente. É dizer que a aplicação de medidas restritivas de direito, sem a verificação de que referida medida oferece propensão ao cumprimento da finalidade legal almejada pelo agente no ato da decisão, e ainda, com aferição de que não existia medida menos gravosa ao desiderato, com idêntica propensão.

Em tempos de ativismo judicial e dos novos aparatos de controle, já era tempo de o legislador definir, por exigência do equilíbrio entre os poderes, que a concretização dos “conceitos jurídicos indeterminados” pelo administrador público não se presta a ser controlada pela aplicação de outros “conceitos jurídicos indeterminados” pressupostos ou criados pelo controlador (judicial ou administrativo).


1 Há quem sustente em doutrina, que a utilização pela lei desses conceitos indeterminados enseja a incidência da competência discricionária ao agente, abrindo-se-lhe a possibilidade de escolha de uma opção, entre aquelas que se oferecem à sua competência; enquanto outros, sustentam que a discricionariedade não reside propriamente nesses conceitos, cuja determinação deve se verificar pela interpretação, e não por escolha do gestor público. É conhecido o debate sobre o tema travado por Celso Antônio Bandeira de Mello e Eros Roberto Grau.

2 O art. 20 está a repelir que a decisão do administrador, que concretiza conceitos jurídicos indeterminados, possa ser suplantada pela mera opinião pessoal do controlador (administrativo ou judicial), afirmando que tal e qual atividade configura serviço de rotina, e, portanto, fora do aspecto da singularidade, pelo menos sem que haja o efetivo exame da situação concreta da entidade contratante, com a verificação “in concreto” de sua condição de efetivar ou não, por seus próprios meios, a tarefa almejada, com o mesmo grau de confiança, qualidade e certeza.

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