Opinião

Moralidade deve deixar de ser conceito e virar realidade em contratos públicos

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20 de novembro de 2017, 11h50

Em cenário de crise institucional, os princípios constitucionais podem inspirar o estado democrático de direito no sentido de reconhecer a sociedade civil como a titular única das escolhas e prioridades condutoras de seus próprios e sobranceiros destinos, de que os poderes públicos devem ser não mais do que fiéis intérpretes e executores.[1]

No âmbito das contratações públicas, sobejam questões acerca de como lidar com a prática de atos de corrupção descobertos após o transcurso de anos da realização de licitações públicas, por meio dos quais a administração identifica a proposta tida como mais vantajosa e, por isto, ensejadora da contratação do respectivo proponente, ao final dos certames competitivos.

E já nesse postulado, tido como o móvel de toda licitação – a escolha da proposta mais vantajosa -, surgem questões a desafiar providências pertinentes à moralidade nas contratações do estado: o que vem a ser a proposta mais vantajosa, a que alude o artigo 3º da Lei 8.666/93? Será sempre a de menor preço? Outros elementos, além do preço, devem ser considerados na identificação da melhor proposta? Em caso afirmativo, como estabelecê-los objetivamente, de sorte a ter-se um padrão de julgamento que evite vícios invalidantes da licitação e da contratação?

A administração pública é titular, mercê da autotutela, do dever jurídico de declarar nulas ou de anular as licitações e contratações fundadas em atos administrativos cuja estrutura morfológica irredutível se apresente viciada quanto a qualquer de seus elementos – competência, forma, objeto, motivo e finalidade. Fazê-lo ou não o fazer concerne tanto à moralidade quanto à segurança jurídica, dado que a nenhum título é lícito ou legítimo que a administração licite ou contrate pela via de atos viciados, vale dizer, praticados por autoridades sem a competência funcional devida, inobservada a forma exigida, versando sobre objeto sem interesse público, pretextando motivos (razões de fato e de direito que justificam a decisão) falsos, inexistentes ou inidôneos, ou com desvio de finalidade.

Contratos contaminados pela prática de atos de corrupção acrescentam teor inadmissível de dolo à conduta dos agentes públicos e privados envolvidos. Daí a relevância de fixarem-se stardards que balizem as escolhas segundo as quais a administração pública orientará o seu comportamento de gestão dos contratos, sem violar a segurança jurídica.

Uníssona, embora matizada nos pontos que destaca aqui e ali, é a doutrina administrativista acerca da onipresença da moralidade nos atos e contratos administrativos.

Hely Lopes Meirelles[2] fez ver, de uma vez para sempre, que a moralidade administrativa é pressuposto de validade de todo ato da administração pública, nos termos do disposto no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988.

Marçal Justen Filho[3] acentua que a moralidade soma-se à legalidade, tanto que uma conduta compatível com a lei, mas imoral, será inválida.

Para Celso Antônio Bandeira de Melo, a administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Em outras palavras, violá-los implicaria em violação ao próprio direito, configurando ilicitude que sujeita a conduta viciada à invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do artigo 37 da Constituição.[4]

José dos Santos Carvalho Filho[5] afirma que o princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos em sua conduta, devendo não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto.

Maurice Hauriou[6], no seu Précis de droit administratif e de droit public (Paris, 1927, p. 420), destacava que a conformidade do ato administrativo com os princípios da boa administração deve ser fiscalizada pelo recurso fundado no desvio de poder, o qual incide sobre a zona da moralidade administrativa.[7]

Diogo de Figueiredo Moreira Neto[8] ressaltava que a moralidade administrativa atua como peculiar derivação dos conceitos de legitimidade política e de finalidade pública, pois é a partir da finalidade que é prevista em abstrato, sendo a partir da legitimidade, como resultado da aplicação, que a moralidade administrativa se define em concreto.

Toshio Mukai esclarece que “a moralidade administrativa difere da moralidade comum porque ela busca e significa tão-só que o agente público atue na condição de um bom administrador, como alguém que, gerindo recursos alheios, o faz ciente de que não são seus, e, portanto, atuando com eficiência, zelo, parcimônia, honestidade e, sobretudo, com a observância da boa-fé; enfim, o princípio da moralidade administrativa requer que o administrador público, na prática de cada ato de sua alçada e competência, saiba discernir entre aquilo que é do bem daquilo que é do mal e, além disso, tenha no seu agir a preocupação constante do bom administrador, aplicando a lei corretamente, no sentido sempre da satisfação do interesse público, fim último do Estado.”[9]

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro[10], sempre que se verificar que o comportamento da administração ou do administrado, que com ela se relaciona juridicamente, ofende a moral e as regras de boa administração haverá ofensa ao princípio da moralidade administrativa.

Fábio Barbalho Leite complementa que “o princípio da moralidade administrativa consubstancia cânone dos mais significativos para o controle dos atos administrativos. Ademais que apresenta campo semântico superior ao da legalidade, submetendo os atos administrativos a maiores exigências da Lei.”[11]

Emerson Garcia[12] pontua que “a moralidade administrativa apresenta uma relação de continência com o princípio da juridicidade, o qual abrange todas as regras e princípios norteadores da atividade estatal. Violado o princípio da moralidade administrativa, maculado estará o princípio da juridicidade, o que reforça a utilização deste como parâmetro para a identificação dos atos de improbidade.”

Alexandre Santos de Aragão acrescenta que, “hoje, estando a legalidade ampliada pela ideia da juridicidade, e estando a própria moralidade (tal como vários outros princípios antes considerados como metajurídicos) positivada na Constituição, passou a integrar o bloco de legalidade. Assim, um ato administrativo imoral, que foge ao que seria o comportamento de um ‘bom administrador’, seria também um ato ilegal por violação à mais importante de todas a leis, a Constituição.”

Flávio Amaral Garcia sublinha que “a moralidade alcança não apenas o administrador público, mas também os licitantes. A despeito de seu caráter subjetivo – já que moral é um conceito aberto, sujeito a variações de época, de locais e de pessoas – implica a observância de comportamento ético no transcorrer das licitações públicas.”[13]

Em sede pretoriana, o Supremo Tribunal Federal tem por diretriz inarredável que o princípio da moralidade é de observância obrigatória no conduzir da administração pública. Assim:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTADUAL QUE AUTORIZA A INCLUSÃO, NO EDITAL DE VENDA DO BANCO DO ESTADO DO MARANHÃO S/A, DA OFERTA DO DEPÓSITO DAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO TESOURO ESTADUAL – IMPOSSIBILIDADE – CONTRARIEDADE AO ART. 164, § 3º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA NORMATIVA DO ESTADO-MEMBRO – ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – PLAUSIBILIDADE JURÍDICA – EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE ESPECÍFICO FIRMADO PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR, COM EFICÁCIA EX TUNC. AS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DOS ESTADOS-MEMBROS SERÃO DEPOSITADAS EM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS OFICIAIS, RESSALVADAS AS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI NACIONAL. – (omissis) A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado.(omissis).
(ADI-MC 2.661, CELSO DE MELLO, STF).

Ingressando no sistema de controle da esfera gerencial e operacional da atividade contratual do estado, Rafael Carvalho Rezende Oliveira[14] visualiza que “o ordenamento jurídico prevê diversos instrumentos de controle da moralidade administrativa, tais como: a ação de improbidade (artigo 37, parágrafo 4º, da Constituição e Lei 8.492/92), a ação popular (artigo 5º, LXXIII, da Constituição e Lei 4.717/65), a ação civil pública (artigo 129, III, da Constituição e Lei 7.347/85), dentre outros.”

Arremate-se com Odete Medauar: “a probidade administrativa, que há de caracterizar a conduta e os atos das autoridades e agentes públicos, aparecendo como dever, decorre do princípio da moralidade administrativa.”[15]

O direito público brasileiro há de passar do campo conceitual da moralidade, em que há consenso, para o do cotidiano das ações de gestão administrativa dos contratos, em que se divisam lacunas e fragilidades pelas quais se introduzem desvios da moralidade. Daí, na legislação recente e nas normas regulamentadoras da conduta administrativa, se observarem avanços na esfera da responsabilização de agentes públicos e privados, pessoas físicas e jurídicas, por danos morais e materiais que condutas ímprobas causem aos resultados de interesse público que a sociedade não mais tolera que sejam frustrados.

Referências
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

GARCIA, Emerson. A moralidade administrativa e sua densificação. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 43, p. 110-137, abr./jun. 2003.

GARCIA, Flavio Amaral. Licitações e Contratos Administrativos. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif e de droit public. Paris: 1927, p. 420

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 10. ed. São Paulo: Dialética, 2003.

LEITE, Fabio Barbalho. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 25, p. 241-260, out./dez. 1998.

MARTÍNEZ, Felipe Rodrigues. A moralidade administrativa como direito fundamental: moralidade condicionante da legalidade. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 18, n. 71, p. 103-126, abr./jun. 2010.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 20. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

MELO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1992.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

MUKAI, Toshio. Da aplicabilidade do princípio da moralidade administrativa e do seu controle jurisdicional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 4, p. 211-215, jul./set. 1993.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís Boia. Revisitando as teorias principiológicas no estado democrático de direito. Fórum Administrativo, v. 16, n. 187, p. 52-60, set. 2016.

Citações
[1] PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís Boia. Revisitando as teorias principiológicas no estado democrático de direito. Fórum Administrativo, v. 16, n. 187, set. 2016, p. 59.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 90.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 10. ed. São Paulo: Dialética, 2003, p. 65

[4] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros , 1992, p. 61.

[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 19.

[6] HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif e de droit public. Paris: 1927, p. 420

[7] Cf. MUKAI, Toshio. Da aplicabilidade do princípio da moralidade administrativa e do seu controle jurisdicional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 4, p. 211-215, jul./set. 1993.

[8] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 103.

[9] Ibidem.

[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 79.

[11] LEITE, Fabio Barbalho. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 25, p. 241-260, out./dez. 1998.

[12] GARCIA, Emerson. A moralidade administrativa e sua densificação. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 43, p. 110-137, abr./jun. 2003.

[13] GARCIA, Flavio Amaral. Licitações e Contratos Administrativos. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 5.

[14] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 97.

[15] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 20. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 153.

Autores

  • Brave

    é advogada e mestranda em Direito da Cidade pela UERJ. Especialista em Direito Público pela UCAM. Pós-graduada em Direito pela EMERJ.

  • Brave

    é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, presidente da 2ª Câmara Cível, professor emérito da Escola da Magistratura, coordenador de cursos de pós-graduação em Direito Administrativo e presidente da comissão de Promoção de Políticas Institucionais de Sustentabilidade do TJ-RJ. Professor visitante da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no RJ.

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