Sobre as (im)possibilidades jurídicas do fechamento da fronteira
22 de agosto de 2018, 15h37
A crise migratória instalada em Roraima, em razão do elevado fluxo de deslocados vindos da Venezuela, mantém-se dramática. No sábado (18/8), no município setentrional de Pacaraima, uma turba enfurecida expulsou cidadãos venezuelanos recém-chegados ou já instalados na cidade, queimando e destruindo seus pertences, inclusive as barracas montadas na rodovia BR-174, que liga o Brasil à Venezuela por via terrestre. A fúria da população local teria sido desencadeada após o assalto e espancamento de um comerciante e de sua família por um grupo formado, segundo relatos das vítimas, por venezuelanos. Após o incidente, circularam notícias de que os venezuelanos expulsos teriam investido contra brasileiros que se encontravam do outro lado da fronteira, agredindo-os e depredando seus veículos.
Nesse contexto de tensão, voltou então a ser cogitada a (im)possibilidade de fechamento da fronteira internacional. E voltaram as dúvidas sobre os fundamentos que, no Direito Internacional[1], poderiam validar, ou não, essa medida. À vista disso, muitos analistas, até mesmo especialistas em Direito Internacional, têm dito que o governo federal não poderia fechar a sua fronteira com a Venezuela porque isso violaria acordos e compromissos internacionais sobre direitos humanos assumidos pelo Brasil.
Acredito, contudo, que não haja uma resposta tão evidente sobre se o país pode, ou não, fechar a fronteira em determinadas situações (como nesta crise migratória que o estado de Roraima vive), e considero que muitas opiniões que defendem a impossibilidade de fechamento da fronteira, até as de alguns especialistas, são apressadas e insatisfatórias.
Há, na verdade, muitos argumentos disponíveis para as visões concorrentes sobre o assunto, alguns mais fracos que outros, mas cada um com um calcanhar de Aquiles (do ponto de vista técnico). Tentarei esboçar alguns argumentos aqui, primeiramente os contrários ao fechamento, e, em seguida, os favoráveis.
Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de que muitos analistas que afirmam que o fechamento da fronteira seria proibido por tratados de direitos humanos de que seria parte o Brasil não costumam apontar quais seriam esses tratados ou em quais trechos do tratado estaria contida a proibição.
Alguns que o fazem apontam como principal tratado aplicável ao caso da fronteira de Roraima a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951. O seu artigo 33, que prevê o princípio da proibição de expulsão ou de rechaço, ou princípio da não devolução, seria especialmente citado como fonte jurídica para a proibição de fechamento da fronteira. Esse artigo diz que “nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas”.
Haveria pelo menos duas razões que colocariam sob suspeita a aplicabilidade dessa norma proibitiva ao caso em questão.
A primeira é que continua não havendo consenso, ao menos para os que pesquisam o perfil socioeconômico dos contingentes de venezuelanos vindos para o Brasil, sobre se eles são, em sua maioria, refugiados. Não desconheço que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), com escritório hoje instalado em Roraima, defende que os venezuelanos seriam refugiados não tanto com base na Convenção de 1951, mas, sim, na Lei 9.474/97 (que “define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951”) e, com mais ênfase, na Declaração de Cartagena (1984). Esta, a seu turno, diz que “a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública” (Recomendação III, item Terceiro)[2].
Essa declaração, todavia, conteria apenas um conjunto de recomendações (soft law) para os países da América Latina, e não de normas obrigatórias a eles. André de Carvalho Ramos enfatiza: “A Declaração de Cartagena, que completou trinta anos em 2014, tem a natureza jurídica original de soft law (não vinculante)”[3]. Restaria então o embasamento na legislação nacional para uma matéria que é regulada por um regime internacional.
A propósito, enxergo alguma incongruência (e desrespeito ao princípio venire contra factum proprium) entre a interpretação extensiva apoiada pelo Acnur nesse caso e a interpretação restritiva que o mesmo órgão faz ao ser reticente em relação ao chamado “refúgio ambiental”.
A segunda razão é que não é incontroverso, embora pareça, que a vida e a liberdade da maioria dos venezuelanos estejam efetivamente ameaçadas com a devolução deles ao país natal. É inegável que há na Venezuela uma gravíssima crise de abastecimento (principalmente de gêneros alimentícios e medicamentos), que compromete a promoção de direitos humanos econômicos, sociais e culturais, além de efetivas ações de perseguição e eliminação de grupos opositores, que impacta diretamente os direitos civis e políticos dos cidadãos. Contudo, a despeito disso, não é claro o quanto o governo do país vizinho ameaça efetivamente a vida e a liberdade dos seus cidadãos em geral, inclusive os que vieram para o Brasil. Há notícias sobre o pleito diplomático da Venezuela ao Brasil para que “proteja os seus cidadãos” em território brasileiro[4].
Entretanto, e mais importante, mesmo que eles fossem considerados refugiados, pode-se questionar se a proibição de devolução valeria apenas para refugiados que já estariam no território do país acolhedor; quer dizer, se os refugiados já em território nacional fossem mantidos a salvo de expulsões ou deportações ilegais, e a fronteira fosse fechada, impedindo-se novos ingressos, o princípio da não devolução (non-refoulement) estaria sendo desrespeitado? O Parecer Consultivo sobre a Aplicação Extraterritorial das Obrigações de Non-Refoulement sob a Convenção de 1951, do Acnur, de 2007, estabelece que a não admissão na fronteira implicaria um tipo de “devolução” e deveria ser considerada proibida (cf. o item 7 do parecer)[5]. Contudo, a vinculatividade de opiniões consultivas, como esse parecer, também é contestada; para muitos, seriam diretrizes, e não efetivamente normas cogentes.
Entretanto, alguém poderia ainda dizer que os tratados internacionais de direitos humanos estão sujeitos ao princípio normativo da interpretação evolutiva, e, haja vista a sua correlação com o direito internacional dos refugiados, poder-se-ia defender que o Parecer Consultivo de 2007 conteria a interpretação autorizada — e evolutiva — da Convenção de 1951 e do seu artigo 33. Por isso, a opinião de que a não admissão na fronteira acarretaria “devolução”, e estaria, portanto, proibida por um tratado sobre refugiados ratificado pelo Brasil, poderia ser considerada obliquamente vinculante. Essa talvez seria a linha de argumentação mais promissora para os que sustentam a inviabilidade do fechamento da fronteira.
Considero demasiadamente frágeis argumentos que se reportam de modo solto a certos dispositivos constitucionais gerais para afirmar que a fronteira não poderia ser fechada aos venezuelanos, mesmo temporariamente. Do fato de que a Constituição brasileira consagra “a dignidade da pessoa humana” como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III), ou a “prevalência dos direitos humanos” como um princípio regente das relações exteriores do Brasil (artigo 4º, II), ou ainda a promoção do “bem de todos” sem discriminação como um objetivo fundamental da República (artigo 3º, IV), não se segue necessariamente, senão com muito esforço interpretativo, que o Brasil não possa fechar a sua fronteira internacional em contextos de crise.
E somente se poderia afirmar que haveria obstáculos constitucionais ao fechamento se ficasse clara a intenção deliberada (e nefanda) do Brasil de não ajudar estrangeiros necessitados, relegando-os ao pior destino. E é bastante provável que não seja esse o caso, pressupondo-se de boa-fé a intenção de fechar temporariamente a fronteira para reorganizar o sistema governamental de acolhimento, em larga medida esgotado no estado de Roraima, e para aguardar que as iniciativas de interiorização de imigrantes tornem-se mais significativas numericamente.
A mesma rejeição às remissões genéricas a normas constitucionais valeria para aquelas feitas à Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o acréscimo de que essa declaração também seria soft law, isto é, não teria a força normativa de um tratado.
O caso é que fechar a fronteira, pelo menos temporariamente, é um ato discricionário de um Estado soberano e que também poderia encontrar seu fundamento, com algum esforço interpretativo, em norma constitucional (artigo 1º, I). E esse ato poderia estar motivado em várias razões. É praxe administrativa na Venezuela, por exemplo, fechar suas fronteiras internacionais durante pleitos eleitorais, alegando razões de defesa nacional, o que, convenhamos, é algo inteiramente lícito. A mesma praxe é adotada na Colômbia, onde as fronteiras (inclusive as com a Venezuela, por onde passam milhares de pessoas por dia) foram fechadas durante cinco dias, durante o mês de maio, em razão de eleições presidenciais ocorridas naquele país[6].
E, para o Direito Internacional, o fechamento de fronteiras seria uma excrescência? A experiência europeia, sob a égide do Acordo de Schengen, de 1985, revela que a regulação das fronteiras internacionais, sua abertura e mesmo seu fechamento (em casos de “ameaça à segurança ou à ordem pública”), depende dos interesses soberanos dos Estados. É claro que esse instrumento, do modo como é defendido por certos segmentos, é um suporte à segregação e à xenofobia, porém, não se contesta o direito dos Estados europeus de fechares suas portas — no máximo, lamenta-se —, e não se considera que o chamado “Espaço Schengen”, que cria um muro invisível entre a Europa e seus vizinhos indesejados, seja juridicamente nulo.
Na América do Sul, o Direito Internacional também prevê o fechamento de fronteiras em certos casos. Basta ver o texto do Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia, de 2010. O artigo 4º desse instrumento com força normativa (hard law), que firma no continente sul-americano a chamada “cláusula democrática”, diz o seguinte: “O Conselho de Estados e de Governo ou, na falta deste, o Conselho de Ministros das Relações Exteriores poderá estabelecer, em caso de ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática, entre outras, as medidas detalhadas abaixo […] b. Fechamento parcial ou total das fronteiras terrestres […]”[7].
É verdade, no entanto, que essa regra não valeria no presente caso, pois para isso seria necessária uma deliberação do Conselho de Chefes de Estado da Unasul. Embora já tenha havido manifestações de alguns membros (Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Peru, além da Colômbia) contra ações do governo venezuelano, inclusive com pedido à presidência da Unasul de suspensão da Venezuela, não houve qualquer deliberação formal daquele conselho autorizando ou determinando o fechamento de fronteiras pelos membros. E nem sequer há previsão de reunião próxima da organização para discutir a questão, mesmo porque ela está com seu funcionamento institucional paralisado desde janeiro de 2017, por causa da resistência de alguns países (Venezuela, Bolívia, Suriname e Equador) ao novo secretário-geral indicado.
Conquanto alguém possa afirmar que essa organização internacional foi criada para promover a livre circulação de pessoas na América do Sul, e não o contrário, o fato é que a previsão de fechamento de fronteiras em um tratado internacional comprometido com a democracia mostra que um ato unilateral estatal desse tipo (o fechamento da fronteira) não é algo tão absurdo e é, inclusive, um mecanismo de pressão internacional em alguns casos. Reconheço que a previsão de fechamento de fronteira, nesse tratado, não teria como finalidade nem respaldaria o intento de agravamento de uma crise humanitária, mas é possível cogitar que um possível agravamento da crise venezuelana nem seria uma consequência inescapável nem uma motivação expressa para o fechamento temporário como atualmente se pretende em Roraima.
A despeito disso, é certo que um ato como esse (embora legítimo) poderia ser visto pelo governo venezuelano como uma hostilidade, uma solução coercitiva, e este poderia responder de modo também coercitivo, inclusive rompendo o contrato celebrado no âmbito do acordo internacional firmado entre os dois países, para compra e venda da energia elétrica produzida no complexo de Guri-Macágua, na Venezuela. O descumprimento das obrigações assumidas no âmbito desse acordo certamente poderia ser visto como violação ao direito dos tratados, mas, fosse como fosse, já se estaria em um campo de incertezas políticas no qual as formas de soluções pacíficas de controvérsias restassem prejudicadas.
É possível que o fechamento de fronteiras, atualmente, seja moralmente lamentável, mas não é certo, mesmo neste caso, pelo menos de modo expresso, que seja juridicamente proibido. Resta saber se é politicamente adequado.
O ponto mais relevante da decisão da ministra Rosa Weber, que negou o pedido de tutela antecipada do governo do estado de Roraima, na ACO 2.131/RR, para o fechamento provisório da fronteira, foi realçar que “o fechamento de fronteira internacional não apenas ostenta natureza tipicamente executiva como traduz verdadeiro exercício da própria soberania do Estado brasileiro”[8]. Os fundamentos políticos que poderiam lastrear a decisão de fechamento de fronteiras seriam talvez mais difíceis de divisar que os jurídicos. Os jurídicos, é verdade, envolvem a análise de diversas fontes jurídicas, algumas não referidas aqui, não apenas porque o espaço é limitado, mas porque a referência a elas somente evidenciaria que há fundamentos fortes e fracos para todos os lados. O interesse maior era mostrar que não há uma resposta jurídica autoevidente.
No fim das contas, é pesaroso que tenhamos chegado a esse ponto, forçados a cogitar do fechamento da fronteira, tendo que fazer uma escolha de Sofia.
[1] Cf.: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/fechar-fronteira-e-grave-violacao-ao-direito-internacional-dizem-juristas,fcf7fec5e5e68c54afc717e6eda0a2602xe2bl2y.html
[2] Disponível em: <http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf>.
[3] RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
[4] Cf.: VENEZUELA pede ao Brasil para proteger seus cidadãos após ataque. G1. 19/8/2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/19/venezuela-pede-ao-brasil-para-proteger-seus-cidadaos-apos-ataque.ghtml>.
[5] “7. The prohibition of refoulement to a danger of persecution under international refugee law is applicable to any form of forcible removal, including deportation, expulsion, extradition, informal transfer or “renditions”, and non-admission at the border in the circumstances described below […]”. Cf. em: <http://www.unhcr.org/4d9486929.pdf>.
[6] COLÔMBIA. Decreto 847 de 2018. Artigo 28, Parágrafo Primeiro: Cierre de Frontera terrestre y fluvial con la República Bolivariana de Venezuela. Disponível em: <http://es.presidencia.gov.co/normativa/normativa/DECRETO%20847%20DEL%2018%20DE%20MAYO%20DE%202018.pdf>.
[7] Cf. em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/RELACOES-EXTERIORES/524048-CAMARA-APROVA-ACORDO-DE-COMPROMISSO-COM-A-DEMOCRACIA-ENTRE-PAISES-DA-UNASUL.html>.
[8] Cf. em: <https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/rosa-weber-nega-fechamento-fronteira-1.pdf>
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