Opinião

Controle externo não está ameaçado pelo PL 7.448/2017

Autores

  • Sérgio Ferraz

    é advogado parecerista procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ.

  • Amauri Feres Saad

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP consultor jurídico e parecerista.

13 de abril de 2018, 16h18

Em artigo intitulado Projeto de lei ameaça o controle da administração pública, publicado na ConJur em 10 de abril[1], o procurador do Ministério Público junto ao TCU Júlio Marcelo de Oliveira critica fortemente o Projeto de Lei 7.448/2017, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e pendente de sanção presidencial para tornar-se lei.

Referido projeto, como se sabe, modifica a Lei Federal 4.657/1942, a chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), para introduzir dispositivos que visam aumentar a segurança jurídica nas relações envolvendo a administração pública (incluindo-se os órgãos de controle) e os administrados.

Qualificando-o de “insidioso”, o mencionado procurador argumenta que, se sancionado integralmente, o projeto “enfraquecerá sobremaneira o controle, será fonte de insegurança jurídica e premiará a ineficiência dos gestores públicos, além de apresentar conteúdo que não guarda compatibilidade material com a finalidade da LINDB, que é o de definir princípios de interpretação integradora no ordenamento jurídico brasileiro”.

Não concordamos com a opinião do ilustre procurador junto ao TCU, e fazemo-lo aqui abertamente, pelas razões expostas a seguir.

Primeiramente, é preciso compreender, sem preconceitos, o conteúdo do PL em questão. Não nos parece que, sequer remotamente, ele “enfraqueça” o controle, seja “fonte de insegurança jurídica” ou premie a “ineficiência dos gestores públicos”, sobretudo porque os deveres que impõe já são largamente exigidos pelo sistema jurídico de todos os agentes públicos, quer pertençam eles à administração pública, quer aos órgãos de controle, quer ao Judiciário. Vejamos.

O artigo 20 da LINDB, introduzido pelo PL 7.448/2017, estabelece o dever de que a decisão administrativa, controladora (que também é administrativa) e judicial considere “as consequências práticas da decisão”. Só os tolos e os jacobinos creem cegamente no brocardo fiat justitia et pereat mundus; esquecem-se, ambos, de que, para que a justiça se faça, deve antes haver um mundo. Ou seja: não se trata de transferir ao controlador a responsabilidade do gestor, mas de reconhecer que quem decide é responsável pelas consequências de sua decisão.

Longe de ser uma inovação, tal disposição afina-se com o dever de modulação dos efeitos das decisões judiciais para manutenção da segurança jurídica (cf. artigos 525, parágrafo 13, 535, parágrafo 6º, e 927, parágrafos 3º e 4º, do CPC de 2015; artigo 27 da Lei Federal 9.868/1999) e com o dever administrativo de promover a segurança jurídica (Lei Federal 9784/1999, artigo 2º, caput, entre outras).

No mesmo sentido, o artigo 21 da LINDB, também introduzido pelo PL 7.448/2017, estabelece que a decisão administrativa, controladora ou judicial “deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”. Nesse caso, trata-se de norma salutar que visa esclarecer o que o agente público que decide pretende, afinal, com a sua decisão.

É um passo além ao dever de motivação dos atos administrativos e das decisões judiciais, ambos consagrados legislativamente (artigo 489 do CPC de 2015; e artigo 50 da Lei Federal 9.784/1999): aquele que decide deve não apenas indicar os pressupostos de fato e de direito que informam a sua decisão, mas também declinar especificamente os efeitos que pretende venham a ser produzidos no mundo dos fatos. Quem acompanha, por exemplo, o funcionamento dos tribunais de contas sabe que não se trata de disposição sem importância: é muito comum que tribunais de contas declarem irregular uma licitação ou contrato administrativo, sem indicar o que acontece a partir dali.

Na hipótese do contrato administrativo julgado “irregular”, o ser irregular pode suscitar um sem-número de consequências possíveis, que vão desde a simples rejeição das contas do agente público até a devolução de valores pagos. Estabelecer que o tribunal de contas tem o dever de explicitar quais as consequências de suas decisões não limita as suas competências de controle. Muito pelo contrário, o que faz é tornar o seu exercício mais transparente e, perdoe-se a redundância, mais consequente. E isto, com a devida vênia, não machuca ninguém.

O artigo 22 da LINDB, introduzido pelo PL 7.448/2017, determina que o julgador, na esfera administrativa, controladora ou judicial, tem o dever de considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”. Ora, que reclamação verdadeira pode ser levantada contra tal norma?

Acaso não deve o julgador considerar a realidade e as vicissitudes enfrentadas pelo sujeito de sua decisão? Limita, mutatis mutandis, o controle jurisdicional a norma do artigo 926, parágrafo 2º, do CPC de 2015, segundo a qual “[a]o editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”? (Não consta que tal argumento tenha ocorrido a qualquer processualista em face de tal norma do atual CPC).

O dever, fixado no artigo 23 da LINDB, introduzido pelo PL 7.448/2017, de estabelecer um regime de transição em caso de decisão que introduza nova interpretação ou orientação sobre norma de conteúdo indeterminado, tem de ser celebrado como um inegável avanço. Não é incomum que tribunais de contas considerem irregulares licitações ou contratos administrativos formulados em atendimento à jurisprudência da própria corte de contas.

Em tais casos, como penalizar o agente público que se conduziu prestigiando a jurisprudência da corte de controle externo? Ou ainda: como suspender ou invalidar, pura e simplesmente, atos ou contratos que, ao tempo de sua prática, eram regulares segundo a orientação então vigente da própria corte de contas? Em tais casos, é obrigatório ao tribunal de contas estabelecer um regime de transição. Como? Preservando o que foi praticado e estabelecendo recomendação para que, nos próximos atos ou contratos, conforme o caso, a administração se atenha ao novo posicionamento da corte.

Novamente, longe de ser uma novidade, tal postura já é obrigatória aos órgãos de controle, por força do princípio da segurança jurídica, de estatura constitucional (artigo 5º, XXXVI) e legal (o já citado artigo 2º da Lei Federal 9.784/1999), e da vedação às decisões-surpresa, especialmente disciplinada no CPC de 2015 (artigos 9º e 10, c/c artigo 15). Atendente à mesma constelação de valores, é a norma do artigo 24 da LINDB, segundo a qual devem ser preservadas as situações constituídas em conformidade com as orientações gerais vigentes ao tempo de sua prática.

De nota, e igualmente importante, é o artigo 25 da LINDB, introduzido também pelo PL 7.448/2017, que prevê a possibilidade de ajuizamento, pela administração pública, de ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, seguindo o rito aplicável à ação civil pública, cuja sentença fará coisa julgada com eficácia erga omnes. Tal pretensão, sob o presente ordenamento jurídico, já é plenamente possível; o que muda com o PL 7.448/2017 é apenas e tão-somente o rito. A sua expressa consignação no PL em questão pode estimular o agente público, convencido da legalidade da sua atuação, a buscar o pronunciamento judicial que propicie a segurança necessária à sua atuação.

É claro que, com tal expediente, a atividade dos órgãos de controle externo pode ser afetada pela decisão judicial que declare a validade da atuação administrativa; mas tal situação, sobre já ser possível na atualidade, decorre da própria natureza das cortes de contas: como tais órgãos possuem natureza administrativa, suas decisões naturalmente cedem em face do pronunciamento judicial. A nova lei não amesquinha as competências das cortes de contas. Se há algum culpado, é o Constituinte de 1988, que, nos artigos 70 a 75, fixou um regime não jurisdicional para as atividades de controle interno e externo.

Por fim, destaque-se ser um truísmo da teoria da administração que toda organização tende a atuar para maximizar o seu poder, sendo corolário de tal ideia o fato de que nenhuma organização abre mão, com facilidade, do poder que tenha, ou julgue ter. A partir dessa verdade inegável é que se devem compreender as críticas dirigidas ao PL 7.448/2017. Tal projeto de lei, que esperamos venha a ser sancionado integralmente pelo presidente da República, amolda-se integralmente ao modelo constitucional de controle externo, sobre o qual um dos signatários já escreveu:

“Os tribunais de contas, importantíssimos órgãos auxiliares do poder legislativo na tarefa de controle externo da execução orçamentária, não possuem, assim como nunca possuíram, competência constitucional para substituírem-se à Administração Pública, refazendo escolhas e decisões a cargo deste poder. Também nunca possuíram, como ainda não possuem, competência constitucional para substituírem-se ao poder que auxiliam, elaborando as normas gerais e abstratas, assim como os atos individuais e concretos que regem as premissas de sua atuação. Igualmente, nunca foram, nem são capazes de igualarem-se ao poder judiciário, produzindo decisões sobre as quais não caiba qualquer revisão ou recurso”[2].

O controle externo, repisemos, não se encontra ameaçado pelo PL 7.448/2017, a menos que, sobre tal atividade, se entenda algo diferente do que dispõe a Constituição Federal.


[2] SAAD, Amauri Feres. "O controle dos tribunais de contas sobre os contratos administrativos". In: Celso Antônio Bandeira de Mello, Sergio Ferraz, Sílvio Luis Ferreira da Rocha e Amauri Feres Saad (coordenadores). Direito Administrativo e liberdade: estudos em homenagem a Lúcia Valle Figueiredo. São Paulo: Malheiros, 2014, pp. 59-131.

Autores

  • é advogado, parecerista, procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ. É membro efetivo e presidente da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e fundador e membro do Conselho Superior da Associação Paulista de Direito Administrativo (APDA).

  • é advogado, consultor jurídico, professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP-SP) e doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Membro efetivo e secretário-geral da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e fundador e presidente da Associação Paulista de Direito Administrativo (APDA).

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