Opinião

Propostas para mudar o panorama da administração tributária

Autores

  • Eduardo Almeida Mota

    é agente fiscal de rendas no estado de São Paulo mestre em Administração Pública pela Columbia University especialista em Direito Tributário pela Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo e em Planejamento Tributário pela FMU-SP e bacharel em Direito pela Uniban-SP.

  • Luciano Quinto Lanz

    é gerente do BNDES doutor em Administração pela PUC-Rio mestre em Administração Pública pela Columbia University e em Administração pela PUC-Rio MBA em Auditoria Fiscal e Tributária pela UGF-Rio e graduado em Administração pela UFRGS.

14 de abril de 2018, 6h58

A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou no último 3 de abril o projeto de lei do Programa de Estímulo à Conformidade Tributária do Estado de São Paulo – “Nos Conformes” (PLC 25/2017)[1], que foi sancionado pelo governador no dia 6 de abril como Lei Complementar no 1.320/2018. Conforme nosso artigo publicado em 29 de outubro de 2017[2], o programa apresenta uma série de inovações e foi reconhecido por vários outros articulistas por seus méritos[3]. Mas será suficiente para mudar o ambiente institucional e melhorar a relação entre Fisco e contribuintes? Seria fácil se assim o fosse…

Apesar de acreditarmos que se trata de um passo extremamente importante, que quebra um paradigma de décadas da administração tributária — tratar os contribuintes como potenciais “delinquentes” — avaliamos que diversos princípios existentes no projeto ainda carecem de regulamentação e, mesmo, amadurecimento. Além disso, a partir da literatura internacional identificamos algumas ações adicionais, que podem ajudar a realmente mudar o panorama da administração tributária. O objetivo deste artigo é endereçar essas ações.

Adequação do perfil da cadeia de fornecedores
Uma das espinhas dorsais do projeto é a conformidade da cadeia de fornecedores. Como dissemos em nosso primeiro artigo esta abordagem é aderente ao desenvolvimento de arranjos produtivos locais e cadeias produtivas no estado de São Paulo, o que é demonstrado por diversos estudos[4] como importante para o desenvolvimento industrial, inovação e melhora do ambiente de negócios.

No entanto, a medida poderia levar empresas de São Paulo a buscar fornecedores de outros estados para evitar que sua relação com o Fisco seja afetada negativamente caso seu fornecedor usual não obtenha uma boa classificação. A própria lei procura tratar desta questão atribuindo uma classificação “D” ao fornecedor de outro estado que não enviar as informações. Propomos algumas alternativas, que podem ser combinadas visando uma possível solução:

1. Estímulos à programas de treinamento e certificação dos fornecedores — a exemplo de programas de qualidade e de gestão[5]. As empresas que estabelecessem este tipo de programa poderiam ter benefícios no âmbito administrativo e em sua classificação no programa.

2. Uso de termos de ajustamento de conduta — nestes casos poderiam ser fixados prazos em regulamento para que determinado fornecedor ajuste sua escrituração e regularize seu pagamento de tributos.

3. Disponibilização de softwares e sistemas que facilitem a implementação dos controles do programa — a administração tributária em parceira com entidades empresariais e outros órgãos de estado poderiam trabalhar no desenvolvimento de softwares e sistemas, preferencialmente utilizando plataformas open source e software livre para facilitar sua implantação nas empresas de menor porte, o que é um problema potencial já identificado em análises prévias deste programa[6].

4. Medidas de ampliação da abrangência do suporte legal do programa[7] — o estado de São Paulo poderia buscar junto ao Confaz a assinatura de um Protocolo para ampliação do programa para outros estados da Federação, preferencialmente dentro dos princípios básicos já estabelecidos, de forma a evitar que este se torne um novo foco de guerra fiscal ao invés de uma medida de melhoria institucional.

Essas medidas podem ser combinadas, especialmente no processo de implantação do programa, para que este não tenha efeitos negativos sobre a cadeia de fornecedores de uma empresa adquirente e nem sobre sua própria classificação.

Ambiente institucional
O programa tem a classificação de risco baseada na conformidade fiscal, tendo como critérios a consistência no pagamento das obrigações tributárias, a conformidade da escrituração e declaração e a regularidade fiscal dos fornecedores segundo os mesmos critérios. Esta conformidade será avaliada especialmente com base no comportamento em relação ao recolhimento do ICMS.

Para o bom funcionamento do programa é importante que o ambiente institucional evolua para estimular boas práticas, estabelecer controles preventivos e desestimular comportamentos oportunísticos.

Certificação de profissionais de contabilidade em ICMS
A lei prevê em seu artigo 4º, parágrafo 1º, 5, “a capacitação e o desenvolvimento de profissionais das áreas contábil, fiscal e financeira, dos setores privado ou público”.

Essa previsão busca resolver uma queixa comum, especialmente das empresas de pequeno e médio porte, que é a dificuldade em contratar profissionais de contabilidade especializados em ICMS. Para endereçar esta questão propõe-se a criação de um processo de certificação para profissionais de contabilidade baseado em padrões internacionais como o Certification for Accountants and Financial Professionals in Business (IMA, 2017)[8] e o National Association of State Board Accountancy Certification (AICPA, 2013)[9].

Esta medida dá segurança aos contribuintes e permite que a administração tributária regule o setor de serviços de contabilidade, sem ferir o direito constitucional ao livre exercício da profissão, e pode ser implementada em conjunto com entidades de classe e associações da categoria.

Limite de utilização de créditos tributários (stop-loss)
A lei excetua casos de fraude da aplicação de seus benefícios. Existem duas formas comuns de se cometer fraude fiscal no ICMS. A primeira é encontrar e utilizar métodos ilegais para diminuir o número de registros de operações de venda e, consequentemente, o número de débitos. A segunda é declarar operações de entradas, compras, falsas e, assim, gerar falsos créditos para aumentar o imposto a ser reembolsado. Ambos os movimentos visam reduzir o valor que seria pago ao estado.

O aumento dos créditos pode ser dividido em dois modus operandi comuns. As empresas que vendem falsos créditos existem, mas já não são mais economicamente viáveis e tentam obter recursos misturando operações reais com operações falsas. Nessa situação, é mais difícil capturar a fraude. No entanto, quando é descoberta, os autores são penalizados e o setor público recebe uma parte do dinheiro de volta, após longo e complexo processo que muitas vezes corre na esfera judicial. A outra fraude possível ocorre quando a própria empresa e todas as operações são falsas. Essa fraude é relativamente fácil de descobrir, porém, nesse caso, é muito difícil recuperar os recursos desviados.

Uma ferramenta para mitigar esse problema poderia ser a implementação do sistema de stop-loss de crédito tributário. Resumidamente, trata-se de um limite variável para as empresas transferirem créditos para outras empresas. Funcionaria nas mesmas bases que a análise de crédito e sistema stop-loss usado em fundos garantidores de crédito (Lanz & Tomei, 2014)[10]. Poderia ser utilizado como parâmetro um multiplicador sobre o valor do capital efetivamente integralizado e poderia variar de acordo com a classificação da empresa: “A+” mais flexível, “E” regras mais rígidas.

Detecção de esquemas de fraude e programa de denúncia premiada (whistleblower)
A detecção de fraudes pode ocorrer de forma ativa, pelo departamento de fiscalização, ou passiva, através de informantes (CIAT, 2009)[11]. Este é o instituto da denúncia premiada (whistleblower). Este instituto está em conformidade com os paradigmas éticos de nossa Constituição Federal de 1988 e estimularia as condutas éticas nas organizações, públicas ou privadas (Oliveira, 2015)[12].

A Association of Certified Fraud Examiners (ACFE, 2016)[13] já reconheceu o importante papel dos denunciantes na detecção de fraudes. Um estudo da PricewaterhouseCoopers entrevistou mais de quatro mil diretores executivos, diretores financeiros e responsáveis por conformidade em empresas e identificou o denunciante como a fonte mais efetiva de informação para a detecção e combate aos crimes (Kohn, 2017)[14].

Ao contrário do instituto da delação premiada, na qual o denunciante tem confiabilidade questionável por seu interesse na potencial redução de penas, no instituto da denúncia premiada, oriundo da common law, o denunciante não faz parte do ilícito, mas se vê compelido a denunciá-lo por integridade ou altruísmo pessoal, mesmo muitas vezes estando sujeito a pressões sociais e econômicas, como perda de emprego, ameaças, entre outras.

Para evitar isso, este instituto muitas vezes prevê denúncias, com proteção a identidade do denunciante e compensação econômica sobre os valores efetivamente recuperados. Existem algumas iniciativas para sua introdução efetiva no Brasil no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro, além de diversas iniciativas em trâmite no Congresso Nacional e em alguns estados.

A criação de um programa de denúncia tributária premiada utilizando o Cadastro da Nota Fiscal Paulista, com previsão de recompensa de um percentual dos valores efetivamente recuperados com base nas informações apresentadas, seria uma medida efetiva para minimizar fraudes e melhorar o ambiente institucional. As denúncias seriam analisadas por um setor segregado, criado especificamente para esse propósito em cooperação entre Secretaria da Fazenda, Secretaria de Justiça e o Ministério Público. A segregação é importante pois pode existir participação de agentes públicos nas fraudes.

Para os casos em que as fraudes forem detectadas, além das penalidades criminais e pecuniárias, seriam aplicadas novas formas de vigilância com base em regras de governança e contabilidade do mercado, como a aplicação da ISO 31000[15] que estabelece padrões de gerenciamento de risco pelo período mínimo de cinco anos sob supervisão do Fisco.

Controles internos
Para que a proposta de alteração da relação entre contribuintes e administração tributária seja realidade, é necessário investir em controles e processos internos efetivos no âmbito da administração tributária.

Para isso, é proposta a criação de um programa de compliance em três frentes: análise de risco, governança e conformidade, baseado nas propostas de Russell (2010)[16], criando mecanismos para monitorar e avaliar os resultados em termos de conformidade fiscal, receita de tributos, integridade da fiscalização e eficácia dos processos (OECD, 2014)[17].

Conclusão
As ações propostas podem contribuir para melhorar o ambiente institucional e facilitar a implantação com sucesso do programa, além de ampliar seus efeitos positivos sobre o ambiente de negócios, com uma administração tributária mais moderna, transparente, eficiente e próxima da sociedade.


1 Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (2017). Projeto de Lei Complementar 25/2007. https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000168831
2 Mota, Eduardo Almeida & Lanz, Luciano Quinto. (2017). Abordagem do Estado em São Paulo vai de "fisco-policial" para "fisco-cidadão". Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2017-out-29/opiniao-fisco-policial-sao-paulo-fisco-cidadao
3 De Santi, Eurico Marcos Diniz, Coelho, Isaías; & Barreto, Paulo Ayres. (2017) São Paulo na era da modernidade do Fisco responsivo. https://jota.info/artigos/sao-paulo-na-era-da-modernidade-do-fisco-responsivo-12072017
Aguiar, Luciana Ibiapina Lira (2017). Transparência e conformidade: iniciativa da Fazenda de SP. Por uma mudança do paradigma atual da relação fisco-contribuinte. https://jota.info/artigos/transparencia-e-conformidade-iniciativa-da-fazenda-de-sp-22082017
4 Santos, A. M., & Guarnieri, L. d. (2000). Características gerais do apoio a arranjos produtivos locais. BNDES Setorial, 12.
Santos, F., Crocco, M., & Lemos, M. B. (2002). Arranjos e sistemas produtivos locais em "espaços industriais" periféricos: estudo comparativos de dois casos brasileiros. Revista de Economia Contemporânea, 6(2), p. 147-180.
5 The Institute of Asset Management (2017). https://theiam.org
6 Mendes, Silvânia, (2018). A importância da tecnologia para se enquadrar no projeto “Nos Conformes”. Portal Administradores. https://www.administradores.com.br/noticias/negocios/a-importancia-da-tecnologia-para-se-enquadrar-no-projeto-nos-conformes/124288
7 Frias, Maria Cristina (2018). Ranking de contribuintes de SP precisará de acordos com outros estados. Folha de S.Paulo.
8 IMA. (2017). Institute of Management Accountants. Retrieved from https://www.imanet.org/cma-certification?ssopc=1
9 AICPA. (2013). U.S. CPA Exam Testing in Brazil Expands to All of South America. Retrieved from The American Institute of CPAs: https://www.aicpa.org/Press/PressReleases/2013/Pages/US-CPA-Exam-Testing-in-Brazil-Expands-to-All-of-South-America.aspx
10 Lanz, L. Q., & Tomei, P. A. (2014). Confiança versus controle: análise da governança do Fundo Garantidor para Investimentos. Revista Eletrônica de Estratégia e Negócios, p. 105-136.
11 CIAT. (2009). La Inteligencia Fiscal como Herramienta de las Administraciones Tributarias para el Combate al Fraude Fiscal, (pp. 0-101). Quito.
12 Oliveira. Juliana M. F. (2015). A Urgência de uma legislação Whistleblower no Brasil [Artigo] // Textos para Discussão – Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultora Legislativa. – [s.l.] : Senado Federal – Brasil, Maio – Vol. 175. – p. 1-17.
13 ACFE. (2016). Report to the Nations on Occupational Fraud and Abuse – 2016 Global Fraud Study. Austin: Association of Certified Fraud Examiners.
14 Kohn, S. M. (2017). The New Whistleblower's Handbook: A Step-By-Step Guide To Doing What's Right and Protecting Yourself. Washington, DC: Globe Pequot.
15 ABNT (2018) ISSO 31000:2018 – Gestão de riscos – Diretrizes. http://www.abntcatalogo.com.br/norma.aspx?ID=392334
16 Russell, B. (2010). Revenue Administration: Developing a Taxpayers Compliance Program. Washington: International Monetary Fund.
17 OECD. (2014). Measures of Tax Compliance Outcomes: A Practical Guide.

Autores

  • mestre em Administração Pública pela Columbia University – NY,Especialista em Direito Tributário pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Especialista em Planejamento Tributário pela FMU - SP, Bacharel em Direito pela UNIBAN - SP. Coordenador de Serviços e Tecnologia Compartilhados da Secretaria da Fazenda do Estado e São Paulo.

  • é doutor em Administração Pela PUC-Rio, Mestre em Administração Pública pela Columbia University – NY, Mestre em Administração pela PUC-Rio, MBA em Auditoria Fiscal e Tributária pela UGF-Rio. Graduado em Administração pela UFRGS. Gerente do BNDES.

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