Opinião

Três hipóteses de não incidência do CDC na incorporação imobiliária

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7 de abril de 2018, 6h58

Como regra geral, não se pode negar a incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/90) aos contratos para venda de unidades imobiliárias firmados por adquirentes junto a incorporadoras. Tal regra, no entanto, comporta exceções.

A regulação da incidência do CDC tem lugar em seus artigos 2º e 3º. Pretendeu a legislação consumerista regular toda relação jurídica cujos sujeitos de direito ostentem as qualidades de consumidor e fornecedor, nos termos da lei.

A definição de “consumidor” divide duas correntes doutrinárias: a finalista e a maximalista. De acordo com a primeira corrente, a expressão “destinatário final” existente no artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretada de maneira restrita, havendo a necessidade de destinação final econômica do bem. A corrente maximalista, por outro lado, entende que a interpretação do artigo 2º do CDC deve ser feita de maneira extensiva, desconsiderando, inclusive, uma eventual finalidade de lucro do agente que adquire um produto ou utiliza um serviço[1].

No ponto, deve-se prestigiar a corrente finalista. A interpretação restrita do conceito de consumidor, para fins de incidência do CDC, guarda consonância com o próprio sistema normativo de Direito Privado; a se admitir a extensão da qualidade de consumidor, a maior parte das relações jurídicas passariam a ser regidas pelo CDC, o que não parece coerente com a excepcionalidade de suas disposições restritivas da liberdade de contratar.

O sistema do CDC é um subsistema de Direito Privado. Nem todo contrato privado pode ser um contrato regido pelo CDC. Por orientação constitucional, a lei é de defesa do consumidor (artigo 5º, XXII, CF), daí as suas disposições serem de ordem pública e limitarem gravemente a autonomia das partes. Tal circunstância aponta para uma interpretação restritiva para fins de incidência da legislação consumerista.

Esse é o critério utilizado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Em sucessivos julgados, a 2ª Seção firmou a orientação de que o destinatário final, para fins de incidência do CDC, “é aquele que ultima a atividade econômica, ou seja, que retira de circulação do mercado o bem ou o serviço para consumi-lo, suprindo uma necessidade ou satisfação própria, não havendo, portanto, a reutilização ou o reingresso dele no processo produtivo. Logo, a relação de consumo (consumidor final) não pode ser confundida com relação de insumo (consumidor intermediário)”[2].

Tal conclusão é objeto de mitigações na própria jurisprudência do STJ. Verifica-se no tribunal a aplicação da “teoria finalista aprofundada/mitigada”, em que há maior abertura ao critério da vulnerabilidade no reconhecimento como consumidor, abarcando, de maneira excepcional, situações que, em regra, não restariam amparadas pela teoria finalista pura. Amparado nesse raciocínio, o STJ admite a aplicação do CDC, em situações específicas, nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. Tal entendimento já foi objeto, inclusive, de manifestações tanto da Corte Especial, como da 2ª Seção[3].

Baseado nessas premissas, sem prejuízo de outras situações, é possível indicar três hipóteses de não incidência do CDC no âmbito da incorporação imobiliária:

1. Aquisição de unidades imobiliárias por sociedades empresárias cujo objeto é a exploração de imóveis
É comum, por exemplo, que sociedades empresárias adquiram unidades imobiliárias de empreendimentos construídos em regime de incorporação. Se a sociedade adquirente tiver como objeto descrito em seus atos constitutivos a própria atividade de compra e venda, ou arrendamento e aluguel, de bens imóveis, inexistirá destinatário final da unidade imobiliária. Ao contrário, a unidade imobiliária adquirida será meio, insumo, da atividade de descrita em seus estatutos. Sob tal contexto, não restarão preenchidos no caso os requisitos da relação de consumo, na forma prevista pelo CDC.

A análise dos casos que formam a jurisprudência sobre a teoria finalista mitigada demonstra que a construção sobre o que o STJ chama de “consumidores-empresários” até pode alcançar as pessoas jurídicas. Nesses casos, no entanto, a presunção de vulnerabilidade não subsiste, a qual valerá apenas para consumidores pessoas físicas; para as pessoas jurídicas, por seu turno, deverá existir prova efetiva de tal condição.

Assim, à luz da jurisprudência do STJ, não parece adequado aplicar-se o CDC à aquisição de imóveis por pessoas jurídicas cuja atividade utilize como insumo bens imóveis. Não há como se presumir vulnerabilidade aí, eis que a empresa que adquire imóveis como atividade principal terá conhecimento técnico e informação suficiente para atuar neste mercado. Nesse caso, não se vislumbra a aplicação do CDC.

2. Pessoa física ou pessoa jurídica que adquire unidade de empreendimento em que participa como sócio
Outro modelo comum de negócio ocorre quando sócios da incorporadora ou proprietários da área onde será construído o empreendimento decidem adquirir para si uma ou mais unidades do próprio empreendimento. Seja por investimento ou por qualquer outra razão, é comum que os sócios ou os titulares da área (os “terrenistas”, no jargão do mercado) queiram haver para si apartamentos, salas ou lojas, por exemplo, de prédios construídos por empresas ligadas a eles.

Nesses casos, haverá uma sensível diferença quando se compara com a venda de unidades imobiliárias para um adquirente qualquer. É que aqui os adquirentes não integram o mercado consumidor, sendo muito mais adequado concluir que a tal aquisição se dá em razão de relações societárias ou comerciais. Ainda que formalmente a aquisição da unidade se dê através de escritura pública de compra e venda ou, mesmo antes, em razão de assinatura de promessa de compra e venda, como se daria com os interessados em geral, não se pode desconsiderar que a condição de sócio do empreendimento retirará do adquirente a condição de vulnerável, seja do ponto de vista da informação, seja do ponto de vista econômico.

Esse raciocínio acentua o elemento finalístico da relação de consumo e destaca que nenhum contrato é, em si e em tese, regido pelo CDC, senão em razão da presença concreta dos elementos destinados a marcarem essa relação, a saber, o profissionalismo e a habitualidade, no caso do fornecedor; e a destinação final, no caso do consumidor. De igual modo, excluir a hipótese indicada da incidência do CDC avulta a importância da causa como critério de controle da legalidade do negócio jurídico[4].

3. Pessoa física ou a pessoa jurídica que adquire unidade com tabela especial para “investidor”
Por fim, nos últimos anos, em razão principalmente da crise no mercado imobiliário, outra modelo de negócio comum é a venda de unidades com preço e modo de pagamento distinto para adquirentes que tenham a intenção deliberada de tornarem-se investidores no empreendimento.

Nessa condição, normalmente os planos de pagamento são mais curtos, com a maior parte dele feito antes ou durante as obras do empreendimento. Em contrapartida, os ditos investidores conseguem obter preços melhores, de modo que, adquirindo a unidade por valor inferior ao que é oferecido ao mercado em geral, terão eles condições de obterem maior lucro na revenda ou na exploração do imóvel que lhes será transmitido quando da entrega do empreendimento.

Também aqui, de igual modo, não se mostram presentes os requisitos de fato para incidência do CDC. É que se o adquirente expressamente consigna no instrumento que o seu propósito é o de tornar-se titular na condição de investidor, obtendo benefícios decorrentes desta sua posição distinta, não há aqui também que se falar em destinatário final do produto. A posição aqui assumida liga-se muito mais à condição de um financiador da obra, cuja garantia é o recebimento da unidade, do que a de um efetivo consumidor comum.

Na hipótese, convém destacar que a condição de investidor pode se dar, inclusive, por meio da constituição de condomínio de construção, na forma do artigo 48 da Lei de Incorporações. Aqui, a condição especial do adquirente, torna-se ainda mais evidente, dado que manterá relação com incorporadora por intermédio do condomínio de construção, relação jurídica regulada pela referida Lei 4.591/64. Tem-se aqui hipótese que já levou o STJ a afirmar que o contrato de incorporação, no que tem de específico, deve ser regido lei que lhe é própria — ou seja, a mencionada Lei 4.591/1964[5].

Ordinariamente, a relação entre o adquirente e incorporador é regida pelo CDC, eis que presentes as características de consumidor e fornecedor, na forma dos artigos 2º e 3º da legislação consumerista. Disso, no entanto, não se pode concluir pela sua aplicação indiscriminada, em qualquer hipótese. Dita conclusão, além de juridicamente equivocada, não beneficia nem adquirentes nem incorporadoras. No primeiro caso porque, restringindo o campo de aplicação do CDC àqueles que necessitam de proteção, ficará assegurado um nível mais alto de proteção para estes — de modo que o contrário apenas prejudicará consumidores. Quanto às incorporadoras, o uso indevido do CDC a situações fáticas que não lhe dão guarida poderá acarretar em custos indevidos, decorrentes do aumento seu custo de transação no valor final dos imóveis — o que também, ao fim e ao cabo, prejudica a todos e causa má regulação do mercado.


[1] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 5ª ed, 2013, 94-95.
[2] REsp 1.599.042/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 14/3/2017.
[3] AgRg nos EREsp 1.331.112⁄SP, Corte Especial, rel. min. Herman Benjamin; AgInt no Conflito de Competência 146.868/ES, 2ª Seção, rel. min. Moura Ribeiro.
[4] A causa contratual, para Maria Celina Bodin de Moraes, “permite que se qualifique o negócio jurídico”. Com essa função, o estudo da causa viabiliza a sistematização dogmática, a partir da função de determinado instituto. Com isso, “a causa releva, por exemplo, quando se tem que saber a que negócio jurídico pertence o efeito que se analisa. Somente ao se estabelecer o nexo de causalidade entre o efeito e o negócio é que se pode determinar, com pertinência, a disciplina a ele aplicável”. Em: BODIN DE MORAES, Maria Celina. A causa do contrato. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 4, out.-dez./2013. Disponível em: <http://civilistica.com/a-causa-do-contrato/>. Acessado em 22 de março de 2018, p. 04.
[5] “O contrato de incorporação, no que tem de específico, é regido pela lei que lhe é própria (Lei 4.591/1964), mas sobre ele também incide o Código de Defesa do Consumidor, que introduziu no sistema civil princípios gerais que realçam a justiça contratual, a equivalência das prestações e o princípio da boa-fé objetiva (REsp 238.011-RJ, rel min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 29/2/2000)

Autores

  • é sócio de Fiedra, Britto & Ferreira Neto Advocacia Empresarial, mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor de Direito Civil e Direito Imobiliário da Faculdade Baiana de Direito, membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil, do Instituto de Direito Privado, do Instituto Baiano de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.

  • é advogada associada de Fiedra, Britto & Ferreira Neto Advocacia Empresarial e graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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