Segunda Leitura

​​​​​​​O juiz entre os rigores da profissão e a liberdade de expressão

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

29 de outubro de 2017, 9h32

Spacca
Os limites entre os deveres impostos à magistratura e a liberdade de expressão suscitam opiniões divergentes e, não raramente, apaixonadas. O tema voltou à mídia nesta semana porque o Conselho Nacional de Justiça instaurou processo disciplinar contra quatro juízes de Direito do Estado do Rio de Janeiro que se manifestaram publicamente contra o impeachment da ex-presidente da República.

Segundo notícia, os “magistrados discursaram em um carro de som durante a realização de um ato público na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. A prova utilizada pelo CNJ para justificar a abertura de investigação foi um vídeo gravado durante a manifestação”[1].

Não é a primeira vez que magistrados envolvem-se em atividades ligadas à política. Nas eleições de 2010, o então presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, desembargador Luís Sveiter, foi acusado de participar da campanha de seu irmão Sérgio Sveiter, candidato a deputado federal. Segundo a Folha de S.Paulo, teria ele gravado um vídeo no qual louvava a trajetória do irmão, “pautada pela preservação dos direitos das pessoas”, sem pedir voto diretamente. Sveiter foi absolvido no CNJ por 8 votos a 7[2].

Na mesma reportagem, o jornal informa que o CNJ foi menos benevolente em caso similar: “O juiz maranhense Luís Jorge Silva Moreno teve confirmada a pena de aposentadoria compulsória por nove votos a cinco. Segundo o relator do caso, Bruno Dantas, quatro testemunhas reafirmaram a participação do magistrado em comícios, passeatas e outros eventos políticos — o que o juiz afirmava serem ações sociais”.

Outras ações, menos divulgadas, ocorreram nos últimos anos. Críticas sobre o voto dos eleitores a favor de determinado candidato, discursos contra políticos no exercício do poder e recriminação em decisões judiciais a membros de outros Poderes ocorrem, ainda que não constantemente.

Entretanto, a abertura do processo disciplinar pelo CNJ, certamente pelo momento político que o país atravessa, teve maior repercussão. Protestos nas redes sociais e algumas manifestações de apoio foram divulgadas, sempre se invocando o direito de liberdade de expressão, garantido a todos os brasileiros pelo artigo 5º, inciso IV da Constituição.

Não tecerei nenhum comentário sobre o caso em si, pois creio que o mais importante é analisar os limites pouco claros entre o que é permitido e o que é vedado a um juiz. Nesse campo, as dúvidas são muitas, e os estudos, poucos. Vejamos um exemplo.

Na Bélgica, em 1997, o desembargador Koen, que gozava de bom conceito na comunidade jurídica, enfrentou a depressão de sua mulher, Magda, que, após anos de casamento, revela sua natureza masoquista. Koen, para satisfazê-la, passou a levá-la a locais em que eram feitas práticas sadomasoquistas. Um dia é visto por um desafeto, que tira fotos comprometedoras e as leva aos órgãos de controle.

O magistrado foi processado disciplinarmente e defendeu-se dizendo que sua vida sexual era assunto privado. A acusação, todavia, sustentava que, no caso, houve repercussão pública. Koen foi afastado da magistratura por seu tribunal. Recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos, mas não teve sucesso[3].

Pois bem, retornando às manifestações de juízes com cunho político, temos que ir às regras, pois opiniões devem ser racionais, e não passionais. Por exemplo, revela completo desconhecimento do sistema a crítica de que o CNJ nada faz contra os ministros do Supremo Tribunal Federal que ferem a ética comportando-se de forma inconveniente, simplesmente porque o CNJ nada pode fazer, o STF a ele não está subordinado.

Aos juízes é vedado, na forma do artigo 95, inciso III da Constituição de 1988, dedicar-se à atividade político-partidária. A disciplina da magistratura está regulada pela Lei Complementar 35/1979, que no artigo 35, inciso VIII, coloca entre os deveres do magistrado manter conduta irrepreensível na vida pública e particular e, no artigo 96, III, proíbe-o de manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento. Finalmente, o Código de Ética da Magistratura, editado pelo CNJ, no artigo 7º, veda a participação em qualquer atividade político-eleitoral.

As regras de conduta são rigorosas com os magistrados, com certeza, bem mais do que com os demais atores das carreiras públicas do sistema judicial. Poucos sabem ou se interessam pelas vantagens do cargo de um procurador federal ou de um defensor público de determinado estado. Mas qualquer vantagem concedida aos juízes, certa ou errada, viraliza, e as críticas são rigorosas.

Assim é porque a função de julgar é única, representa a palavra final, define vidas, patrimônio, empregos, tudo o que representa enorme valor e felicidade na vida das pessoas. Bem por isso tal função sempre foi e sempre será acompanhada de perto pela sociedade e fiscalizada de forma mais rigorosa.

Em 1999, Roberto O. Berizonce organizou obra primorosa sobre o juiz e a magistratura, colhendo artigos sobre as dificuldades da adaptação desses profissionais aos novos tempos. Gualberto Lucas Sosa, criticando a falta de recato dos magistrados, observava que alguns comportam-se como desportistas ou artistas de televisão, fazendo prevalecer sua vaidade sobre sua condição de juiz[4].

Aí está uma observação que vale para o procedimento dos juízes na vida pública ou privada, incluindo o posicionamento sobre política partidária ou qualquer outro assunto que afete a profissão. Óbvio que o magistrado é um ser humano e tem direito, como todos, a divertir-se e a dedicar-se a atividades fora dos muros dos tribunais. Mas, nessas atividades, sobre ele recairá sempre o peso de sua função. Professor, esportista em uma associação, sempre será o juiz. E no momento em que outras atividades interferirem no seu cargo, na sua instituição, estará sujeito a consequências que não alcançam outros profissionais do Direito.

O direito de liberdade de expressão a que se refere o artigo 5º, inciso IV da Constituição é garantia democrática. José Afonso da Silva lembra que a liberdade de ter opinião é tão importante que a doutrina a chama de liberdade primária e ponto de partidas das outras[5].

No entanto, a própria Carta Magna estabelece restrições ao seu exercício. Por exemplo, sujeitando aqueles que dela abusarem a verem-se obrigados a indenizar eventual dano moral que venham a causar. E nas normas infraconstitucionais as restrições são inúmeras.

Os militares, por exemplo, sujeitam-se ao Regulamento Disciplinar do Exército, o qual, no artigo 14, inciso I, considera transgressão qualquer ação que atente contra o decoro da classe[6]. Os médicos sujeitam-se ao Código de Ética Médica e não podem, por exemplo, delegar a outros profissionais ato exclusivos da sua profissão (artigo 2º)[7]. O Conselho Nacional do Ministério Público puniu, com 15 dias de suspensão, manifestação ofensiva de promotor de Justiça no Facebook[8].

Em suma, limites e restrições amoldam-se ao direito constitucional de liberdade de expressão, na medida das peculiaridades do caso concreto. Mas o fato é que nenhuma profissão admite liberdade total e absoluta de agir como se supõe devido. E a magistratura, pelo papel que lhe está reservado na sociedade, tem limitações redobradas, por tudo que dela a sociedade espera e cobra.


1 http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-10/cnj-abre-processo-para-apurar-manifestacao-de-juizes-em-ato-contra, acesso em 27/10/2017.
2 https://ocafezinho.com/2016/11/30/alvo-de-sete-acusacoes-no-cnj-luiz-zveiter-concorre-pela-segunda-vez-presidencia-do-tj-rj/, acesso 27/10/2017.
3 O caso Koen, pouco conhecido no Brasil, está disponível em filme na internet, em inglês: www.youtube.com/watch?v=9aqjeak40MQ, acesso 28/10/2017.
4 SOSA, Gualberto Lucas. Recientes tendências em la posición del juez. Em “El juez y la magistratura”, org. Roberto O. Berizonce. Buenos Aires, Ribinzal-Culzoni, 1999, p. 114.
5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 40ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2017, p. 243.
6 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4346.htm, acesso em 27/10/2017.
7 http://www.rcem.cfm.org.br/index.php/cem-atual, acesso em 27/10/2017.
8 https://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/167709074/o-cnmp-pune-administrativamente-promotor-de-justica-por-manifestacao-pessoal-publicada-na-rede-social-facebook, acesso em 27/10/2017.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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